Capítulo 10 - Reis e Príncipes Pálidos
Eu vi pálidos reis e também príncipes,
Pálidos guerreiros, de uma mortal palidez todos eles eram
– John Keats, La Belle Dame Sans Merci
Enquanto a carruagem passava pela Strand, Will levantou uma mão enluvada em preto e afastou uma das cortinas de veludo da janela, deixando um feixe de luz a gás amarela encontrar seu caminho para o interior escuro da carruagem.
— Parece que vamos ter chuva hoje à noite.
Tessa seguiu seu olhar. O céu era um nublado cinza metálico – o normal para Londres, ela pensou. Homens em chapéus e longos casacos escuros apressavam-se pelas calçadas dos dois lados da rua, seus ombros encurvados contra o vento forte que carregava poeira de carvão, esterco de cavalo e todos os tipos de lixo em seu rastro. Mais uma vez, Tessa pensou que podia cheirar o rio.
— Aquilo é uma igreja diretamente no meio da rua? — ela se perguntou em voz alta.
— É a Santa Maria le Strand — disse Will — e há uma longa historia sobre ela, mas eu não a contarei para você agora. Você estava ouvindo algo do que eu falei?
— Sim. Até você ter começado a falar sobre chuva. Quem se importa com a chuva? Estamos a caminho de algum tipo de... evento da sociedade vampírica, e eu não tenho ideia de como devo agir, e até agora você não ajudou muito.
O canto da boca de Will se contraiu para cima.
— Apenas seja cuidadosa. Quando chegarmos a casa, você não pode olhar para mim para ajuda ou instruções. Lembre, eu sou seu humano subjugado. Você me mantém por perto pelo sangue – sangue sempre que você quiser – e nada mais.
— Então você não irá falar esta noite — Tessa disse — nada.
— Não, a não ser que você me instrua a fazê-lo.
— Esta noite parece que será melhor do que eu pensava.
Will pareceu não tê-la escutado. Com sua mão direita ele estava apertando uma das pulseiras de metal porta-adagas em seu pulso esquerdo. Ele olhava fixamente pela janela, enxergando algo que não era visível para ela.
— Você pode estar pensando em vampiros como monstros ferozes, mas estes vampiros não são exatamente assim. Eles são tão cultos quanto cruéis. Facas afiadas para a lâmina cega da humanidade — a linha de seu maxilar ficou rígida na luz fraca — você terá que tentar acompanhar. E pelo amor de Deus, se não conseguir, não diga absolutamente nada. Eles têm um tortuoso e opaco senso de etiqueta. Uma séria gafe social pode significar morte instantânea.
As mãos de Tessa se apertaram em seu colo. Elas estavam frias. Ela podia sentir o frio da pele de Camille mesmo através das luvas.
— Você está brincando? Do jeito que você estava na biblioteca, sobre deixar cair aquele livro?
— Não — sua voz estava distante.
— Will, você está me assustando.
As palavras saíram da boca de Tessa antes que ela pudesse detê-las; ela ficou tensa, esperando zombaria.
Will tirou seu olhar da janela e moveu-o para ela como se alguma compreensão tivesse despontado nele.
— Tess — ele disse, e Tessa sentiu um solavanco momentâneo; ninguém nunca a tinha chamado de Tess. Algumas vezes seu irmão a chamava Tessie, mas isto era tudo — você sabe que não precisa fazer isto, se não quiser.
Ela inspirou, algo que não precisava.
— E então o quê? Nós iríamos dar meia-volta na carruagem e ir para casa?
Ele estendeu suas mãos e pegou as dela. As mãos de Camille eram tão pequenas que as capazes mãos enluvadas em preto de Will pareciam engoli-las.
— Um por todos, e todos por um — ele disse.
Ela sorriu debilmente ante aquilo.
— Os Três Mosqueteiros?
Seu olhar firme segurou o dela. Seus olhos azuis eram muito escuros, únicos. Ela já tinha conhecido pessoas com olhos azuis antes, mas sempre eram azuis-claros. Os de Will eram da cor do céu bem na chegada da noite. Seus longos cílios os velaram enquanto ele dizia:
— Algumas vezes, quando eu tenho de fazer algo que não quero fazer, finjo que sou um personagem de um livro. É mais fácil saber o que eles iriam fazer.
— Sério? Quem você finge ser? D’artagnan? — Tessa perguntou, nomeando o único dos Três Mosqueteiros que ela se podia se lembrar.
— Esta é, com certeza, a melhor coisa que eu faço, que eu já fiz — Will citou — este será, com certeza, o melhor descanso que terei e que jamais tive.
— Sydney Carton? Mas você disse que odiava Um conto de duas cidades!
— Não realmente — Will parecia imperturbável pela sua mentira.
— E Sydney Carlton era um alcoólatra prolixo.
— Exatamente. Aí está um homem que era inútil, e sabia que era inútil, e ainda sim não importa o quanto ele tentasse afogar sua alma, sempre havia uma parte dele capaz de uma grande ação — Will abaixou sua voz — o que é que ele fala para Lucie Manette? Que embora ele seja fraco, ele ainda consegue queimar?
Tessa, que já tinha lido Um conto de duas cidades mais vezes que podia contar, sussurrou:
— E ainda assim eu tive a fraqueza, e ainda tenho a fraqueza de desejar que você saiba com quão maestria repentina você me acendeu, pilha de cinzas que sou, em fogo — ela hesitou — mas isto era porque ele a amava.
— Sim. Ele a amava o bastante para saber que ela estava melhor sem ele.
As mãos de Will ainda estavam sobre as dela, o calor queimando pelas luvas dela. O vento estava forte lá fora, e tinha desarrumado seus cabelos negros quando eles cruzaram o pátio do Instituto até a carruagem. Isto o fazia parecer mais jovem, e mais vulnerável – e seus olhos, também, estavam vulneráveis, abertos como uma porta. O jeito que ele estava olhando para ela... nunca teria pensado que Will pudesse, ou iria, olhar para alguém daquele jeito. Se ela pudesse ficar corada, pensou, estaria corada agora.
