Capítulo 10 - A Virtude dos Anjos

A virtude dos anjos é que eles não podem deteriorar-se.
Sua falha é que eles não podem melhorar.
A falha do homem é que ele pode se deteriorar,
e sua virtude é que ele pode melhorar.
– Ditado hassídico

— Suponho que todos já sabem — comentou Will no café da manhã, no dia seguinte — que eu fui a um antro de ópio na noite passada.
Era uma manhã tranquila. Tinha amanhecido chuvosa e cinza, e dava para ouvir um som por todo o Instituto, como se o céu estivesse pressionando-o. Sophie vinha e ia da cozinha com pratos fumegantes de comida, seu rosto pálido com olhar apertado e pequeno; Jessamine afundou com seu chá; Charlotte parecia cansada e indisposta de sua noite passada na biblioteca; e os olhos de Will estavam avermelhados, o rosto machucado onde Jem o tinha atingido. Apenas Henry parecia ter energia ao ler o jornal com uma mão enquanto espetava seus ovos com a outra.
Jem foi notado, principalmente, por sua ausência. Quando Tessa acordara naquela manhã, tinha flutuado por um momento em um estado de êxtase de esquecimento, os acontecimentos da noite anterior como uma mancha escura. Então ela sentou-se e o horror absoluto caiu sobre ela como uma onda de queimadura de água quente.
Será que ela tinha realmente feito todas aquelas coisas com Jem? Sua cama... as mãos nele... a droga caída no chão. Ela levantara as mãos e tocara os cabelos. Eles caíram livres sobre os ombros, onde Jem tinha desfeito suas tranças. Oh, Deus, pensou ela. Eu realmente fiz tudo aquilo, era eu. Ela apertou as mãos aos olhos, sentindo uma mistura irresistível de confusão, medo, felicidade e – ela não podia negar que tinha sido maravilhoso à sua maneira – horror de si mesma, a humilhação terrível e total.
Jem pensaria que ela tinha perdido o controle. Não é de admirar que ele não pudesse enfrentar o seu café da manhã. Ela mal conseguia encarar-se no espelho.
— Vocês estão me ouvindo? — Will disse novamente, claramente decepcionado com a recepção de seu anúncio. — Eu disse que fui a um antro de ópio na noite passada.
Charlotte ergueu os olhos do café. Lentamente, ela dobrou o jornal, colocou sobre a mesa ao lado dela, e empurrou seus óculos de leitura para baixo de seu nariz arrebitado.
— Não. Esse aspecto, sem dúvida glorioso de suas atividades recentes, é desconhecido para nós, na verdade.
— Então é onde você esteve esse tempo todo? — Jessamine perguntou com indiferença, retirando um cubo de açúcar da tigela e começando a mordê-lo. — Você é um viciado desesperado agora? Dizem que leva apenas uma ou duas doses.
— Não era realmente um antro de ópio — Tessa protestou, antes que pudesse se conter — quer dizer, parecia ser mais um comércio de pós mágicos e coisas assim.
— Então talvez não fosse ópio precisamente — Will respondeu — mas ainda tomei algo. Viciante! — Acrescentou ele, pontuando essa última palavra com o dedo no ar.
— Oh, não um daqueles lugares administrados por ifrits, certo? — assinalou Charlotte. — Realmente, Will.
— Exatamente um desses lugares — Jem confirmou, chegando para o café da manhã e deslizando em uma cadeira ao lado de Charlotte – tão longe de Tessa como era possível sentar-se, ela notou, com uma sensação de beliscar em seu peito. Ele não olhou para ela também — na Avenida Whitechapel.
— E como você e Tessa sabem disso? — perguntou Jessamine, que pareceu revitalizada pela ingestão de açúcar ou pela expectativa de uma fofoca boa, ou ambos.
— Eu usei um feitiço de rastreamento para encontrar Will noite passada — Jem explicou — estava ficando preocupado com a sua ausência. Pensei que ele poderia ter esquecido o caminho de volta para o Instituto.
— Você se preocupa demais — Jessamine apontou — é bobagem.
— Você está certa. Eu não vou cometer esse erro novamente — Jem respondeu, alcançando o prato de kedgeree — como se viu, Will não estava necessitando da minha assistência.
Will olhou para Jem pensativo.
— Parece que acordei como o que eles chamam de carne velha de segunda — falou, apontando para a pele machucada sob seu olho — alguma ideia de como consegui isso?
— Nenhuma — Jem serviu-se de um chá.
— Ovos — falou Henry, sonhador, olhando para o prato — eu amo ovos. Eu poderia comê-los todos os dias.
— Havia realmente necessidade de levar Tessa com você para Whitechapel? — Charlotte perguntou a Jem, deslizando seus óculos e voltando a ler o jornal. Seus olhos castanhos eram de censura.
— Tessa não é feita de porcelana delicada — Jem respondeu — ela não vai quebrar.
Por alguma razão, esta afirmação, embora ele falasse ainda sem olhar para ela, enviou uma avalanche de imagens da noite anterior através da mente de Tessa, quando ela estava com Jem nas sombras de sua cama, as mãos segurando seus ombros, suas bocas ferozes se encontrando. Não, ele não a tinha tratado como se fosse quebrável. Uma inundação de calor queimou seu rosto, e ela olhou para baixo rapidamente, rezando para acabar o café e ela poder ir embora.
— Você pode se surpreender ao saber — disse Will — que eu vi algo bastante interessante no antro de ópio.
— Tenho certeza que você viu — Charlotte rebateu com aspereza.
— Foi um ovo? — Henry perguntou.
— Seres do Submundo — Will continuou — quase todos lobisomens.
— Não há nada de interessante sobre lobisomens — Jessamine soou ofendida — estamos nos concentrando em encontrar Mortmain agora, Will, se você não tiver esquecido, e não em um antro de drogas de Seres do Submundo.
— Eles estavam comprando yin fen — Will apontou — baldes dele.
Jem girou a cabeça para encontrar os olhos de Will.
— Eles já tinham começado a mudar de cor. Muitos já estavam com os cabelos e os olhos na cor prata. Até mesmo sua pele já tinha começado a trocar para prata.
