Capítulo 13 - A Mente Tem Montanhas
Oh, a mente, mente tem montanhas; penhascos
Assustadores, simples, jamais penetrados por homem algum. Despreze
Aquele que nunca se pendurou. Também não dura nosso pequeno
Acordo de resistência em relação ao íngreme ou profundo. Aqui! Rasteje,
Miserável, sob um conforto em um redemoinho: toda
Vida a morte extingue, e todo dia morre com o sono.
– Gerard Manley Hopkins, Não, não há pior
Tessa não conseguia se lembrar mais tarde se ela gritou quando caiu. Lembrou-se apenas de uma longa e silenciosa queda, o rio e as pedras se lançando em sua direção, o céu a seus pés. O vento atirou o cabelo em seu rosto enquanto ela se torcia no ar, e Tessa sentiu uma forte pressão em sua garganta.
Suas mãos voaram para cima. Seu colar de anjo estava erguido sobre a cabeça dela, como se uma enorme mão tivesse descido do céu para removê-lo. Um borrão metálico a rodeou, um par de grandes asas se abriu como portas e algo a puxou, impedindo sua queda.
Tessa arregalou os olhos, era impossível, inimaginável, mas seu anjo, seu anjo mecânico, tinha de alguma forma crescido ao tamanho de um ser humano e estava pairando sobre ela, as grandes asas mecânicas batendo contra o vento. Ela olhou para cima para um rosto em branco, lindo, o rosto de uma estátua de metal, tão inexpressivo como sempre, mas o anjo tinha mãos articuladas como as dela própria, que estavam segurando-a, mantendo-a no ar enquanto as asas batiam e ela caiu devagar, suavemente, como um dente de leão soprado ao vento.
Talvez eu esteja morrendo, Tessa pensou. Isso não pode estar acontecendo. Mas enquanto o anjo a abraçava, eles foram juntos em direção a terra, o chão entrando em foco. Ela podia ver as pedras individuais nas margens do rio agora, as correntes que corriam para a jusante, o reflexo do sol na água. A sombra das asas surgiu contra a terra e cresceu cada vez mais até que Tessa estava caindo nela, caindo na sombra, e ela e o anjo chegaram juntos ao chão e pousaram suavemente na sujeira e nas pedras espalhadas ali.
Tessa arfou quando desceu, mais de choque do que pelo impacto, e estendeu a mão, como se pudesse amortecer a queda do anjo com seu corpo, mas ele já estava encolhendo, ficando cada vez menor, as asas dobrando sobre si mesmas até que ele atingiu o chão a seu lado do tamanho de um brinquedo, mais uma vez. Tessa estendeu a mão trêmula e agarrou-o. Ela estava deitada nas pedras irregulares, meio dentro, meio fora da água fria, que já estava encharcando suas saias. Colocou o pingente no pescoço e se arrastou até terra firme com o restante de sua força, e então desmoronou sem forças em solo seco com o anjo pressionado contra o peito, a familiar batida contra seu coração.
***
Sophie sentou-se na poltrona ao lado da cama de Jem, que sempre fora o lugar de Will, e assistiu Jem dormir.
Houve um momento, ela pensou, quando ficaria quase grata por esta oportunidade, uma chance de estar tão perto dele, colocar panos frios em sua testa quando ele se mexia, murmurava e queimava com febre. E embora ela já não o amasse como antes – aliás, percebeu agora, amou alguém que não sabia disso, com admiração e distância – ainda torcia seu coração vê-lo assim.
Uma das meninas na cidade onde Sophie crescera tinha morrido do vício, e Sophie lembrou que todos tinham falado da forma como a doença a tornou mais bela antes matá-la: deixara-a pálida e delgada, e corara o rosto com um brilho rosado. Jem tinha as bochechas vermelhas de febre enquanto se jogava contra os travesseiros; seu cabelo branco prateado era como gelo, e os dedos inquietos se contorciam contra o cobertor. De vez em quando ele falava, mas as palavras eram em mandarim, e ela não entendia. Ele chamou por Tessa. Wo ai ni, Tessa. Bu lu run, he qing kuang fa sheng, wo men dou hui zai yi qi. E ele chamou por Will também, sheng si zhi jiao, de uma forma que fez Sophie quer tomar sua mão e segurá-la, mas quando tocou-o, Jem estava queimando em febre e puxou a mão com um grito.