E então desejou não ter pensado naquilo. Por aquele pensamento levava, inevitável e desagradavelmente, a outro: estava ele olhando para ela agora, ou para Camille, que era de fato, primorosamente bela? Era esta a razão para a mudança em sua expressão? Ele podia ver Tessa ou apenas a concha dela?
Ela se afastou, tirando suas mãos das dele, embora estivessem fechadas com força em volta das dela. Ela levou um momento para tirá-las.
— Tessa... — ele começou, mas antes que pudesse dizer mais, a carruagem fez uma parada abrupta que fez com que as cortinas balançassem.
Thomas disse:
— Nós estamos aqui! — do assento do condutor.
Will, depois de tomar um longo fôlego, abriu a porta e desceu até a calçada, levantando a mão para ajudá-la a descer depois dele.
Tessa inclinou a cabeça enquanto saía da carruagem para evitar esmagar alguma das rosas no chapéu de Camille. Embora Will usasse luvas, ela podia quase sentir o sangue pulsando sob sua pele, mesmo pela camada dupla de tecido que os separava. Ele estava corado, a cor alta em suas bochechas, e ela se perguntou se era o frio chicoteando sangue em sua face, ou outra coisa.
Eles estavam parados em frente a uma casa branca alta com uma entrada de colunas brancas. Era cercada de casas similares dos dois lados, como fileiras de dominó claro. Em cima de um lance de escadas brancas estava um par de portas duplas pintadas de preto. Elas estavam entreabertas, e Tessa podia ver o brilho da luz de velas vindo de dentro, tremulando como uma cortina.
Tessa se virou para olhar Will. Atrás dele, Thomas estava sentado na frente da carruagem, seu chapéu inclinado para baixo para esconder seu rosto. A pistola com cabo de prata guardada no bolso de seu colete estava totalmente escondida de vista.
Em algum lugar de sua mente, ela sentiu Camille rindo, e ela sabia, sem saber como, que estava sentindo o divertimento da mulher vampira com sua admiração de Will.
Aí esta você, Tessa pensou, aliviada apesar de seu aborrecimento. Ela estava começando a temer que a voz interior de Camille nunca viesse até ela.
Ela se afastou de Will, levantando o queixo. A pose arrogante não era natural para ela – mas era para Camille.
— Você irá se dirigir a mim não como Tessa, mas como um servente iria — ela disse, seus lábios crispando — agora venha.
Ela moveu sua cabeça imperiosamente em direção as escadas e começou a andar sem olhar para trás para ver se ele a estava seguindo.
Um lacaio vestido elegantemente a esperava no topo das escadas.
— Vossa Senhoria — ele murmurou, e enquanto ele se curvou, Tessa viu duas perfurações de presas em seu pescoço, logo acima do colarinho.
Ela virou a cabeça para ver Will atrás dela, e estava prestes a apresentá-lo ao lacaio quando a voz de Camille sussurrou em sua cabeça. Nós não apresentamos nossos bichos de estimação humanos uns para os outros. Eles são nossa propriedade sem nome, a menos que decidamos dar nomes a eles.
Ugh, Tessa pensou. Em sua repugnância, ela mal notou enquanto o lacaio a guiava por um corredor e para dentro de uma grande sala com piso de mármore. Ele se curvou de novo e partiu; Will se moveu para ficar ao lado dela, e por um momento os dois ficaram parados olhando.
O espaço era iluminado apenas por velas. Dezenas de candelabros dourados pontilhavam a sala, grossas velas brancas queimando no suporte. Mãos esculpidas em mármore se estendiam das paredes, cada uma delas segurando uma vela escarlate, gotas de cera vermelhas florescendo como rosas pelos lados do mármore esculpido.
E entre os candelabros se moviam vampiros, seus rostos tão brancos quanto as nuvens, seus movimentos graciosos, fluidos e estranhos. Tessa podia ver as similaridades deles com Camille, as características que eles tinham em comum – a pele sem poros, os olhos da cor de joias, as bochechas pálidas pintadas com carmim artificial. Alguns pareciam mais humanos que outros; muitos estavam vestidos com a moda de eras passadas – calções e peitilhos, saias tão grandes quantos as de Maria Antonieta ou montes de tecido atrás, punhos de renda e roupas de babados.
O olhar de Tessa esquadrinhou a sala freneticamente, procurando uma figura loira conhecida, mas Nathaniel não estava em lugar nenhum. Em vez disso ela se encontrou tentando não olhar para uma mulher alta e esquelética, vestida à moda de pesadas perucas e muito pó de uma centena de anos atrás. Seu rosto era forte e medonho, mais branco que o talco em seu cabelo.
Seu nome era Lady Delilah, a voz de Camille sussurrou na mente de Tessa. Lady Delilah segurava uma figura delicada pela mão, e a mente de Tessa recuou – uma criança, neste lugar? – mas quando a figura se virou, ela viu que também era um vampiro, olhos negros fundos como poços no rosto infantil arredondado. Ele sorriu para Tessa, mostrando as pressas descobertas.
— Precisamos procurar por Magnus Bane — Will disse sob sua respiração — ele deve nos guiar por esta bagunça. Eu devo mostrá-lo se o vir.
Ela estava prestes a dizer a Will que Camille iria reconhecer Magnus para ela, quando avistou um homem esguio com cabelos loiros vestindo um fraque preto. Tessa sentiu seu coração saltar – e então cair em amargo desapontamento. Não era Nathaniel. Este homem era um vampiro, com um rosto angular e pálido.
Seu cabelo não era amarelo como o de Nate, mas quase incolor sob a luz das velas. Ele deu uma piscada de olhos para Tessa e começou a se mover na direção dela, passando pela multidão.