— Isso é muito preocupante — Charlotte franziu o cenho — devemos falar com Woolsey Scott tão logo este assunto de Mortmain seja esclarecido. Se houver uma questão de dependência de pós de bruxo em sua área, ele vai querer saber sobre isso.
— Você acredita que ele já não saiba? — Will perguntou, sentado em sua cadeira. Ele parecia satisfeito por ter finalmente obtido uma reação à sua notícia. — É a área dele, depois de tudo.
— A área dele é a que contém a maior parte dos lobisomens de Londres — objetou Jem — ele não pode realmente controlar todos.
— Eu não tenho certeza se você pode esperar. Se quiser pegar Scott, posso falar com ele tão logo quanto for possível.
Charlotte inclinou a cabeça para o lado.
— E por que isso?
— Porque — Will respondeu — uma das ifrits disse que um lobisomem precisava de muito yin fen. Aparentemente, ele funciona em lobisomens como um estimulante, o que satisfaz bem o Magistrado, pois as drogas os mantem trabalhando a noite toda.
A xícara de chá de Charlotte bateu em seu pires.
— Trabalhar em quê?
Will sorriu, claramente satisfeito com o efeito que obteve.
— Eu não tenho nenhuma ideia. Foi aí que perdi a consciência. Eu estava tendo um sonho encantador sobre uma jovem que tinha tirado quase todas as suas roupas...
Charlotte estava pálida.
— Querido Deus, espero que Scott não esteja trabalhando com o Magistrado. De Quincey primeiro, agora os lobisomens – todos os nossos aliados. Os Acordos...
— Tenho certeza de que tudo vai ficar bem, Charlotte — disse Henry suavemente — Scott não parece o tipo que se envolveria com Mortmain.
— Talvez você devesse estar lá quando eu falar com ele — Charlotte observou — nominalmente, você é o chefe do Instituto.
— Oh, não — Henry respondeu com um olhar de horror — querida, você vai se sair melhor sem mim. Você é um gênio, realiza maravilhosamente bem as negociações, e eu não. E, além disso, a invenção em que estou trabalhando agora pode quebrar o exército mecânico em pedaços, se eu tiver as formulações certas!
Ele sorriu ao redor da mesa, orgulhoso. Charlotte olhou para ele por um longo momento, então empurrou sua cadeira para trás, levantou-se e caminhou para fora da sala sem dizer uma palavra.
Will olhou para Henry com os olhos semicerrados.
— Nada perturba os seus pensamentos, não é, Henry?
Henry piscou.
— O que você quer dizer?
— Arquimedes — Jem falou, sempre sabendo o que falar apesar de não olhar para ele — estava desenhando um diagrama matemático na areia quando sua cidade foi atacada pelos romanos. Ele estava tão concentrado no que estava fazendo que não viu o soldado que vinha por trás dele. Suas últimas palavras foram “Não perturbe meus círculos.” É claro que ele era já era um homem velho.
— E ele provavelmente nunca foi casado — disse Will, e sorriu para Jem do outro lado da mesa.
Jem não retornou o sorriso. Sem olhar para Will, ou Tessa – sem olhar para nenhum deles, ele se levantou e saiu da sala depois Charlotte.
— Ah, isso preocupa — Jessamine comentou — este é um daqueles dias em que todos estão em fúria? Porque eu simplesmente não tenho energia para isso.
Ela colocou a cabeça sobre os braços e fechou os olhos.
Henry olhou perplexo de Will para Tessa.
— O que é isso? O que eu fiz de errado?
Tessa suspirou.
— Nada terrível, Henry. Só que acho que Charlotte gostaria que você fosse com ela.
— Então por que ela não me disse isso? — Os olhos de Henry estavam tristes.
Sua alegria sobre ovos e invenções parecia ter desaparecido. Talvez ele não devesse ter se casado com Charlotte, Tessa pensou, seu humor tão sombrio durante um tempo. Talvez, como Arquimedes, ele teria sido mais feliz desenhado círculos na areia.
— Porque as mulheres nunca dizem o que pensam — Will respondeu.
Seus olhos se desviaram para a cozinha, onde Bridget estava limpando os restos da refeição. Seu canto flutuava lugubremente pela a sala de jantar.

"Temo que você esteja envenenado, meu pequeno garoto,
Temo que você esteja envenenado, minha alegria e conforto!
‘Oh sim, estou envenenado; mãe, faça minha cama logo,
Há uma dor no meu coração, e eu quero deitar."

— Juro que a mulher teria uma boa carreira cantando a morte de caçadores – ela se daria bem cantando essas baladas trágicas em torno das Seven Dials — disse Will — só não gosto que ela cante sobre envenenamento logo depois que comemos — ele olhou de lado para Tessa — você não deveria estar trocando de roupa para o treinamento? Não deveria treinar com os lunáticos Lightwood hoje?
— Sim, esta manhã tem treino, mas eu não preciso trocar de roupa. Nós estamos apenas praticando arremesso de faca — Tessa respondeu, um pouco espantada de que tivesse a capacidade de ter uma conversa leve e civilizada com Will após os acontecimentos da noite anterior.
O Lenço de Cyrill, com o sangue de Will, ainda estava na gaveta de sua cômoda; lembrou-se do calor dos lábios dele em seus dedos, e correu os olhos para longe dele.
— Que sorte que eu sou bom em arremesso de facas — Will se levantou e estendeu o braço para ela — venha, eu vou assistir o treinamento de Gideon e Gabriel. Quero ver um pouco de loucura esta manhã.



Will estava correto. Sua presença durante a sessão de treinamento pareceu deixar Gabriel louco. Gideon não pareceu ligar muito, mas ensinou suas de forma impassível.
Will se sentou em um banco baixo de madeira que corria ao longo de uma das paredes e comia uma maçã, suas longas pernas esticadas ante ele, às vezes dando conselhos que Gideon ignorava, fazendo com que Gabriel errasse os golpes.