Sophie encolheu-se contra a poltrona, perguntando-se se deveria trazer Charlotte. Charlotte gostaria de saber se a condição de Jem piorasse. Ela estava prestes a levantar quando Jem repente tossiu e seus olhos se abriram. Sophie afundou na poltrona, encarando-o. Suas íris eram de prata, tão pálidas que eram quase brancas.
— Will? Will, é você?
— Não — ela respondeu, quase com medo de se mover — é Sophie.
Ele suspirou baixinho e virou a cabeça para ela sobre o travesseiro. O focalizar seu rosto com um esforço e então, incrivelmente, ele sorriu, aquele sorriso de grande doçura que havia conquistado seu coração um dia.
— É claro. Sophie. Will não está... enviei Will para longe.
— Ele foi atrás de Tessa — Sophie falou.
— Bom — as longas mãos de Jem arrancaram o cobertor, se contraíram uma vez em punhos – e, em seguida, relaxaram — eu... eu estou feliz.
— Você sente falta dele.
Jem balançou a cabeça lentamente.
— Eu posso sentir isso – sua distância – como um cabo interno me puxando com muita força. Eu não esperava isso. Não nos separamos desde que nos tornamos parabatai.
— Cecily disse que você mandou-o embora.
— Sim. Foi difícil persuadi-lo. Acho que se ele não estivesse apaixonado por Tessa, eu não teria sido capaz de fazê-lo ir.
A boca de Sophie caiu.
— Você sabia?
— Não há muito tempo — disse Jem — não, eu não seria tão cruel. Se eu soubesse, nunca teria noivado. Teria ficado longe. Eu não sabia. E, no entanto, agora, como tudo está indo para longe de mim, todas as coisas aparecem em uma luz tão clara que acho que eu teria sabido, mesmo que ele não tivesse me contado. No fim das contas, eu saberia — ele sorriu um pouco para a expressão ferida de Sophie — estou feliz por não ter que esperar até o fim.
— Você não está com raiva?
— Estou feliz — Jem respondeu — eles poderão cuidar um do outro quando eu me for, ou pelo menos espero por isso. Will diz que Tessa não o ama, mas com certeza ela virá a amá-lo com o tempo. Will é fácil de se amar, e ele deu-lhe o seu coração inteiro. Posso ver isso. Espero que ela não vá quebrá-lo.
Sophie não conseguia pensar em uma palavra para dizer. Ela não sabia o que alguém poderia dizer em face de um amor como esse – tanta abstenção, tanto sofrimento, tanta esperança. Houve muitas vezes nestes meses anteriores quando ela lamentou ter tido um pensamento ruim sobre Will Herondale, quando percebeu como ele ficou quieto e permitiu que Tessa e Jem fossem felizes juntos. E ela sabia a agonia tinha chegado para Tessa juntamente com a felicidade, a certeza de que ela estava machucada. Só Sophie sabia, ela pensou, que Tessa chamava por Will às vezes enquanto dormia, só ela sabia que a cicatriz na palma da mão de Tessa não era fruto de um encontro acidental com um atiçador de lareira, mas um ferimento deliberado, infligido fisicamente em si mesma, que de alguma forma correspondesse à dor emocional que ela sentiu ao negar Will. Sophie tinha assistido Tessa enquanto ela chorava e retirava as flores de seu cabelo que tinham a mesma cor dos olhos de Will, e Sophie cobrira com pó com as evidências de lágrimas e noites sem dormir.
Deveria dizer a ele?, Sophie se perguntou. Seria realmente uma gentileza lhe dizer, sim, Tessa o ama muito, ela tentou não fazê-lo, mas conseguiu? Poderia alguém honestamente querer ouvir isso sobre a garota que ele estava prestes a se casar?
— A senhorita Gray tem grande respeito pelo Sr. Herondale, e ela não iria quebrar qualquer coração levianamente, penso — disse Sophie — mas eu gostaria que não falasse como se sua morte fosse inevitável, Sr. Carstairs. Neste momento, a Sra. Branwell e os outros estão esperançosos de descobrir uma cura. Acho que você vai viver até a velhice com a senhorita Gray e serão muito felizes.