Não havia apenas vampiros entre eles, Tessa viu, mas humanos subjugados também. Eles carregavam travessas brilhantes, e nas travessas estavam conjuntos de copos vazios. Ao lado dos copos ficava uma série de utensílios de prata, todos pontiagudos. Facas, é claro, e finas ferramentas como as que os sapateiros usam para perfurar buracos no couro.
Enquanto Tessa olhava confusa, um dos subjugados foi parado pela mulher com a peruca empoada de branco. Ela estalou seus dedos imperiosamente, e o subjugado – um garoto pálido com uma jaqueta cinza e calças compridas – virou sua cabeça para o lado obedientemente. Depois de pegar um pequeno furador da travessa com seus dedos magros, a vampira arrastou a ponta afiada através da pele do pescoço do garoto, logo abaixo de seu maxilar. Os copos chacoalharam na travessa enquanto sua mão tremia, mas ele não a deixou cair, nem mesmo quando a mulher levantou um copo e o pressionou contra sua garganta para que o sangue caísse dentro dele em um filete.
O estômago de Tessa se apertou com uma mistura repentina de repulsão... e fome. Ela não podia negar a fome, mesmo que pertencesse a Camille e não a ela. Mais forte que a sede, porém, era seu horror. Ela observou enquanto a vampira levantava o copo até seus lábios, o garoto humano do lado dela parado com o rosto pálido e tremendo enquanto ela bebia.
Ela queria pegar a mão de Will, mas uma baronesa vampira nunca iria segurar a mão de seu humano subjugado. Ela endireitou sua coluna e acenou para Will ficar a seu lado com um rápido estalar de dedos. Ele olhou para cima com surpresa, então se moveu para se juntar a ela, claramente lutando para esconder sua contrariedade. Mas precisava escondê-lo.
— Agora, não vá ficar perambulando por aí, William — ela disse com um olhar significativo — eu não quero te perder na multidão.
O maxilar de Will se firmou.
— Estou tendo a estranha sensação de que você está gostando disso — ele disse em voz baixa.
— Nada de estranho sobre isto — sentindo-se inacreditavelmente corajosa, Tessa deu um leve toque embaixo do queixo dele com a ponta de seu leque — simplesmente se comporte.
— Eles são tão difíceis de treinar, não? —O homem com o cabelo incolor emergiu da multidão, inclinando a cabeça em direção a Tessa — humanos subjugados, isto é — ele adicionou, confundindo sua expressão assustada com confusão — quando você os tem treinados propriamente, eles morrem de uma coisa ou outra. Criaturas delicadas, humanos. Toda a longevidade de borboletas.
Ele sorriu. O sorriso mostrou dentes. Sua pele tinha a palidez azul de gelo endurecido. Seu cabelo era quase branco e caía reto até os ombros, pincelando a gola de seu elegante casaco negro. Seu colete era de seda cinza, ilustrado com um padrão de símbolos prateados curvados. Ele parecia um príncipe russo saído de um livro.
— É bom lhe ver, Lady Belcourt — ele disse, e também havia um sotaque em sua voz, não francês, mais eslavo — tive um vislumbre de uma carruagem nova pela janela?
Este é de Quincey, a voz de Camille sussurrou na mente de Tessa. Imagens apareceram de repente em seu cérebro, como uma fonte sendo ligada, despejando visões ao invés de água. Ela se viu dançando com de Quincey, suas mãos nos ombros dele; ela às margens de um riacho negro sob o céu branco da noite do norte, observando enquanto ele se alimentava de algo pálido espalhado na grama; ela sentada imóvel em uma longa mesa com outros vampiros, de Quincey à cabeceira, enquanto ele gritava e berrava com ela e jogava seu punho para baixo com tanta força que o tampo de mármore da mesa estremeceu criando rachaduras. Ele estava gritando com ela, algo sobre um lobisomem e uma relação que ela iria viver para se arrepender. Então estava sentada sozinha em uma sala, no escuro, chorando, e de Quincey entrou e se ajoelhou em frente sua cadeira e pegou sua mão, esperando confortá-la, embora tenha sido ele quem lhe causara dor. Vampiros podem chorar? Tessa pensou primeiro, e então, eles já se conhecem há um longo tempo, Alexei de Quincey e Camille Belcourt. Eles foram amigos uma vez, e ele acha que ainda são amigos.
— De fato, Alexei — ela disse, e enquanto o dizia, soube que este era o nome que estava tentando lembrar à mesa de jantar na outra noite – o nome estrangeiro que as Irmãs Sombrias tinham falado. Alexei. — Eu queria algo um pouco... mais espaçoso.
Ela estendeu sua mão, e ficou parada enquanto ele a beijava, seus lábios frios na sua pele.
Os olhos de de Quincey passaram de Tessa para Will, e ele lambeu seus lábios.
— E um novo subjugado também, eu vejo. Este é bem atraente — ele estendeu uma fina mão pálida e arrastou seu dedo indicador pela bochecha de Will até sua mandíbula — uma coloração pouco usual — ele meditou — estes olhos.
— Obrigada — disse Tessa, da mesma maneira de alguém sendo elogiado por uma escolha particularmente de bom gosto de papel de parede.
Ela observou nervosamente enquanto de Quincey se movia ainda mais para perto de Will, que parecia pálido e tenso. Ela se perguntou se ele estava tendo problemas em se conter quando certamente cada um dos seus nervos estava gritando Inimigo! Inimigo!
De Quincey arrastou seu dedo da mandíbula de Will para sua garganta, ao ponto de sua clavícula onde sua pulsação batia.
— Aqui — ele disse, e desta vez, quando ele sorriu, suas pressas brancas estavam visíveis.
Elas eram afiadas e finas nas pontas, como agulhas. Suas pálpebras se abaixaram, langorosas e pesadas, e sua voz estava grossa quando ele falou.