— Ele deveria ficar aqui? — Gabriel resmungou pela segunda vez para Tessa, quase o deixando uma faca cair enquanto entregava a ela.
Ele colocou a mão em seu ombro, mostrando-lhe a linha de visão para o destino que ela visava – um círculo preto desenhado na parede. Ela sabia o quanto ele estava perturbado com a presença de Will.
— Você não pode pedir para ele ir embora?
— Agora, por que eu faria isso? — Tessa perguntou razoavelmente. — Will é meu amigo, e você é alguém de quem eu não gosto muito.
Ela jogou a faca. Errou o alvo por vários metros, atingindo a parede perto do chão.
— Não, você ainda não pegou o jeito... e o que você quer dizer com não gosta de mim? — Gabriel perguntou, entregando-lhe a faca por reflexo, mas sua expressão estava muito surpresa, de fato.
— Bem — disse Tessa, fazendo mira ao longo da faca — você se comporta como se não gostasse de mim. Na verdade, você se comporta como se não gostasse de ninguém.
— Eu não. Eu só não gosto dele — Gabriel apontou para Will.
— Meu Deus — Will observou, dando outra mordida da maçã — é porque sou mais bonito do que você?
— Peço que fique em silêncio — Gideon falou do outro lado da sala — nós estamos aqui trabalhando, não brincando como crianças em suas pequenas discussões.
— Pequenas? — Gabriel rosnou. — Ele quebrou o meu braço.
Will deu outra mordida na maçã.
— Mal posso acreditar que você ainda esteja chateado com isso.
Tessa jogou a faca. Esse lance foi melhor. A lâmina acertou o círculo preto, porém não no centro. Gabriel olhou à procura de outra faca e, não encontrando, soltou uma exalação de aborrecimento.
— Quando nós comandarmos o Instituto — ele falou, alto o suficiente para Will ouvir — esta sala de treinamento será muito melhor mantida e fornecida.
Tessa olhou para ele com raiva.
— Acha surpreendente que eu não goste de você, não é?
O belo rosto de Gabriel mudou para um feio olhar de desprezo.
— Não vejo o que isso tem a ver com você, feiticeira. O Instituto não é sua casa, você não pertence a este lugar. Acredite em mim, você estaria melhor se a minha família comandasse as coisas por aqui, podíamos encontrar uso para o seu... Talento. Um emprego que a faria rica. Você poderia viver onde quisesse. E Charlotte poderia ir comandar o Instituto de York, onde ela iria consideravelmente fazer menos mal.
Will estava sentado agora, a maçã esquecida. Gideon e Sophie tinham deixado sua prática e estavam assistindo a cautelosa conversa, ambos com olhos arregalados.
— Se você não notou — Will comentou — alguém já comanda o Instituto de York.
— Aloysius Starkweather é um velho senil — Gabriel o dispensou com um aceno de mão — e ele não tem descendente, não pode impedir o Cônsul de nomear alguém em seu lugar. Ainda mais depois do que aconteceu com a sua neta, seu filho e nora – fazendo-os arrumar as malas e ir embora para Idris. Eles não vão voltar lá por amor ou por dinheiro.
— O que aconteceu com a neta dele? — Tessa perguntou, pensando no retrato da menina de aparência doentia na escadaria do Instituto de York.
— Só viveu até os 10 anos — Gabriel respondeu — nunca foi muito saudável, pelo o que sei, e quando a marcaram pela primeira vez... Bem, ela deve ter sido treinada inadequadamente. Ela enlouqueceu, ficou desamparada e morreu. O choque matou a velha esposa de Starkweather, e mandou seus filhos correndo para Idris. Não seria um grande problema ser substituído por Charlotte. O Cônsul percebe que ele não está muito bem – muito entrelaçado com as velhas formas.
Tessa olhou para Gabriel em descrença. Sua voz tinha mantido a fria indiferença enquanto ele contava a história dos Starkweather, como se fosse um conto de fadas. E Tessa não queria ter pena do velho homem com os olhos astutos e sua sala sangrenta cheia de restos de feiticeiros mortos, mas não podia evitar. Empurrou Aloysius Starkweather de sua mente.
— Charlotte não vai embora desse Instituto — ela falou — e o seu pai não vai tirá-lo dela.
— Ela merece que lhe seja tirado.
Will jogou seu pedaço de maçã para o alto, ao mesmo tempo tirando uma faca da cintura e atirando-a. A faca e a maçã atravessaram o cômodo juntos, de alguma forma conseguindo fincar-se na parede ao lado da cabeça de Gabriel, a faca impulsionada através do núcleo da madeira.
— Diga isso de novo — Will alertou — e eu vou apagar as luzes do dia para você.
O rosto de Gabriel se contorceu em uma careta.
— Você não tem ideia do que está falando.
Gideon deu um passo adiante, sua postura alarmada.
— Gabriel.
Mas seu irmão ignorou.
— Você não sabe mesmo o que o precioso pai de Charlotte fez, não é? Eu só soube disso há alguns dias atrás. Meu pai finalmente nos disse. Ele protegia os Fairchild até então.
— Seu pai? — O tom de Will estava incrédulo. — Protegendo os Fairchild?
— Ele estava nos protegendo também — as palavras de Gabriel saíram — o irmão de minha mãe, meu tio Silas, foi um dos amigos mais próximos de Fairchild. Então meu tio Silas quebrou a Lei, uma coisa pequena, uma infração e Granville Fairchild descobriu. Tudo o que importava era a Lei, não a amizade e a lealdade. Ele foi direto para a Clave — a voz de Gabriel aumentou — meu tio se matou de vergonha, e minha mãe morreu de dor. Os Fairchild não se importam com ninguém, só com si mesmos e a Lei!
Por um momento, a sala ficou em silêncio, mesmo Will ficou mudo, olhando totalmente surpreso. Foi Tessa quem falou:
— Mas isso é culpa do pai de Charlotte, não dela.
Gabriel estava branco de raiva, seus olhos verdes destacando-se contra sua pele pálida.