Ele sorriu como se soubesse de algo que ela não sabia.
— Esse é o tipo de coisa que você diria, Sophie. Sei que sou um Caçador de Sombras, e nós não vivemos facilmente a vida. Lutamos até o fim. Viemos do reino dos anjos, e ainda temos medo dele. Creio, porém, que se pode enfrentar o fim e não ter medo, sem se curvar para a morte. A morte nunca me governará.
Sophie olhou-o, um pouco preocupada. Ele soava como se estivesse delirando um pouco.
— Sr. Carstairs? Devo buscar Charlotte?
— Em um momento, mas, Sophie... sua expressão, antes, quando eu falei... — ele inclinou-se para frente — é verdade, então?
— O que é verdade? — Ela perguntou em voz baixa, mas sabia qual era a questão, e não conseguiria mentir para Jem.
***
Will estava de mau humor. O dia teve amanhecera nublado, molhado e terrível. Acordara sentindo mal do estômago, e mal foi capaz de engolir os ovos borrachudos e o bacon frio que esposa do dono servira no salão atulhado; cada parte do seu corpo cantarolava para ele voltar à estrada e continuar em sua jornada.
Rajadas de chuva o deixaram tremendo em suas roupas – apesar do uso constante de runas de aquecimento, e Balios não gostava da lama que sugava seus cascos quando eles tentavam acelerar ao longo da estrada. Will contemplava de mau humor como era possível que o nevoeiro pudesse condensar-se no interior de suas roupas. Ele tinha chegado pelo menos a Northamptonshire, o que já era alguma coisa, mas havia coberto pouco mais de trinta quilômetros e se recusou a parar, embora Balios lhe olhasse suplicante enquanto passavam pelo distrito de Towcester, como se estivesse pedindo por uma baia quente em um estábulo e um pouco de aveia, e Will estava quase inclinado a dar-lhe.
Um sentimento de desesperança tinha invadido seus ossos, frio e inescapável como a chuva. O que pensava estava fazendo? Será que ele realmente achava que encontraria Tessa dessa maneira? Ele era idiota?
Eles estavam passando por um país desagradável, onde a lama deixava o caminho rochoso traiçoeiro. Uma grande parede rosada de penhasco estava de um lado da estrada, bloqueando o céu. Do outro lado a estrada caía drasticamente em um barranco cheio de pedras afiadas. A água distante de um córrego lamacento brilhava fracamente lá embaixo. Will manteve a cabeça de Balios longe do penhasco, mas o cavalo parecia nervoso e tímido com a queda. A cabeça de Will estava para baixo, escondida em seu colarinho para evitar a chuva fria, e foi apenas por acaso que, olhando por um momento para o lado, teve um vislumbre de verde brilhante e dourado entre as rochas na beira da estrada.
Ele parou Balios em um instante e desceu do cavalo tão rapidamente que quase escorregou na lama. A chuva estava caindo com mais força agora enquanto ele aproximava-se e se ajoelhava para examinar a cadeia de ouro que estava em torno de um afloramento rochoso. Ele pegou com cuidado. Era um pingente de jade, circular, com escritas no verso. Ele sabia muito bem o que significavam.
Quando duas pessoas estão unidas no íntimo de seus corações, podem romper até mesmo a resistência do ferro e do bronze.
O presente de noivado de Jem para Tessa. A mão de Will apertou-se sobre o pingente. Ele lembrou dela na escada a sua frente, os elos dourados do pingente de jade em sua garganta piscando para ele como um lembrete cruel de Jem enquanto ela falava: eles dizem que você não pode dividir o seu coração, e ainda assim...
— Tessa! — ele gritou de repente, sua voz ecoando nas rochas — Tessa!
Ele parou por um momento, tremendo, ao lado da estrada. Não sabia o que esperava em resposta. Era quase como se ela pudesse estar ali, escondendo-se entre as rochas esparsas. Havia apenas o silêncio, o som do vento e da chuva. Ainda assim, ele sabia sem sombra de dúvidas que este era o colar de Tessa.