— Você não iria se importar, iria Camille, se eu desse apenas uma mordidinha...
A visão de Tessa ficou branca. Ela viu de Quincey de novo, a frente de sua camisa escarlate com sangue – e viu um corpo balançando de cabeça para baixo em uma árvore na beira do riacho escuro, dedos pálidos balançando nas águas negras...
Sua mão se levantou, mais rápido do que ela jamais imaginou que podia se mover, e pegou o punho de de Quincey.
— Não, meu querido — ela disse, um tom lisonjeiro em sua voz — eu gostaria tanto de mantê-lo para mim mesma só um pouco. Você sabe como o seu apetite lhe carrega de vez em quando.
Ela abaixou suas pálpebras.
De Quincey riu.
— Por você, Camille, eu irei exercitar minha restrição — ele tirou o punho de seu aperto, e por um momento, debaixo da atitude de flerte, Tessa pensou ter visto um instante de raiva nos seus olhos, rapidamente mascarado — em honra ao nosso longo entendimento.
— Obrigada, Alexei.
— Você pensou um pouco mais, minha cara, sobre minha oferta de adesão ao Clube Pandemônio? Sei que os mundanos te entediam, mas eles são uma fonte de fundos, nada mais. Aqueles como nós no conselho estão no limite de algumas muito... excitantes descobertas. Poder além dos seus sonhos mais loucos, Camille.
Tessa esperou, mas a voz interna de Camille estava calada. Por quê? Ela lutou contra o pânico e forçou um sorriso para de Quincey.
— Meus sonhos — ela falou, esperando que ele pensasse que a rouquidão em sua voz fosse de divertimento e não medo — podem já ser mais selvagens do que você imagina.
Ao lado dela, ela podia dizer que Will tinha lhe lançado um olhar surpreso; ele rapidamente controlou sua expressão para suavidade, e olhou para outro lado. De Quincey, seus olhos reluzindo, apenas sorriu.
— Eu apenas peço que você considere minha oferta, Camille. E agora devo cuidar de meus outros convidados. Confio que irei lhe ver na cerimônia?
Confusa, ela simplesmente assentiu.
— É claro.
De Quincey se curvou, virou e desapareceu na multidão. Tessa soltou seu ar. Ela não tinha notado que o estava segurando.
— Não — disse Will suavemente do seu lado — vampiros não precisam respirar, lembre-se.
— Meu Deus, Will — Tessa percebeu que estava tremendo — ele teria te mordido.
Os olhos de Will estavam negros de raiva.
— Eu o teria matado primeiro.
Uma voz falou ao lado do cotovelo de Tessa:
— E então vocês dois estariam mortos.
Ela se virou e viu que um homem alto havia surgido atrás dela, tão silencioso como se tivesse flutuado para lá como fumaça. Ele usava um elaborado paletó de brocado, como algo saído do século passado, com renda branca desordenada em sua gola e punho. Abaixo do longo casaco Tessa viu calções e sapatos de cano alto. Seu cabelo era como seda crua preta, tão escuro que parecia ter um brilho azulado; sua pele era morena, o aspecto de suas feições como as de Jem. Ela se perguntou se talvez, como Jem, ele fosse de origem estrangeira. Em uma das suas orelhas ele ostentava uma argola de prata na qual balançava um pingente de diamante do tamanho de um dedo, que cintilava brilhantemente sob as luzes, e haviam diamantes engastados no topo de sua bengala de prata. Ele parecia brilhar por todo lado, como pedra enfeitiçada. Tessa olhou; ela nunca tinha visto ninguém vestido de uma maneira tão maluca.
— Este é Magnus — Will apresentou tranquilamente, soando aliviado — Magnus Bane.
— Minha querida Camille — Magnus disse, se curvando para beijar sua mão enluvada — nós estivemos separados por muito tempo.
No momento em que ele a tocou, as memórias de Camille vieram correndo em uma inundação – memórias de Magnus segurando-a, beijando-a, tocando-a de uma maneira distintamente íntima e pessoal. Tessa moveu sua mão para trás com um guincho. E agora você reaparece, ela pensou ressentida na direção de Camille.
— Eu entendo — ele murmurou, se endireitando.
Seus olhos, quando ele os levantou para Tessa, quase a fizeram perder a compostura: eles eram verde e ouro com as pupilas verticais, os olhos de um gato colocados em um rosto distintamente humano. Estavam cheios de divertimento brilhante. Diferente dos olhos de Will, cujos olhos continham um traço de tristeza mesmo quando ele estava divertido, os olhos de Magnus estavam cheios de um prazer surpreendente. Eles andaram de lado, e ele moveu seu queixo em direção ao outro lado da sala, indicando que Tessa devia segui-lo.
— Venha comigo, então. Há uma sala privada onde nós podemos conversar.
Em espanto, Tessa o seguiu, Will a seu lado. Ela estava imaginando isto, ou os rostos pálidos dos vampiros se viravam para segui-la enquanto ela passava? Uma vampira ruiva em um elaborado vestido azul a olhou fixamente enquanto ela andava. A voz de Camille sussurrou que a mulher tinha ciúmes do afeto de de Quincey por ela. Tessa estava grata quando Magnus finalmente alcançou uma porta – tão habilmente colocada em um painel na parede que ela não percebeu que aquilo era uma porta até que o feiticeiro tivesse produzido uma chave. Ele abriu a porta com um clique macio. Will e Tessa os seguiram para dentro.
A sala era uma biblioteca, obviamente raramente usada; embora livros se alinhassem nas paredes, eles estavam sujos de poeira, assim como as cortinas de veludo que estavam penduradas nas janelas. Quando a porta se fechou atrás deles, a luz na sala diminuiu; antes que Tessa pudesse dizer algo, Magnus estalou seus dedos e fogos gêmeos apareceram nas lareiras em ambos os lados da sala. As chamas eram azuis, e o fogo em si tinha um aroma forte, como incenso queimando.