— Você não entende — ele replicou violentamente — você não é uma Caçadora de Sombras. Temos orgulho do sangue. Orgulho da família. Granville Fairchild queria que o Instituto fosse para sua filha, e o Cônsul fez isso acontecer. Mas, apesar de Fairchild estar morto, ainda podemos tirar isso dele. Ele foi odiado, tão odiado, que ninguém teria se casado com Charlotte se não tivessem pago aos Branwell para Henry pedir a sua mão. Todo mundo sabe disso. Todo mundo sabe que ele não a ama realmente. Como ele poderia...
Houve um crack, como o som de um tiro de espingarda, e Gabriel ficou em silêncio. Sophie dera um tapa em seu rosto. Sua pele pálida já estava começando a se avermelhar.
Sophie estava encarando-o, respirando com dificuldade, um olhar incrédulo no rosto, como se não pudesse acreditar no que tinha feito.
As mãos de Gabriel apertaram sua bochecha, mas ele não se mexeu além disso. Ele não podia, Tessa sabia. Ele não podia atacar uma menina, uma menina que não era nem mesmo uma Caçadora de Sombras ou uma feiticeira, apenas uma mundana. Ele olhou para o seu irmão, mas Gideon, inexpressivo, encontrou seus olhos e balançou a cabeça lentamente, e com um som abafado, Gabriel girou sobre os calcanhares e saiu da sala.
— Sophie! — Tessa exclamou, estendendo a mão para ela. — Você está bem?
Mas Sophie estava olhando ansiosamente para Gideon.
— Sinto muito, senhor. Não há desculpas... eu perdi minha cabeça, e eu...
— Foi um golpe bem dado — Gideon disse calmamente — vejo que está prestando atenção nas minhas instruções.
Will estava sentado no banco, seus olhos azuis animados e curiosos.
— É verdade? Essa história que Gabriel nos contou.
Gideon deu de ombros.
— Gabriel adora o nosso pai. Qualquer coisa que Benedict diz é como um grande pronunciamento. Eu sabia que meu tio tinha se matado, mas não as circunstâncias, até o dia seguinte ao que viemos para treiná-las da primeira vez. Meu pai nos perguntou como o Instituto parecia ser, e eu respondi que parecia em boas condições, não diferente do Instituto de Madrid. Na verdade, eu lhe disse que não podia ver nenhuma deficiência de que Charlotte estava fazendo um trabalho negligente. Foi quando ele nos contou essa história.
— Se você não se importa de eu perguntar — Tessa falou — o que foi que o seu tio fez?
— Silas? Ele se apaixonou por sua parabatai. Não é, na verdade, como Gabriel diz, “uma infração pequena”, mas uma importante. As relações amorosas entre parabatai são absolutamente proibidas. Mesmo Caçadores de Sombras bem treinados podem ser vítimas de emoções. A Clave separou os dois, embora Silas não tivesse conseguido enfrentar. É por isso que ele se matou. Minha mãe foi consumida pela raiva e tristeza. Eu posso muito bem acreditar que seu último desejo foi que meu pai comandasse o Instituto de Fairchild. Gabriel era mais jovem do que eu quando a nossa mãe morreu – tinha apenas cinco anos de idade, ainda agarrava-se às suas saias – e parece-me que seus sentimentos são muito grandes, agora que entendo alguns deles. Considero que... sinto que os pecados dos pais não devem ser dados aos seus filhos.
— Ou filhas — Will apontou.
Gideon olhou para ele e deu-lhe um sorriso torto.
— Peço desculpas pela atitude dele.
Mesmo Will olhou um pouco surpreso.
— Acredito que Gabriel nunca mais volte aqui, é claro — Gideon continuou — não depois disso.
Sophie, cuja cor começou a voltar, empalideceu novamente.
— A Sra. Branwell vai ficar furiosa.
Tessa balançou a cabeça.
— Eu vou atrás dele e pedir desculpas, Sophie. Vai dar tudo certo.
Ela ouviu Gideon chamar por ela, mas Tessa já estava correndo da sala de treinamento. Ela odiava admitir, mas sentiu uma centelha de simpatia por Gabriel e Gideon quando contaram sua história. Perder uma mãe quando eram tão jovens que mal se podiam se lembrar dela era algo que ela tinha familiaridade. Se alguém tivesse lhe contado que sua mãe possuía um desejo antes de morrer, ela não hesitaria em fazer tudo em seu poder para executá-lo... Fazendo sentido ou não.
— Tessa!
Estava no meio do corredor quando ouviu Will chamando por ela. Tessa se virou e viu-o caminhando pelo corredor em sua direção, um sorriso no rosto. Suas palavras limparam o sorriso do rosto dele.
— Por que você está me seguindo? Will, você não pode deixá-los sozinhos! Você deve voltar para a sala de treinamento, imediatamente.
Will plantou os pés.
— Por quê?
Tessa levantou as mãos.
— Os homens não percebem nada? Gideon tem intenções com Sophie.
— Com Sophie?
— Ela é uma menina muito bonita — Tessa observou — você é um idiota se não notou a maneira como ele olha para ela, mas não quero que ele se aproveite. Ela já teve muitas dificuldades em sua vida, e além disso, se você estiver junto, Gabriel não vai falar comigo. Você sabe que não.
Will murmurou algo sob sua respiração e segurou seu pulso.
— Aqui. Venha comigo.
O calor de sua pele contra a dela enviou uma tremedeira por seu braço. Ele puxou-a para uma sala, passando por grandes janelas que davam para o pátio. Ele soltou seu pulso a tempo de ela se inclinar para a frente e ver a carruagem dos Lightwood chocalhar furiosamente através do pátio de pedra e sair entre os portões de ferro.
— Não — Will falou — Gabriel foi embora de qualquer maneira, a menos que queira correr atrás da carruagem. E Sophie é perfeitamente sensata. Ela não vai deixar Gideon Lightwood se aproveitar dela. Além disso, ele é quase tão encantador quanto uma caixa de correio.
Tessa, surpreendendo até mesmo a si mesma, arfou e deu uma risada. Ela colocou a mão para cobrir a boca, mas já era tarde demais, ela já estava rindo, inclinando-se um pouco contra a janela. Will olhou para ela, seus olhos azuis interrogativos, a boca apenas começando a abrir-se em um sorriso.