Talvez ela tivesse arrancado-o de sua garganta e o deixara cair da janela da carruagem para marcar o caminho para ele, como João e Maria fizeram a trilha de migalhas de pão. Era o que uma heroína dos romances faria, e portanto, a sua Tessa faria.
Talvez houvesse outras migalhas também, se ele continuasse o caminho. Pela primeira vez, a esperança fluiu de volta em suas veias. Com determinação renovada, ele caminhou até Balios e montou na sela. Não retardaria mais, chegaria a Staffordshire naquela noite. Quando o cavalo para a estrada, colocou o pingente em seu bolso, onde as palavras gravadas de amor e compromisso pareciam queimar.
***
Charlotte nunca havia se sentido tão cansada. A criança que ela esperava a tinha esgotado mais do que pensara que o faria, e ela esteve acordada a noite inteira e passara o dia correndo. Havia manchas em seu vestido da cripta de Henry, e os tornozelos doíam por subir e descer as escadas do Instituto e da biblioteca. No entanto, quando abriu a porta do quarto de Jem e o viu não só acordado, mas sentado e conversando com Sophie, ela esqueceu o cansaço e sentiu seu rosto formar um sorriso impotente de alívio.
— James! — ela exclamou — eu me perguntava... isto é, estou feliz que esteja acordado!
Sophie, que estava estranhamente corada, levantou-se a seus pés.
— Devo ir, Sra. Branwell?
— Oh, sim, por favor, Sophie. Bridget está com um de seus humores, ela diz que não consegue encontrar o Bang Marí, e não tenho a menor do que ela está falando.
Sophie quase sorriu – ela teria sorrido, se o seu coração não estivesse batendo rápido com o conhecimento de que ela só poderia ter feito algo muito terrível.
— A panela de banho-maria — ela corrigiu — vou encontrá-la para ela.
Ela se moveu para a porta, parou e enviou um olhar peculiar por cima do ombro para Jem, que estava descansando de volta contra os travesseiros, com aparência muito pálida, mas composto. Antes que Charlotte pudesse dizer qualquer coisa, Sophie se foi, e Jem estava acenando com um sorriso cansado para Charlotte se aproximar.
— Charlotte, se você não se importar, poderia me trazer o meu violino?
— É claro.
Charlotte foi até a mesa perto da janela, onde o violino ficava guardado em sua caixa de jacarandá, com o arco e a pequena embalagem de resina. Ela pegou o violino e trouxe-o até a cama, onde Jem pegou-o cuidadosamente dos braços dela, e Charlotte sentou com gratidão na poltrona ao lado dele.
— Oh — ela disse um momento mais tarde — sinto muito. Esqueci o arco. Você quer tocar?
— Está tudo bem — ele tocou suavemente as cordas com as pontas dos dedos, produzindo ruídos suaves e vibrantes — isto é Pizzicato – a primeira coisa que meu pai me ensinou a fazer quando me mostrou o violino. Me lembra de ser uma criança.
Você ainda é uma criança, Charlotte queria dizer, mas não o fez. Ele estava a apenas algumas semanas de seu aniversário de dezoito anos, depois de tudo, quando os Caçadores de Sombras se tornavam adultos. Quando olhava para ele, porém, ainda via o menino de cabelos escuros que havia chegado de Xangai, segurando o violino, os olhos enormes em seu rosto pálido, que não mostrava que ele não havia crescido.
Charlotte estendeu a mão para a caixa de yin fen na mesa de cabeceira. Havia apenas uma camada fina ao fundo, apenas uma colher de chá. Ela engoliu contra sua garganta apertada e jogou o pó no fundo de um copo de vidro, em seguida, verteu água da garrafa ali dentro, deixando o yin fen dissolver como o açúcar. Quando entregou o copo a Jem, ele colocou o violino de lado e pegou o copo das mãos dela. Ele encarou o líquido, seus olhos pálidos pensativos.
— Esta é a última parte? — Ele perguntou.
— Magnus está trabalhando em uma cura — Charlotte disse — nós todos estamos. Gabriel e Cecily estão comprando ingredientes e medicamentos para te manter forte, Sophie, Gideon e eu temos pesquisado. Tudo está sendo feito. Tudo.
Jem olhou um pouco surpreso.
— Eu não fazia ideia.