— Oh! — Tessa não pôde evitar uma pequena exclamação de surpresa de passar por seus lábios.
Com um sorriso, Magnus se jogou na grande mesa de mármore no centro da sala, e se deitou de lado, a cabeça suportada por sua mão.
— Você nunca tinha visto um feiticeiro fazer magia antes?
Will deu um suspiro exagerado.
— Por favor, abstenha-se de provocá-la, Magnus. Espero que Camille tenha lhe dito que ela conhece muito pouco do Mundo das Sombras.
— De fato — Magnus disse sem remorso — mas é difícil de acreditar, considerando o que ela pode fazer — seus olhos estavam sobre Tessa — eu vi o seu rosto quando beijei sua mão. Você soube quem eu era imediatamente, não soube? Você sabe o que Camille sabe. Existem alguns feiticeiros e demônios que podem mudar... tomar qualquer forma. Mas nunca ouvi falar de um que pudesse fazer o que você faz.
— Não se pode dizer com certeza que eu sou uma feiticeira. Charlotte diz que eu não sou marcada como uma feiticeira seria.
— Oh, você é uma feiticeira. Acredite nisso. Só porque você não tem orelhas de morcego... — Magnus viu Tessa franzir a testa, e levantou suas sobrancelhas — oh, você não quer ser uma feiticeira, quer? Você despreza a ideia.
— Eu apenas nunca pensei — Tessa falou em um sussurro — que fosse qualquer coisa além de humana.
O tom de voz de Magnus não era insensível.
— Pobre coitada. Agora que você sabe a verdade, já não pode voltar atrás.
— Deixe-a em paz, Magnus — o tom de Will era afiado — eu devo procurar pela sala. Se você não irá ajudar, pelo menos não atormente Tessa enquanto eu o faço.
Ele se moveu em direção à grande mesa de carvalho no canto da sala e começou a remexer os papeis em cima dela.
Magnus olhou em direção a Tessa e piscou.
— Acho que ele está com ciúmes — ele disse em um sussurro conspiratório.
Tessa balançou sua cabeça e se moveu em direção à estante mais próxima. Havia um livro aberto no meio da estante como se para exibi-lo. As páginas estavam cobertas com imagens intricadas, vivas, algumas partes das ilustrações brilhando como se tivessem sido pintadas no pergaminho com ouro. Tessa exclamou em surpresa.
— É uma Bíblia.
— Isto te impressiona? — Magnus perguntou.
— Eu achava que vampiros não podiam tocar em coisas sagradas.
— Isto depende do vampiro – quanto tempo ele tem estado vivo, que tipo de fé ele tem. De Quincey na verdade coleciona velhas Bíblias. Ele diz que dificilmente existe outro livro com tanto sangue em suas páginas.
Tessa olhou para a porta fechada. O barulho débil das vozes do outro lado era audível.
— Nós não iremos provocar algum tipo de comentário, nos escondendo aqui desta maneira? Os outros – os vampiros – tenho certeza que eles estavam olhando para nós enquanto entrávamos.
— Eles estavam olhando para Will — de algumas maneiras o sorriso de Magnus era enervante como o de um vampiro, mesmo que ele não tivesse presas — Will parece errado.
Tessa olhou de relance para Will, que estava remexendo pelas gavetas da mesa com mãos enluvadas.
— Acho isso difícil de acreditar, vindo de alguém vestido como você — Will disse.
Magnus ignorou-o.
— Will não se comporta como os outros humanos subjugados. Ele não olha para sua mestra com adoração cega, por exemplo.
— É este chapéu monstruoso dela — Will comentou — me desconcerta.
— Humanos subjugados nunca ficam “desconcertados” — Magnus replicou — eles adoram seus mestres vampiros seja o que eles estiverem usando. É claro, os convidados também estavam olhando porque eles sabem do meu relacionamento com Camille, e estão se perguntando o que nós poderíamos estar fazendo aqui na biblioteca... sozinhos.
Ele mexeu suas sobrancelhas para Tessa.
Tessa pensou em suas visões de antes.
— De Quincey... ele disse algo para Camille sobre ela se arrepender do seu relacionamento com um lobisomem. Ele fez aquilo soar como se ela tivesse cometido um crime.
Magnus, que agora estava deitado de costas e girando o bastão sobre sua cabeça, deu de ombros.
— Para ele isto seria. Vampiros e lobisomens desprezam uns ao outros. Eles clamam que isto tem algo a ver com o fato de que as duas raças de demônios que os geraram estavam envolvidas em uma disputa de raças, mas se você me perguntar, é simplesmente porque ambos são predadores, e predadores sempre ressentem incursões dentro de seus territórios. Não que os vampiros gostem tanto assim das fadas, ou minha espécie também, mas de Quincey gosta um tanto de mim. Acha que nós somos amigos. Na verdade, suspeito que ele gostaria de ser mais que amigos — Magnus sorriu, para a confusão de Tessa — mas eu o desprezo, embora ele não saiba disto.
— Então por que gastar tempo com ele? — perguntou Will, que tinha se movido para uma alta escrivaninha entre duas das janelas e estava examinando seus conteúdos. — Por que vir para esta casa?
— Política — Magnus respondeu, dando de ombros novamente — ele é o chefe do clã; Camille não vir para suas festas quando convidada seria interpretado como um insulto. E eu permitir que ela viesse sozinha seria... negligente. De Quincey é perigoso, e não menos para aqueles de sua própria espécie. Especialmente aqueles que o desagradaram no passado.
— Então você deveria... — Will começou, e parou, sua voz alterando — encontrei algo — ele fez uma pausa — talvez você devesse dar uma olhada nisto, Magnus.
Will veio até a mesa e colocou em cima dela o que parecia uma longa folha de papel enrolado. Ele gesticulou para Tessa se juntar a ele, e desenrolou o papel pela superfície da mesa.
