Capítulo 17 - É Nobre Ser Bom

Oh Amor! que lamenta
A fragilidade de todas as coisas aqui,
Por que escolher o mais frágil
Para seu berço, sua casa e seu esquife?
– Percy Bysshe Shelley, Lines: When the lamp is shattered

Para: Cônsul Josias Wayland
De: Charlotte Branwell

Caro Cônsul Wayland,
Recebi uma notícia da mais grave importância, que apresso a dar-lhe. Um informante, cujo nome não posso falar-lhe neste momento mas a quem atesto como confiável, transmitiu-me detalhes que me sugerem que a senhorita Gray não é um mero capricho passageiro de Mortmain, mas a chave para o seu principal objetivo: como sabe, a destruição de todos nós.
Ele conspira construir peças de maior poder do que qualquer outra já vista antes, e temo profundamente que as habilidades únicas da senhorita Gray vão ajudá-lo nesta empreitada. Ela nunca pretenderia nos prejudicar, porém não sabemos que as ameaças ou indignidades Mortmain vai lhe fazer. É indispensável que ela seja resgatada, tanto para salvar todos nós quanto para ajudá-la.
À luz desta nova informação, eu mais uma vez imploro-lhe para reunir forças e marchar sobre Cadair Idris.

Com os melhores cumprimentos, e em perigo sincero,
Charlotte Branwell

***

Tessa acordou lentamente, como se a consciência fosse o final de um longo corredor escuro e ela estivesse andando para lá no ritmo de uma lesma. Finalmente ela alcançou, e abriu a porta para revelar...
Luz ofuscante. Era uma luz dourada, não pálida como a pedra enfeitiçada. Ela se sentou e olhou ao seu redor.
Estava em uma cama de latão simples, com um lençol escuro esticado sobre um segundo colchão, e um edredom pesado por cima. O quarto em que estava parecia ter sido uma caverna oca. Havia um alto aparador e um lavatório com um jarro azul nele; havia também um guarda-roupa, a porta aberta apenas o suficiente para que Tessa pudesse ver roupas penduradas no interior. A sala não tinha janelas, embora na lareira uma chama alegre queimasse. De cada lado da lareira estavam pendurados retratos.
Ela saiu da cama e estremeceu quando os pés descalços encontraram pedra fria. Não foi tão doloroso quanto ela esperava, dado o seu estado maltratado. Olhando para baixo, teve dois choques rápidos: o primeiro era que não estava vestindo nada além de um grande roupão preto de seda. O segundo era que seus cortes e contusões pareciam ter desaparecido. Ainda se sentia um pouco dolorida, mas sua pele pálida contra a seda preta, não tinha marcas. Tocando o cabelo, sentiu que ele estava limpo e solto ao redor de seus ombros, não mais emaranhado com lama e sangue.
Isso deixou a questão de quem a limpou, curou e colocou-a nesta cama. Tessa só se lembrava de lutar com os autômatos na pequena choupana enquanto a Sra. Black ria. Eventualmente, um deles a sufocou para a inconsciência e uma escuridão misericordiosa chegara. Ainda assim, a ideia de a Sra. Black despi-la e dar-lhe banho foi horrível, embora talvez não tão horrível quanto a ideia de Mortmain fazê-lo.
A maioria dos móveis na sala estava agrupado em um lado da caverna. O outro lado estava em grande parte vazio, mas ela podia ver o retângulo preto de uma porta cortada na parede oposta. Depois de um breve olhar ao redor, Tessa fez seu caminho em direção a ela...
Só para encontrar ela própria, do outro lado do quarto, coberta de pequenos hematomas. Ela cambaleou de volta, fechando seu roupão com mais força sobre si, a testa ardendo, onde ela bateu em algo. Cautelosamente, Tessa estendeu a mão, traçando o ar à sua frente. Sentiu algo duro e sólido na frente dela, como se uma parede de vidro perfeitamente transparente estivesse entre ela e o outro lado da sala. Ela apertou as mãos contra a superfície. Podia ser invisível, mas era tão dura quanto inflexível. Moveu as mãos para cima, imaginando quão alto poderia ser...
— Eu não me incomodaria — disse uma voz fria, familiar da porta — a configuração se estende por toda a caverna, de parede a parede, do teto ao chão. Você está completamente murada atrás dele.
Tessa tinha se esticado nas pontas dos pés, deixou-se descer novamente e recuou um passo.
Mortmain.