— Mas é claro sim. Nós somos sua família, faríamos qualquer coisa por você. Por favor, não perca a esperança, Jem. Preciso que mantenha a sua força.
— A força que eu tenho é sua — ele respondeu enigmaticamente. Ele bebeu a solução de yin fen, entregando-lhe de volta o copo vazio — Charlotte?
— Sim?
— Você já ganhou a briga sobre como a criança vai se chamar?
Charlotte deu uma risada assustada. Parecia estranho pensar sobre seu filho agora, mas por que não? A morte jaz no coração de nossa vida. era algo para se pensar que não a doença, ou o desaparecimento de Tessa, ou a perigosa missão de Will.
— Ainda não — disse ela — Henry ainda está insistindo em Buford.
— Você vai vencer. Sempre o faz. Daria uma excelente Consulesa, Charlotte.
Charlotte franziu o nariz.
— Uma mulher Cônsul? Depois de todos os problemas que tive simplesmente para dirigir o Instituto!
— Sempre tem que haver a primeira — Jem apontou — não é fácil de ser a primeira, e não é sempre gratificante, mas é importante — ele abaixou a cabeça — você carrega com você um dos meus poucos pesares.
Charlotte olhou para ele, perplexa.
— Eu gostaria de ver o bebê.
Era uma coisa melancólica e muito simples de dizer, mas apresentou-se no coração de Charlotte como um caco de vidro. Ela começou a chorar, as lágrimas deslizando silenciosamente por seu rosto.
— Charlotte — Jem disse, como se confortando-a — você sempre cuidou de mim. Cuidará surpreendente bem deste bebê. Será uma mãe maravilhosa.
— Você não pode desistir, Jem — ela falou em uma voz embargada — quando te trouxeram para mim, a princípio disseram que você viveria apenas um ano ou dois. Você viveu quase seis. Por favor, viva apenas mais alguns dias. Mais alguns dias para mim.
Jem lhe deu um olhar suavemente medido.
— Eu vivi por você — disse ele — e vivi por Will, e então vivi por Tessa e por mim, porque eu queria estar com ela. Mas eu posso... não posso viver para outras pessoas para sempre. Ninguém pode dizer que a morte encontrou em mim um camarada disposto, ou que eu fui facilmente. Se você diz que precisa de mim, ficarei o tempo que eu puder. Vou viver para vocês, lutando contra a morte, me desgastando até ficar os ossos e fragmentos. Mas não seria a minha escolha.
— Então... — Charlotte olhou para ele hesitante — qual seria a sua escolha?
Ele engoliu em seco, e sua mão caiu para tocar o violino ao seu lado.
— Tomei uma decisão. Eu a tomei quando falei a Will para onde ir — ele baixou a cabeça, depois a ergueu e encarou Charlotte, seu rosto pálido, sombras azuladas sob os olhos, que estavam fixos em seu rosto, como se querendo que ela entendesse — quero que isso pare. Sophie disse que todo mundo está à procura de uma cura para mim. Sei que dei minha permissão a Will, mas quero que todos parem agora, Charlotte. Está terminado.
***
Estava escurecendo no momento em que Cecily e Gabriel voltaram para o Instituto. Estar fora na cidade com alguém além de Charlotte ou seu irmão fora uma experiência única para Cecily, e ela estava atônita com quão boa a companhia de Gabriel Lightwood era. Ele a fez rir, embora ela tivesse feito o seu melhor para esconder, e muito gentilmente levara todos os pacotes, embora Cecily tivesse esperado que ele protestasse por ter sido tratado como um servo.
Era verdade que ele provavelmente não deveria ter jogado aquele ser das fadas pela janela – ou no canal Limehouse depois disso. Mas ela não podia culpá-lo. Sabia perfeitamente que não era o fato de que o sátiro tinha lhe mostrado imagens impróprias que fizera seu temperamento subir, mas sim a lembrança de seu pai.
Era estranho, pensou ela enquanto subiam os degraus do Instituto, quão oposto de seu irmão ele era. Cecily gostara perfeitamente de Gideon desde que havia chegado a Londres, mas encontrou-o quieto e contido. Ele não falava muito, e embora às vezes ajudasse Will com a sua formação, era distante e atencioso com todos, menos Sophie. Com ela, era possível ver flashes de humor nele. Ele podia ser muito engraçado ou seco quando queria, e tinha uma natureza sombriamente observadora lado a lado com sua alma tranquila.