— Eu devo ser mais divertido do que pensava. O que deve ser muuuuito divertido, de fato.
— Eu não estou rindo de você — ela disse entre risos — lembrei-me do... Oh! Do olhar no rosto de Gabriel quando Sophie lhe deu um tapa. Meu Deus. — Ela afastou o cabelo do rosto — eu realmente não deveria estar rindo. Metade da razão foi por você tê-lo incitado. Eu deveria estar com raiva com você.
— Oh, deveria — Will repetiu, girando para longe e caindo em uma cadeira perto do fogo, e estendendo suas longas pernas em direção às chamas. Como todos os cômodos da Inglaterra, Tessa pensou, era frio aqui, exceto em frente do fogo. Vivia quase como um peru mal assado, cozinhando na frente e congelando nas costas — eu deveria ter pago pelas drogas que consumi. Agora eles vão querer quebrar as minhas pernas. Eu nunca deveria ter saído com a mulher do meu amigo, agora ela me atormenta constantemente. Eu deveria...
— Você deveria — Tessa interrompeu calmamente — pensar em como suas atitudes afetaram Jem.
Will virou a cabeça para trás contra o couro da cadeira e olhou para ela. Ele parecia sonolento, cansado e bonito. Poderia ter sido uma obra Pré-Rafaelita.
— Vamos ter uma conversa séria agora, Tess? — Sua voz ainda tinha humor, mas era afiada, como uma lâmina afiada de ouro contra o aço.
Tessa sentou-se na poltrona em frente à dele.
— Você não está preocupado com o que ele enfrentou por sua causa? Ele é o seu parabatai. E é Jem. Ele nunca passou por isso.
— Talvez seja melhor que ele esteja com raiva de mim. Tanta paciência não pode ser boa para ninguém.
— Não zombe dele — o tom de Tessa era afiado.
— Não estou brincando, Tess.
— Jem é... Ele sempre foi bom para você. Ele nada mais é que bondade. Ele ter te batido ontem só mostra como você pode levar até mesmo os santos a loucura.
— Jem me bateu? — Will tocou o rosto, olhando espantado. — Confesso que me lembro muito pouco de ontem à noite. Só que vocês dois me acordaram, embora eu quisesse muito ficar dormindo. Lembro-me de Jem gritar comigo, e você me segurando. Eu sabia que era você. Você sempre tem cheiro de lavanda.
Tessa ignorou isso.
— Bem, Jem bateu em você. E você mereceu.
— Você me parece um pouco desdenhosa – como Raziel em todas as pinturas, como se estivesse nos olhando de cima. Então me diga, anjo desdenhoso, o que eu fiz para merecer ser atingido no rosto por James?
Tessa se procurou por palavras, porém elas lhe fugiram. Ela então se voltou para a linguagem que compartilhavam – a poesia.
— Você sabe aquele ensaio de Donne, o que ele diz...
— Deixe que minhas mãos errantes adentrem? — Will citou, olhando para ela.
— Eu quis dizer o ensaio sobre como nenhum homem é uma ilha. Tudo o que você faz acaba tocando os outros. No entanto, você nunca pensa sobre isso. Sempre se comporta como se vivesse em algum tipo de ilha Will, e nenhuma de suas ações podem ter consequências. No entanto, elas têm.
— Como é que o fato de eu frequentar um antro de drogas afeta Jem? — Will perguntou. — Acho que ele não tinha que ir e tirar-me de lá, mas ele fez coisas mais perigosas no passado por mim antes. Nós protegemos uns aos outros.
— Não, você não protege — Tessa gritou de frustração — você acha que ele se preocupa com o perigo? E você? Toda a vida dele foi destruída por esta droga, este yin fen, e lá estava você, indo comprar drogas de um bruxo – é como se não importasse mesmo, como se fosse apenas um jogo para você. Ele tem que usar isso todos os dias apenas para que possa viver, que, entretanto, está matando-o. Ele odeia ser dependente disso. Ele não pode nem mesmo ir comprar, sem que você faça isso.
Will fez um som de protesto, mas Tessa levantou uma mão.
— E então você vai até Whitechapel e joga o seu dinheiro para que essas pessoas possam fazer mais drogas para viciar pessoas com elas, como se fosse algum tipo de férias no continente para você. O que você estava pensando?
— Mas não tinha nada a ver com Jem.
— Você não pensou nele, mas talvez devesse. Não entende que ele acha que você fez uma brincadeira com o que o está matando? E você deveria ser seu irmão.
Will ficou calado.
— Ele não pode pensar isso.
— Ele pensou. Ele entende que você não se importa com o que as outras pessoas pensam sobre você. Mas acredito que ele esperava que você se importasse com o que ele pensa. Com o que ele sente.
Will se inclinou para frente. A luz do fogo refletiu padrões estranhos contra a sua pele, escurecendo o machucado em sua bochecha para o preto.
— Eu ligo para o que as outras pessoas pensam — ele falou com uma intensidade surpreendente, olhando para as chamas — é tudo para o que ligo, o que os outros pensam, o que sentem por mim, e eu com eles, é o que me deixa louco. Eu queria fugir.
— Você não pode falar isso. Will Herondale, se importando com que os outros pensam? — Tessa tentou fazer sua voz o mais leve possível.
O olhar em seu rosto a surpreendeu. O olhar não era fechado, mas aberto, como se ele estivesse enredado em um pensamento que ele queria tanto compartilhar, mas não podia suportar. Este é o garoto que pegou minhas cartas particulares e as escondeu em seu quarto, ela pensou, mas ela poderia pensar nisso depois. Tinha pensado que ficaria furiosa ao vê-lo de novo, mas ela estava, apenas intrigada e se perguntando. Certamente ele mostrou uma curiosidade sobre o que as outras pessoas pensavam a respeito de gostar dele.
Havia algo de cru em seu rosto, sua voz.
— Tess. Isso é tudo o que eu penso. Eu nunca consegui te olhar sem pensar no que você sente sobre mim e não temer.