— Havia pouca coisa de interesse naquela mesa, mas eu encontrei isto escondido em uma gaveta falsa no armário. Magnus, o que você acha?
Tessa, que tinha se movido para ficar ao lado de Will na mesa, olhou para o papel. Estava coberto com um diagrama grosseiro de um esqueleto humano feito de pistões, rodas dentadas e placas de metal martelado. O crânio tinha uma mandíbula articulada, órbitas abertas para olhos e uma boca que acabava logo atrás dos dentes. Existia um painel no peito também, igual ao de Miranda. Por todo o lado esquerdo da página estavam rabiscadas notas, ao que parecia, em uma linguagem que Tessa não conseguiu decifrar. As letras eram completamente não familiares.
— Diagrama para um autômato — disse Magnus, inclinando a cabeça para o lado — um ser humano artificial. Humanos sempre foram fascinados pelas criaturas – suponho que seja porque eles são humanoides, mas não podem morrer ou se ferir. Você já leu O livro de conhecimento de engenhosos dispositivos mecânicos?
— Eu nunca nem mesmo ouvi falar nele — Will respondeu — há algum pântano deserto nele, envolto em uma misteriosa névoa? Noivas fantasmagóricas andando pelos corredores de castelos em ruínas? Um bonito rapaz correndo para resgatar uma bela, mas pobre donzela?
— Não — disse Magnus — há um pedaço bastante picante sobre rodas dentadas lá pela metade, mas realmente a maior parte dele é seca.
— Então Tessa não deve ter lido, também — Will falou.
Tessa lhe lançou um olhar cortante, mas não disse nada; ela não tinha lido, e não estava no humor de deixar Will atingi-la.
— Bem, então, — ele foi escrito por um estudioso árabe, dois séculos antes de Leonardo da Vinci, e descreve como máquinas poderiam ser construídas para imitar as ações de um ser humano. Agora, não há nada de alarmante nisto por si só. Mas é isto — o dedo longo de Magnus passou gentilmente pela escrita do lado esquerdo da página — que me preocupa.
Will se inclinou para mais perto. Sua manga roçou o braço de Tessa.
— Sim, é sobre isto que eu queria te perguntar. Isto é um feitiço?
Magnus assentiu.
— Um feitiço de ligação. Feito para infundir energia demoníaca dentro de um objeto inanimado, deste modo dando a este objeto um tipo de vida. Eu já vi o feitiço sendo usado. Antes dos Acordos, vampiros gostavam de se entreter criando pequenos mecanismos demoníacos como caixas de música que tocariam apenas à noite, cavalos mecânicos que podiam cavalgar apenas depois do pôr do sol, este tipo de tolices — ele bateu com o dedo no topo de sua bengala, pensativo — um dos grandes problemas de criar autômatos convincentes, é claro, sempre foi sua aparência. Nenhum outro material dá realmente o semblante de carne humana.
— Mas e se alguém usasse carne humana? — Tessa perguntou.
Magnus pausou delicadamente.
— O problema aqui, para inventores humanos, é óbvio. Preservar a carne destrói sua aparência. Alguém teria de usar magia, e então usar magia de novo, para vincular a energia demoníaca ao corpo mecânico.
— E o que isto iria fazer? — Will perguntou.
— Foram construídos autômatos que podem escrever poemas, desenhar paisagens – mas apenas aquelas que eles são direcionados a criar. Eles não têm criatividade individual ou imaginação. Animados por energia demoníaca, entretanto, um autômato teria uma medida de pensamento e vontade. Mas qualquer espírito ligado está escravizado. Ele seria inevitável e totalmente obediente a quem quer que tivesse feito o vínculo.
— Um exército mecânico — Will disse, e havia um tipo de humor amargo em sua voz — nascido nem do Inferno nem do Céu.
— Eu não iria tão longe — Magnus respondeu — energias demoníacas são dificilmente um item fácil de conseguir. Alguém deve invocar demônios e então vinculá-los, e você sabe quão difícil este processo é. Obter energias demoníacas suficientes para criar um exército seria quase impossível e de um risco extraordinário. Mesmo para um bastardo mal intencionado como de Quincey.
— Entendo — e com isto, Will enrolou o papel e colocou dentro de sua jaqueta — muito obrigado pela ajuda, Magnus.
Magnus pareceu fracamente intrigado, mas sua resposta foi cordial.
— É claro.
— Acredito que você não sentiria muito em ver de Quincey sumir e ter outro vampiro em seu lugar — Will comentou — você já o observou verdadeiramente quebrando a Lei?
— Uma vez. Eu fui convidado aqui para testemunhar uma de suas “cerimônias”. Como aconteceu... — Magnus pareceu estranhamente sombrio — bem, deixe-me mostrar a vocês.
Ele se virou e se moveu em direção à estante que Tessa esteve examinando mais cedo, fazendo um gesto para eles se juntarem a ele. Will o seguiu, Tessa a seu lado. Magnus estalou seus dedos de novo, e enquanto faíscas azuis voaram, a Bíblia ilustrada deslizou para o lado, revelando um pequeno buraco que tinha sido cortado na madeira no fundo da prateleira.
Quando Tessa se inclinou para frente em surpresa, viu que ele oferecia uma vista para uma elegante sala de música. Pelo menos, foi o que ela pensou no início, vendo as cadeiras arrumadas em fileiras de frente para o fundo da sala; parecia um tipo de teatro. Fileiras de candelabros estavam ali para iluminação, cortinas de cetim vermelho até o chão bloqueavam as paredes do fundo, e o chão era levemente elevado, criando um tipo de palco improvisado. Não havia nada nele a não ser uma única cadeira de madeira de espaldar alto.
Algemas de metal estavam anexadas aos braços da cadeira, brilhando como carapaças de inseto à luz de vela. A madeira na cadeira estava manchada aqui e ali de vermelho-escuro. As pernas da cadeira, Tessa viu, estavam pregadas no chão.