Por pedaços recolhidos de Tessa, Will e Charlotte, Cecily montara a história dos Lightwood e começara a entender por que Gideon era tão silencioso. De certa forma, como Will e ela mesma, ele tinha deliberadamente virado as costas para sua família, e carregava as cicatrizes da perda. A escolha de Gabriel tinha sido diferente. Ele ficara ao lado de seu pai e vira a lenta deterioração de seu corpo e mente. O que ele pensou enquanto estava acontecendo? Em que ponto ele percebeu que a escolha que tinha feito era a errada?
Gabriel abriu a porta do Instituto e Cecily passou. Eles foram recebidos pela voz de Bridget flutuando para baixo nas escadas.
“Oh, não o vejo acolá na estrada estreita,
Assaltado violentamente por espinhos e sarças?
É o caminho da justiça,
Apesar de poucos o seguirem.
E você não vê aquela estrada bem larga
Do outro lado dos lírios?
É o caminho da maldade,
Apesar de alguns chamarem de estrada para o Céu.”
— Ela está cantando — Cecily falou, começando a subir as escadas — mais uma vez.
Gabriel, equilibrando os pacotes com agilidade, fez um ruído uniforme.
— Estou morrendo de fome. Será que ela vai me espantar da cozinha com pouco de frango frio e pão se eu disser que não me importo com as músicas?
— Todo mundo se importa com as músicas.
Cecily olhou para o lado, ele tinha um fino perfil. Gideon tinha boa aparência também, mas Gabriel tinha todos os ângulos agudos; o queixo, as maçãs do rosto, que ela pensava ser mais elegante.
— Não é culpa sua, você sabe — ela falou abruptamente.
— O que não é culpa minha?
Eles viraram nas escadas para o corredor do segundo andar. Parecia escuro para Cecily, com as pedras enfeitiçadas brilhando lá em baixo. Ela podia ouvir Bridget, ainda cantando:
“Era uma noite escura, escura, não havia estrelas,
E eles caminharam com sangue vermelho até os joelhos;
Pois todo o sangue entornado na terra
Corre pelas nascentes daquele país.”
— Seu pai — Cecily explicou.
O rosto de Gabriel ficou apertado. Por um momento, Cecily pensou que ele ia retrucar com raiva, mas ao invés disso, ele apenas respondeu:
— Pode ser ou não minha culpa, mas eu escolhi fechar os olhos para seus crimes. Acreditei nele quando era errado fazê-lo, e ele desgraçou o nome Lightwood.
Cecily ficou em silêncio por um momento.
— Eu vim aqui porque acreditava que Caçadores de Sombras eram monstros que tinham roubado meu irmão. Acreditava porque meus pais acreditavam. Mas eles estavam errados. Nós não somos nossos pais, Gabriel. Não temos que carregar o fardo de suas escolhas e seus pecados. Você pode fazer o nome Lightwood brilhar novamente.
— Essa é a diferença entre mim e você — ele falou com amargura — você escolheu vir para cá. Eu fui expulso da minha casa... perseguido até aqui pelo monstro que uma vez foi o meu pai.
— Bem — Cecily disse gentilmente — não perseguido até aqui. Apenas nos limites de Chiswick, pensei.
— O que...
Ela sorriu.
— Sou irmã de Will Herondale. Você não pode esperar que eu seja séria o tempo todo.
A expressão dele foi tão engraçada que Cecily riu, ela ainda estava rindo quando eles empurraram a porta da biblioteca e entraram – e então pararam.
Charlotte, Henry e Gideon estavam sentado em torno de uma das mesas compridas. Magnus estava a distância, perto da janela, as mãos cruzadas atrás dele. Suas costas estavam rígidas e eretas. Henry parecia pálido e cansado, Charlotte chorosa. O rosto de Gideon era uma máscara. O riso morreu nos lábios de Cecily.
— O que é isso? Tiveram notícias? É Will...?
— Não é Will — disse Charlotte — é Jem.
Cecily mordeu o lábio enquanto seu batimento cardíaco diminuiu com alívio culpado. Ela tinha pensado primeiro em seu irmão, mas é claro que era seu parabatai que estava em perigo mais iminente.