Ele parou de falar quando a porta da sala se abriu e Charlotte entrou, seguido por um homem alto, cuja cabelo loiro brilhava como um girassol na luz fraca. Will virou-se rapidamente. Tessa olhou para ele. O que ele estava dizendo?
— Oh! — Charlotte ficou claramente surpresa ao ver os dois. — Tessa, Will... Eu não sabia que vocês estavam aqui.
Will fechou as mãos em punhos ao seu lado, o rosto na sombra, mas sua voz era nivelada quando ele respondeu:
— Nós viemos pelo fogo. É tão frio quanto gelo no resto da casa.
Tessa se levantou.
— Nós estamos saindo.
— Will Herondale, que excelente ver que você está bem. E Tessa Gray! — O homem loiro separou-se de Charlotte e veio em direção a Tessa, radiante, como se a conhecesse. — A transformadora, correto? Encantado em conhecê-la. Que curioso.
Charlotte suspirou.
— Sr. Scott Woolsey, este é Srta. Tessa Gray. Tessa, este é o Sr. Scott Woolsey, líder da matilha de lobisomens de Londres, e um velho amigo da Clave.



— Muito bem, então — disse Gideon, quando a porta se fechou atrás de Tessa e Will.
Ele voltou-se para Sophie, que de repente estava perfeitamente consciente da grandeza da sala, e quão pequena ela se sentia dentro dela.
— Vamos continuar com o treino?
Ele estendeu uma faca para ela, brilhando como uma varinha de prata na penumbra do quarto. Seus olhos verdes estavam firmes. Tudo sobre Gideon era bom de olhar, a sua voz, a maneira como ele a segurava. Ela lembrou que sentiu o gosto de ter os braços dele firmes ao seu redor, e estremeceu involuntariamente. Ela nunca tinha estado sozinha com ele antes, e isso assustava.
— Não acho que devemos continuar, Sr. Lightwood. Aprecio a oferta, mas...
Ele baixou o braço lentamente.
— Você acha que eu não levo a sério o treinamento com você?
— Acho que está sendo muito generoso. Mas eu deveria encarar os fatos, não devia? Este treinamento nunca foi sobre mim ou Tessa. Tratava-se de seu pai e do Instituto. E agora que eu bati em seu irmão... — ela sentiu a garganta apertar — a Sra. Branwell ficará desapontada comigo quando souber.
— Bobagem. Ele mereceu.
Gideon girou a faca de prata descuidadamente sobre seu dedo e enfiou em seu cinto.
— Charlotte, provavelmente, vai lhe dar um aumento de salário quando souber.
Sophie sacudiu a cabeça. Eles estavam a apenas alguns passos de um banco e ela sentou-se ali, sentindo-se exausta.
— Você não conhece Charlotte. Ela se sentiria obrigada a me punir.
Gideon sentou-se no banco, não ao seu lado, mas longe, tão distante dela quanto poderia. Sophie não podia decidir se estava contente com isso ou não.
— Srta. Collins, há algo que você deveria saber.
Ela entrelaçou os dedos.
— O quê?
Ele se inclinou um pouco para frente, seus ombros largos curvados. Ela podia ver as manchas de cinza em seus olhos verdes.
— Quando meu pai me chamou de volta a Madrid, eu não queria vir. Eu nunca fora feliz em Londres. A nossa casa tem sido um lugar miserável desde que minha mãe morreu.
Sophie só podia olhá-lo. Ela não conseguia pensar em nenhuma palavra. Ele era um Caçador de Sombras e um cavalheiro, e ainda assim parecia estar aliviando sua alma para ela. Mesmo Jem, com toda a bondade gentil, nunca tinha feito isso.
— Quando ouvi sobre estas aulas, achei que seria um desperdício terrível do meu tempo. Imaginei duas meninas muito bobas e desinteressadas em qualquer tipo de instrução. Mas isso não descreve a senhorita Gray nem você mesma. Eu costumava treinar jovens Caçadores de Sombras em Madrid, e devo dizer-lhe, havia poucos deles que tinham a mesma capacidade natural que você. É uma aluna talentosa, e é um prazer lhe ensinar.
Sophie sentiu-se corar.
— Você não pode estar falando sério.
— Eu estou. Fiquei agradavelmente surpreendido a primeira vez que eu vim aqui, e novamente na próxima vez e no próxima. Eu não gostava daqui. Na verdade, seria justo dizer que desde a minha volta para casa, eu odiava tudo em Londres, exceto estas horas aqui, com você.
— Mas você dizia o tempo todo “Ay Dios mio” sempre que eu pegava o punhal...
Ele sorriu. O sorriso iluminou seu rosto. Sophie observou-o. Ele não era bonito quanto Jem, mas ainda era bonito, especialmente quando sorria. O sorriso parecia alcançar e tocar seu coração, acelerando seu ritmo. Ele é um Caçador de Sombras, ela pensou. E um cavalheiro. Isto não é a maneira de pensar sobre ele. Pare com isso. Mas ela não podia se parar mais do que fora capaz de tirar Jem de sua mente. Embora, onde com Jem ela se sentia segura, com Gideon sentiu uma emoção como um relâmpago que corria para cima e para baixo em suas veias, chocando-a. E ainda assim ela não queria deixar ir.
— Eu falo espanhol quando estou de bom humor — ele respondeu — acho que você deve saber disso a meu respeito.
— Então não era por que você estava cansado da minha inaptidão ou por que queria me lançar para fora pelo telhado?
— Exatamente o oposto — ele inclinou-se para ela. Seus olhos eram do verde acinzentado de um mar tempestuoso — Sophie? Posso perguntar uma coisa?
Ela sabia que deveria corrigi-lo, pedir-lhe para chamá-la de senhorita Collins, mas ela não o fez.
— Sim?
— Aconteça o que acontecer com as lições, eu poderia vê-la novamente?



Will ficou de pé, mas Scott Woolsey ainda estava examinando Tessa com a mão sob o queixo, estudando-a como se ela fosse algo envolta em vidro em uma exposição de história natural.