— É aqui que eles têm suas pequenas... performances — Magnus falou, um tom suave de repugnância em sua voz — eles trazem o humano e o prendem – ou a prendem – na cadeira. Então eles revezam drenando a vitima lentamente, enquanto a multidão assiste e aplaude.
— E eles apreciam isso? — Will indagou. A aversão em sua voz era mais do que um tom suave. — A dor do mundano? Seu medo?
— Nem todos os Filhos da Noite são assim — Magnus respondeu calmamente — estes são os piores deles.
— E as vítimas, onde eles os acham?
— Criminosos, a maioria — Magnus respondeu — bêbados, viciados, prostitutas. Os esquecidos e perdidos. Aqueles de quem ninguém sentirá falta — ele olhou para Will firmemente — você gostaria de elaborar seu plano?
— Nós começamos quando virmos a Lei ser quebrada. No momento que um vampiro se mover para ferir um humano, eu farei um sinal para o Enclave. Eles irão atacar.
— Sério? Como eles irão entrar?
— Não se preocupe com isto — Will estava imperturbável — seu trabalho é levar Tessa neste ponto e tirá-la em segurança daqui. Thomas está esperando lá fora com a carruagem. Joguem-se dentro dela e ele irá leva-los de volta para o Instituto.
— Parece um desperdício dos meus talentos, me atribuir para tomar conta de uma garota de tamanho moderado — Magnus observou — certamente você poderia me usar...
— Isto é um assunto de Caçadores de Sombras. Nós fizemos a Lei, e nós mantemos a Lei. A assistência que você nos deu até agora tem sido inestimável, mas não exigimos nada mais de você.
Magnus encontrou os olhos de Tessa sobre os ombros de Will; seu olhar era irônico.
— O isolamento orgulhoso dos Nephilins. Eles têm uso para você quando precisam, mas não podem se levar a dividir uma vitória com Seres do Submundo.
Tessa se virou para Will.
— Você também está me mandando embora antes da luta começar?
— Eu devo. Será melhor para Camille não ser vista cooperando com Caçadores de Sombras.
— Isto é absurdo — disse Tessa — de Quincey saberá que eu – ela – te trouxe aqui. Ele saberá que ela mentiu sobre onde te encontrou. Será que ela pensa que, depois disto, o resto do clã não saberá que ela é uma traidora?
Em algum lugar no fundo de sua cabeça, a risada suave de Camille ronronou. Ela não soava com medo.
Will e Magnus trocaram um olhar.
— Ela não espera — Magnus observou — que um único vampiro que está aqui esta noite sobreviva para acusá-la.
— Os mortos não podem contar historias — Will falou suavemente.
A luz oscilante na sala pintava seu rosto em sombras alternantes de negro e ouro; a linha de seu queixo estava rígida. Ele observou pelo buraco, seus olhos estreitando.
— Veja.
Os três se aglomeraram para chegar mais perto do buraco, pelo qual eles viram as portas em um canto da sala de musica se abrir. Através delas estava a grande sala de estar iluminada a velas; vampiros começaram a passar pela porta, tomando seus lugares nos assentos em frente ao “palco”.
— Está na hora — Magnus disse calmamente, e deslizou o painel de madeira, fechando-o.
A sala de música estava quase cheia. Tessa, de braço dado com Magnus, observou enquanto Will fazia seu caminho através da multidão, procurando por três assentos juntos. Ele estava mantendo a cabeça baixa, olhos no chão, mas mesmo assim...
— Eles ainda estão olhando para ele — ela disse para Magnus baixinho — Will, quero dizer.
— Claro que eles estão — Magnus falou. Seus olhos refletiam a luz como os de um gato enquanto eles examinavam a sala — olhe para ele. O rosto de um anjo mau e olhos como o céu à noite no Inferno. Ele é muito bonito, e os vampiros gostam disso. Não posso dizer que me incomoda também — Magnus sorriu — cabelo preto e olhos azuis são a minha combinação favorita.
Tessa levantou a mão para dar um tapinha nos pálidos cachos loiros de Camille.
Magnus deu de ombros.
— Ninguém é perfeito.
Tessa foi poupada de responder; Will tinha encontrado um conjunto de cadeiras e estava chamando-os com uma mão enluvada. Ela tentou não prestar atenção à forma como os vampiros estavam olhando para ele enquanto deixava Magnus levá-la para os assentos. Era verdade que ele era bonito, mas por que eles se importavam? Will era apenas alimento para eles, não era?
Ela sentou-se com Magnus de um lado e Will do outro, suas saias de tafetá de seda sussurrando como folhas em um vento forte. A sala estava fria, não como uma sala lotada de seres humanos, que estariam exalando calor corporal. A mão de Will deslizou de seu braço quando ele levantou a mão para tocar o bolso do colete, e ela viu que seu braço estava salpicado de arrepios. Ela se perguntou se os companheiros humanos dos vampiros estavam sempre com frio.
Um ruído de sussurros atravessou a sala, e Tessa arrancou seu olhar de Will. A luz dos candelabros não atingia os recessos distantes da sala; porções do “palco” – o fundo da sala – estavam manchadas com sombras, e até mesmo os olhos vampirescos de Tessa não podiam discernir o que estava se movendo dentro da escuridão até que de Quincey apareceu de repente das sombras.
A plateia ficou em silêncio. Então de Quincey sorriu. Era um sorriso maníaco, mostrando presas, e transformou seu rosto. Ele parecia descontrolado e selvagem agora, como um lobo. Um murmúrio de apreciação abafada atravessou a sala, da maneira como um público pode mostrar apreço por um ator com uma presença de palco particularmente boa.