— Jem — ela repetiu.
— Ele ainda está vivo — Henry falou, em resposta a sua pergunta não formulada.
— Bom, então. Temos tudo — Gabriel disse, colocando os pacotes em cima da mesa — tudo o que Magnus pediu – Damiana, cabeça de morcego arraigada...
— Obrigado — Magnus falou da janela, sem se virar.
— Sim, obrigada — disse Charlotte — fizeram tudo o que pedi, e sou grata. Mas temo que seu trabalho foi em vão — ela olhou para baixo, para os pacotes, e então de volta para cima novamente. Ficou claro que estava tomando um grande esforço para falar — Jem tomou uma decisão. Ele quer que deixemos de buscar por uma cura. Tomou a última dose do yin fen; não há mais, e é uma questão de horas agora. Eu chamei os Irmãos do Silêncio. É hora de dizer adeus.
***
Estava escuro na sala de treinamento. As sombras era longas no chão e o luar entrava pelas elevadas janelas arqueadas. Cecily se sentou em um dos gastos bancos e olhou para os padrões do luar no chão de madeira lascada.
Sua mão direita tocava preocupada o pingente vermelho em torno de sua garganta. Ela não podia deixar de pensar em seu irmão. Parte de sua mente estava no Instituto, mas o resto estava com Will: no lombo de um cavalo, lançando-se contra o vento, com dores de cavalgada nas estradas que saíam de Londres para Dolgellau. Se perguntava se ele estava assustado. Se perguntava se o veria novamente.
Estava tão imersa em pensamentos que só despertou com o rangido da porta se abrindo. Uma longa sombra foi lançada pelo chão, e ela ergueu a cabeça para ver Gabriel Lightwood piscando para ela com surpresa.
— Escondida aqui, não é? Isso é... estranho.
— Por quê? — Ela ficou surpresa com quão normal sua voz soou, igualmente calma.
— Porque eu tinha a intenção de me esconder aqui.
Cecily ficou em silêncio por um momento. Gabriel realmente parecia um pouco incerto, diferente – ele geralmente era tão confiante. Apesar de ser uma confiança mais frágil que a de seu irmão. Estava escuro demais para ela ver a cor de seus olhos ou cabelos, e pela primeira vez pôde realmente ver a semelhança entre ele e Gideon. Eles tinham o mesmo queixo determinado, os mesmos olhos bem espaçados e postura cuidadosa.
— Você pode se esconder aqui comigo — ela falou — se assim o desejar.
Ele acenou com a cabeça e atravessou a sala até onde ela estava sentada, mas em vez de se juntar a Cecily, moveu-se para a janela e olhou para fora.
— A carruagem dos Irmãos do Silêncio está aqui — ele disse.
— Sim — Cecily concordou.
Ela sabia de sua leitura do Códex que os Irmãos do Silêncio eram os médicos e sacerdotes do mundo dos Caçadores de Sombras, podia-se esperar encontrá-los igualmente em leitos de morte, enfermarias e partos.
— Pensei que eu deveria ver Jem. Por Will. Mas eu não... eu não pude me forçar a ir. Sou uma covarde — acrescentou. Não era algo que já tinha pensado de si.
— Então eu também sou — respondeu ele.
A luz da lua caía em um lado de seu rosto, fazendo parecer como se ele estivesse usando uma meia máscara.
— Eu vim aqui para ficar sozinho – e, francamente, para ficar longe dos Irmãos, eles me dão arrepios. Pensei que poderia jogar paciência. Poderíamos, se você quiser, jogar rouba monte.
— Como Pip e Estela em Grandes esperanças — disse Cecily, com um lampejo de diversão — mas não, eu não sei jogar cartas. Minha mãe tentou manter os baralhos longe de casa, já que meu pai... tinha uma fraqueza por eles — ela olhou para Gabriel — sabe, em alguns aspectos, somos iguais. Nossos irmãos mais velhos se foram e estávamos sozinhos, sem irmão ou irmã, com um pai que estava se deteriorando. O meu ficou um pouco louco por um tempo depois que Will se foi e Ella morreu. Levou anos para recuperar-se e, depois de um tempo perdemos nossa casa. Assim como você perdeu Chiswick.