Ele não era o que Tessa teria pensado que o líder de uma matilha de lobisomens fosse. Tinha, provavelmente, seus vinte e poucos anos, alto e magro a ponto de leveza, com cabelos loiros quase até os ombros, vestido com uma jaqueta de veludo, calças e um lenço com estampa paisley. Um monóculo matizado obscurecida um olho verde pálido. Ele lhe parecia uns desenhos que Tessa tinha visto em Punch.
— Adorável — ele pronunciou finalmente — Charlotte, eu insisto que eles fiquem enquanto falamos. Que casal encantador eles fazem. Veja como o cabelo escuro dele combina com a pele pálida dela.
— Obrigada — disse Tessa, sua voz aumentando várias oitavas acima do normal — é muito agradável, mas não há nada entre Will e eu. Eu não sei o que você ouviu.
— Nada! — Declarou ele, atirando-se em uma cadeira e arrumando seu cachecol em torno do pescoço. — Nada, eu lhe asseguro, embora sua expressão desminta suas palavras. Vamos agora, todos nos sentarmos. Não há necessidade de ser intimidado por mim. Charlotte, peça um chá. Estou seco.
Tessa olhou para Charlotte, que deu de ombros, como se dissesse que não havia nada a ser feito sobre isso. Lentamente, Tessa sentou-se. Will também. Ela não olhou para ele, não podia, com Scott Woolsey sorrindo para ambos, como se soubesse algo que ela não sabia.
— E onde está o jovem Sr. Carstairs? — Ele perguntou. — Menino adorável. Coloração tão interessante. E tão talentoso no violino. É claro, eu ouvi Garcin tocando na Ópera de Paris, e depois, bem, tudo simplesmente soa como pó de carvão raspando os tímpanos. Pena sobre sua doença.
Charlotte, que tinha ido chamar Bridget, voltou e sentou-se, alisando suas saias.
— De certa forma, é sobre isso que eu queria falar com você .
— Oh, não, não, não — do nada, Scott havia produzido uma caixa de charutos, que ele acenou em direção de Charlotte — nenhuma discussão séria, por favor, até que eu tenha tomando o meu chá e fumado um cigarro. Charuto egípcio? — Ele ofereceu-lhe a caixa. — Esté é o melhor disponível.
— Não, obrigada.
Charlotte pareceu ligeiramente horrorizada com a ideia de fumar um charuto. Na verdade, era difícil de imaginar, e Tessa sentiu vontade, de rir silenciosamente.
Scott deu de ombros e voltou para seus preparativos de fumar. A caixa de decorada possuía compartimentos para charutos, amarrados em um pacote com uma fita de seda, com buracos para bater as cinzas.
Eles assistiram o lobisomem acender o charuto com evidente prazer, e o cheiro doce do fumo encheu a sala.
— Agora, diga-me como você está, Charlotte, querida. E seu distraído marido. Ainda vagando ao redor da cripta inventando coisas para explodir?
— Às vezes — disse Will — elas sequer explodem.
Houve um som, e Bridget chegou com uma bandeja de chá, poupando Charlotte da necessidade de responder. Ela colocou as xícaras e o bule sobre a mesa entre as cadeiras, olhando para trás e para frente, ansiosa.
— Sinto muito, Sra. Branwell. Pensei que iam ser dois para o chá.
— Tudo bem, Bridget — Charlotte respondeu, seu tom de voz em uma firme indiferença — eu lhe chamo se precisamos de mais alguma coisa.
Bridget saiu com uma reverência, lançando um olhar curioso sobre o ombro para Scott Woolsey quando se foi. Ele não tomou conhecimento dela, já tinha derramado leite em sua xícara de chá e olhava censurando sua anfitriã.
— Oh, Charlotte.
Ela olhou para ele em confusão.
— Sim?
— As pinças – as pinças de açúcar — disse Scott, infeliz, na voz de alguém comentando algo sobre a trágica morte de um conhecido — elas são de prata.
— Oh! — Charlotte olhou assustada. Prata, Tessa lembrou, era perigoso para os lobisomens. — Sinto muito. Scott suspirou.
— Está tudo bem. Felizmente, eu viajo com a minha.
De outro bolso de sua jaqueta de veludo – que era abotoada sobre um colete de seda com estampa de lírios d'água que teria feito Henry passar vergonha – ele tirou um pacote de seda e revelou um conjunto de pinças de ouro e uma colher de chá. Ele colocou-os na mesa, tirou a tampa do bule, e parecia satisfeito.
— Chá da Pólvora! Do Ceilão, eu presumo? Você já tomou chá em Marrakech? Eles banham em açúcar ou mel.
— Pólvora? — Tessa perguntou, nunca conseguindo parar de fazer perguntas, mesmo quando sabia perfeitamente que era uma má ideia. — Não há pólvora no chá, não é?
Scott riu e colocou a caixa na mesa. Ele sentou-se, enquanto Charlotte, sua boca numa linha fina, servia o chá em sua xícara.
— Como é encantadora! Não, chamam assim porque as folhas do chá são enroladas em papelotes pequenos que se assemelham a pólvora.
Charlotte disse:
— Sr. Scott, quero realmente discutir o porquê de eu chamá-lo.
— Sim, sim, eu li a sua carta — ele suspirou — a política de Seres do Submundo. Tão maçante. Suponho que você não vai me deixar contar-lhe sobre ter o meu retrato pintado por Alma-Tadema? Eu estava vestido como um soldado romano.
— Will — Charlotte falou com firmeza — talvez você devesse compartilhar com o Sr. Scott o que viu em Whitechapel na noite passada.
Will, de alguma forma, para a surpresa de Tessa, obedientemente fez como foi pedido, mantendo as observações sarcásticas a um mínimo. Scott observou-o por cima da borda de sua xícara de chá enquanto Will falou. Seus olhos eram um verde pálido, quase amarelos.