— Boa noite — de Quincey falou — bem-vindos, amigos. Aqueles de vocês que se juntaram a mim aqui — e ele sorriu diretamente para Tessa, que estava muito nervosa para fazer qualquer coisa além de olhar fixamente de volta — são filhos e filhas orgulhos dos Filhos da Noite. Nós não dobramos o pescoço sob o jugo opressivo chamado de Lei. Nós não respondemos a Nephilins. Nem iremos abandonar nossos costumes antigos a seu bel prazer.
Era impossível não notar o efeito que o discurso de de Quincey, estava tendo sobre Will. Ele estava tenso como um arco, mãos fechadas em seu colo, as veias se destacando em seu pescoço.
— Nós temos um prisioneiro — de Quincey continuou — seu crime é trair os Filhos da Noite — ele varreu o seu olhar por toda a audiência de vampiros à espera — e qual é a punição para tal traição?
— É a morte — gritou uma voz, a vampira Delilah.
Ela estava inclinada para frente em seu assento, uma ânsia terrível no rosto.
Os outros vampiros assumiram o seu coro.
— Morte! Morte!
Mais formas sombrias escorregaram por entre as cortinas que formavam o palco improvisado. Dois vampiros do sexo masculino, segurando entre eles a forma um homem humano debatendo-se. Um capuz preto escondia as feições do homem. Tudo o que Tessa podia ver era que ele era esguio, provavelmente jovem – e imundo, suas roupas finas rasgadas e esfarrapadas. Seus pés descalços deixaram manchas de sangue nas tábuas enquanto os homens o arrastavam para frente e o atiravam na cadeira. Um débil suspiro de simpatia escapou da garganta de Tessa; ela sentiu Will tensionar ao lado dela.
O homem continuou a se debater debilmente como um inseto na ponta de um alfinete enquanto os vampiros amarravam seus pulsos e tornozelos à cadeira, e depois recuavam.
De Quincey sorriu; suas presas estavam fora. Elas brilhavam como alfinetes de marfim enquanto ele inspecionava a multidão. Tessa podia sentir a inquietação dos vampiros – e mais do que sua inquietação, sua fome. Não mais eles se assemelhavam a um público educado de espectadores humanos. Eles estavam tão ávidos quanto leões farejando a presa, saltando para frente em suas cadeiras, seus olhos largos e brilhantes, suas bocas abertas.
— Quando você pode chamar o Enclave? — Tessa perguntou a Will em um sussurro urgente.
A voz de Will estava apertada.
— Quando ele tirar sangue. Temos de vê-lo fazer isso.
— Will...
— Tessa — ele sussurrou seu nome verdadeiro, os dedos segurando os dela — fique quieta.
Relutantemente, Tessa voltou sua atenção para o palco, onde de Quincey estava se aproximando do prisioneiro algemado. Ele parou junto à cadeira, estendeu o braço e seus dedos finos e pálidos roçaram o ombro do homem, tão leve como o toque de uma aranha. O prisioneiro convulsionou, sacudindo em terror desesperado enquanto a mão do vampiro deslizava do ombro até o pescoço. De Quincey colocou dois dedos brancos no pulso do homem, como se ele fosse um médico verificando a pulsação de um paciente.
De Quincey usava um anel de prata em um dedo, Tessa viu, um lado do qual era afiado como uma agulha que se projetou quando ele apertou a mão em um punho. Houve um clarão de prata e o prisioneiro gritou – o primeiro som que ele tinha feito. Havia algo de familiar no som.
Uma fina linha vermelha apareceu na garganta do prisioneiro. Sangue brotou e derramou-se no vão de sua clavícula. O prisioneiro se debateu e lutou enquanto de Quincey, seu rosto agora uma máscara ritual de fome, estendia uma mão para tocar com dois dedos o líquido vermelho. Ele ergueu os dedos manchados até sua boca. A multidão estava sibilando e gemendo, mal conseguindo ficar em seus lugares. Tessa olhou para a mulher com o chapéu de plumas brancas. Sua boca estava aberta, o queixo molhado de baba.
— Will — murmurou Tessa — Will, por favor.
Will olhou além dela, para Magnus.
— Magnus. Leve-a daqui.
Algo em Tessa se rebelou contra a ideia de ser mandada embora.
— Will, não, eu estou bem aqui...
A voz de Will era calma, mas seus olhos queimavam.
— Já falamos sobre isso. Vá, ou não convocarei o Enclave. Vá, ou o homem irá morrer.
— Venha.
Era Magnus, a mão em seu cotovelo, orientando-a a ficar em pé. Relutantemente, ela permitiu que o feiticeiro a colocasse de pé, e depois a levasse em direção às portas. Tessa olhou em volta ansiosamente para ver se alguém notou sua saída, mas ninguém estava olhando para eles. Toda a atenção estava focada em de Quincey e no prisioneiro, e muitos vampiros já estavam de pé, sibilando e aplaudindo e fazendo sons famintos desumanos.
Entre a multidão fervilhando, Will ainda estava sentado, inclinando-se para frente como um cão de caça ansiando para ser liberado da coleira. Sua mão esquerda deslizou no bolso do colete, e surgiu com algo de cobre escondido entre os dedos.
O fósforo.
Magnus abriu a porta atrás deles.
— Depressa.
Tessa hesitou, olhando de volta para o palco. De Quincey estava em pé atrás do prisioneiro agora. Sua boca sorridente estava manchada com sangue. Ele estendeu a mão e segurou o capuz do prisioneiro.
Will se levantou, o fósforo seguro no alto. Magnus xingou e puxou o braço de Tessa. Ela meio que virou como se quisesse ir com ele, então congelou quando de Quincey arrancou o capuz negro para revelar o preso embaixo.
Seu rosto estava inchado e machucado com espancamentos. Um de seus olhos estava roxo e fechado. Seu cabelo loiro estava colado ao crânio com sangue e suor. Mas nada disso importava; Tessa o teria reconhecido de qualquer maneira, em qualquer lugar. Ela sabia agora por que o seu grito de dor tinha soado tão familiar para ela.
Era Nathaniel.
Aaaaaaaaa
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