— Chiswick foi tirado de nós — Gabriel falou com uma pontada ácida de amargura — e para ser honesto, eu sinto falta e não sinto. Minhas memórias do lugar... — ele estremeceu. — Meu pai se trancou em seu escritório uma noite antes de eu vir aqui pedir ajuda. Eu deveria ter vindo antes, mas era muito orgulhoso. Não queria admitir que estava errado sobre o pai. Foram duas semanas em que mal dormi. Bati na porta do escritório e implorei para meu pai para sair, falar comigo, mas tudo o que ouvia eram ruídos desumanos. Tranquei minha porta à noite, e pela manhã, havia sangue nas escadas. Disse a mim mesmo que os servos tinham fugido, mas eu sabia melhor. Então, não, nós não somos os mesmos, Cecily, porque você os deixou. Você foi corajosa. Eu permaneci até que não havia escolha a não ser sair. Fiquei mesmo sabendo que estava errado.
— Você é um Lightwood. Ficou porque é fiel ao nome de sua família. Não é covardia.
— Não é? A lealdade ainda é uma qualidade louvável quando mal direcionada?
Cecily abriu a boca, e depois fechou novamente.
Gabriel estava fitando-a, seus olhos brilhando ao luar. Ele parecia genuinamente desesperado para ouvir sua resposta. Ela se perguntou se ele não tinha mais ninguém com quem conversar. Podia ver como poderia ser aterrorizante obter respostas de alguém tão escrupulosamente moral quanto Gideon, ele parecia tão firme, como se nunca tivesse se questionado em sua vida e não entendia quem o fazia.
— Eu acho — ela falou, escolhendo as palavras com cuidado — que qualquer impulso pode ser transformado em algo maligno. Olhe para o Magistrado. Ele faz o que faz porque odeia os Caçadores de Sombras, por lealdade a seus pais, que cuidaram dele, e que foram mortos. Não é algo além do não entendimento. E ainda não há desculpas para isso. Acho que quando fazemos escolhas, cada uma é diferente das escolhas que fizemos antes, devemos examinar não apenas nossas razões para tomá-las, mas em que elas resultarão, e se pessoas boas vão ser feridas por nossas decisões.
Houve uma pausa.
— Você é muito sábia, Cecily Herondale.
— Não se arrependa muito das escolhas que fez no passado, Gabriel — disse, consciente de que estava usando seu nome de batismo, sem ser capaz de evitar — apenas faça as mais acertadas no futuro. Sempre somos capazes de mudar e sempre podemos melhorar.
— Isso não é o que o meu pai queria que eu fosse, e apesar de tudo, encontro-me relutante em dispensar a esperança da sua aprovação.
Cecily suspirou.
— Nós podemos fazer o nosso melhor, Gabriel. Eu tentei ser a criança meus pais queriam, a senhorita que queriam que eu fosse. Deixei de tentar levar Will de volta porque pensei que era a coisa certa a fazer. Eu sabia que eles estavam tristes que Will tivesse escolhido um caminho diferente – e é o caminho certo para ele, por mais que seja de uma forma estranha. É o seu caminho. Não escolha o que seu pai teria feito ou o que seu irmão escolheria. Seja o Caçador de Sombras que você deseja ser.
Ele parecia muito jovem quando perguntou:
— Como você sabe que eu vou fazer a escolha certa?
Lá fora, os cascos dos cavalos sobre as lajes do pátio ecoaram pela janela. Os Irmãos do Silêncio estavam saindo. Jem, Cecily pensou, com uma pontada no coração. Seu irmão sempre o olhara como uma espécie de estrela do norte, uma bússola que jamais iria apontá-lo na direção certa novamente.
Ela nunca pensara em seu irmão como afortunado antes, e certamente não teria esperado fazê-lo hoje em dia – ainda mais com tudo o que acontecera. Sempre ter alguém a quem recorrer assim, e não se preocupar constantemente que estivesse olhando para as estrelas erradas. Ela tentou fazer sua voz tão firme e forte quanto podia, tanto para si mesmo quanto para o garoto na janela.
— Talvez, eu tenha fé em você, Gabriel Lightwood.
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