— Desculpe, meu garoto — ele disse quando Will terminou de falar — não vejo porque isso exige uma reunião urgente. Estamos todos cientes da existência desses ifrit, e eu não posso cuidar de todos os membros da minha área a cada momento. Se algum deles optar por participar do vício... — Ele se inclinou mais perto. — Você sabe que seus olhos são quase o tom exato das pétalas de amor-perfeito? Não é bem azul, não é bem violeta. Extraordinário.
Will arregalou os olhos e sorriu extraordinariamente.
— Acho que foi a menção do Magistrado que preocupou Charlotte.
— Ah — Scott voltou seu olhar para Charlotte — você está preocupada que eu esteja traindo vocês da maneira que de Quincey fez – que eu tenha ligações com o Magistrado – vamos chamá-lo pelo nome, sim? Mortmain – e que estou deixando-o usar meus lobos para fazer sua guerra.
— Eu tinha pensado — Charlotte disse, hesitante — que talvez os Seres do Submundo de Londres se sentiram traídos pelo Instituto depois do que aconteceu com de Quincey.
— Sua morte.
Scott ajustou seu monóculo. Quando ele o fez, a luz brilhou ao longo do anel de ouro que ele usava em torno de seu dedo indicador. Palavras brilharam contra sua superfície: L' arte pour l'art.
— Foi a melhor surpresa que eu tive desde que descobri os banhos turcos na Jermyn Street. Eu desprezava de Quincey. Detestava-o com cada fibra do meu ser.
— Bem, as Crianças da Noite e as Crianças da Lua nunca se deram bem.
— De Quincey matou um lobisomem — Tessa disse de repente, e suas memórias misturam-se com as Camille, com a lembrança de um par de olhos verde amarelados como os de Scott — por seu apego a Camille Belcourt.
Scott Woolsey deu um longo e curioso olhar para Tessa.
— Esse foi o meu irmão. Meu irmão mais velho. Ele era líder da matilha antes de mim, você vê, e eu herdei o posto. Normalmente deve-se matar para se tornar líder da matilha. No meu caso, foi colocado em votação, e a tarefa de vingar meu irmão no nome do clã era minha. Só que agora, você vê — ele fez um gesto com a mão elegante — você já cuidou de de Quincey para mim. Não tem ideia de como sou grato — ele inclinou a cabeça para o lado — ele morreu bem?
— Ele morreu gritando — a franqueza de Charlotte assustou Tessa.
— Que coisa linda de se ouvir — Scott largou a xícara de chá — com isso, você ganhou um favor. Eu vou lhe contar o que sei, e neste caso, não é muito. Mortmain me procurou nos seus primeiros dias, querendo que me juntasse ao Clube Pandemônio. Eu recusei, pois de Quincey já tinha aderido sua proposta, e eu não seria parte do mesmo clube que ele. Mesmo assim, Mortmain deixou-me saber se caso eu mudasse de ideia, haveria um lugar para mim.
— Ele te disse quais eram seus objetivos? — Will interrompeu. — Os fins do clube?
— A destruição de todos os Caçadores de Sombras — respondeu Scott — e eu prefiro acreditar que você já sabia disso. Não é um clube de jardinagem.
— Ele tem ódio pela Clave — Charlotte concordou — pelos Caçadores de Sombras que mataram seus pais há alguns anos. Eles eram bruxos, no estudo das artes negras.
— Menos ódio, e mais de uma ideia fixa — apontou Scott — uma obsessão. Ele viu sua gente ser eliminada, embora tenha fugido e voltado para a Inglaterra a fim de trabalhar seu caminho. Uma espécie metódico de louco. O pior tipo — ele sentou-se na cadeira e suspirou — chegou um novo grupo de jovens lobos, não juramentados a qualquer clã, que está fazendo um trabalho secreto e que é pago muito bem por ele. Ele está incentivando os jovens a usar a droga e criando animosidades entre as áreas. Mas eu não sabia sobre a droga entre meu bando.
— Isso vai mantê-los trabalhando para ele, noite e dia, até caírem de exaustão ou a droga matá-los — disse Will — e não há cura para o vício a ela. Ela é mortal.
Os olhos verde amarelados do lobisomem encontraram os seus.
— O yin fen, este pó prata, é o que o seu amigo James Carstairs é viciado, não é? E ele está vivo!
— Jem ainda sobrevive porque ele é um Caçador de Sombras, e também por ele usar o mínimo possível, o mais raramente que pode. E mesmo assim, ela ainda vai matá-lo no final — a voz de Will soou mortal — da mesma forma seria se ele parasse de usar.
— Bem, bem — disse o lobisomem despreocupadamente — neste caso, espero que o Magistrado não compre todo o material e assim crie uma escassez.
Will ficou branco. Estava claro que o pensamento não lhe tinha ocorrido. Tessa virou-se para Will, mas ele já estava de pé, movendo-se em direção à porta. Ele a fechou com um estrondo. Charlotte franziu o cenho.
— Isso foi necessário, Woolsey? Acho que só apavorou o pobre menino, e provavelmente para nada.
— Não há nada de errado em ter um pouco de previsão — Scott apontou — eu alertei meu próprio irmão, até que de Quincey o matou.
— De Quincey e o Magistrado são de uma espécie implacável — disse Charlotte — se você pudesse nos ajudar...
— Toda a situação é certamente bestial — observou Scott — infelizmente, licantropos que não são membros do meu clã não são de minha responsabilidade.
— Se você pudesse simplesmente enviar mensagens, Sr. Scott. Qualquer informação sobre onde eles estão trabalhando ou o que eles estão fazendo pode ser inestimável. A Clave ficaria grata.
— Oh, a Clave — Scott ecoou, parecendo mortalmente entediado — muito bem. Agora, Charlotte, vamos falar sobre você.
— Ah, mas eu sou muito chata — Charlotte respondeu, e deliberadamente, Tessa tinha certeza, esbarrou no bule de chá.
Ele bateu na mesa com um estrondo gratificante, derramando água quente. Scott saltou com um grito, tirando seu cachecol do caminho do perigo.
Charlotte se levantou, engasgando.
— Woolsey, querido — ela disse, colocando a mão em seu braço — você foi de grande ajuda. Permita-me mostrar-lhe a saída...

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