Ele estava exatamente como Tessa se lembrava. Um homem magro, não muito alto, com um rosto enrugado e barba bem aparada. Extraordinariamente comum, salvo seus olhos, que eram frios e cinzentos como uma tempestade de inverno. Ele usava um terno cinza, não muito formal, o tipo de coisa que um cavalheiro poderia usar durante a tarde no clube. Seus sapatos polidos brilhavam bastante.
Tessa não disse nada, apenas puxou o roupão preto mais sobre si. Era comprido e escondia todo o seu corpo, mas sem a camisa chemise e o espartilho, as meias e as anáguas, ela sentia-se nua e exposta.
— Não entre em pânico mesmo — Mortmain aproximou-se — você não pode me atingir através da parede, mas também não posso chegar até você. Não sem desfazer o feitiço em si, o que levaria tempo — ele fez uma pausa — eu queria que você se sentisse segura.
— Se quisesse que eu me sentisse segura, teria me deixado no Instituto — o tom de Tessa foi assustadoramente frio.
Mortmain não respondeu nada, apenas ergueu a cabeça e olhou para ela como um marinheiro apertando os olhos para o horizonte.
— Minhas condolências pela morte de seu irmão. Eu nunca quis que isso acontecesse.
Tessa sentiu sua boca tomar um formato terrível. Fazia dois meses que Nate morrera em seus braços, mas ela não o tinha esquecido ou perdoado.
— Não quero sua piedade. Ou seus bons desejos. Fez dele uma ferramenta para você, e então ele morreu. Foi culpa sua, tão certo como se tivesse atirado-o na rua.
— Suponho que eu deveria apontar que ele foi o único que me procurou.
— Ele era apenas um garoto — ela queria afundar até os joelhos, queria bater naquela barreira invisível com os punhos, mas se manteve em pé e fria — ele não tinha nem vinte anos.
Mortmain deslizou as mãos nos bolsos.
— Sabe como foi para mim, quando eu era garoto? — Ele falou, em um tom tão calmo que parecia que ele estava sentado ao lado dela em um jantar e forçara-se a começar uma conversa.
Tessa pensou nas imagens que tinha visto na mente de Aloysius Starkweather.
O homem era alto, e com a pele verde como um lagarto. Seu cabelo era preto. A criança que ele segurava pela mão, pelo contrário, parecia tão normal quanto uma criança pode ser quando pequena, punhos gordinhos, pele rosada.
Tessa sabia o nome do homem, porque Starkweather sabia.
John Shade.
Shade içou a criança sobre seus ombros quando atravessou a porta da casa com uma série de criaturas de aparência estranha de metal, como a de uma criança articulando bonecos, mas era do tamanho de um homem, e com a pele brilhando feito de metal. As criaturas tinham traços característicos. Embora, curiosamente, usassem roupas – brutas, macacão de operários e de fazendeiros de Yorkshire em alguns, e em outros simples vestidos de musselina. Os autômatos juntaram as mãos e começaram a dançar, como se estivessem num salão de baile. A criança riu e bateu palmas.
 Olhe bem para isso, meu filho  disse o homem de pele verde — um dia eu vou governar o reino com a ajuda de tais seres mecânicos, e você vai ser o seu príncipe.
— Eu sei que seus pais adotivos foram feiticeiros — ela falou — que eles cuidaram de você. Que seu pai inventou as criaturas mecânicas com as quais você está tão cativado.
— E você sabe o que aconteceu com eles.
... um quarto destruído, engrenagens de metal jogadas por toda a parte, o fluído negro como sangue, o homem de pele verde e a mulher de cabelo azul estendidos entre as ruínas....
Tessa olhou para longe.
— Deixe-me contar-lhe sobre a minha infância. Os pais adotivos, como você os chama, eram tanto meus pais quanto qualquer quantidade de sangue poderia torná-los. Eles me criaram com cuidado e amor, assim como os seus fizeram com você.
Ele fez um gesto em direção à lareira, e Tessa percebeu com um choque que os retratos que pendiam ao lado da lareira eram de seus próprios pais: sua mãe de cabelos claros e aparência pensativa, seu pai com os olhos castanhos e a gravata torta.
— E então eles foram mortos por Caçadores de Sombras. Meu pai queria criar estes belos autômatos, estas criaturas mecânicas, como você chama. Eles seriam as maiores máquinas já inventadas, ele sonhou, iriam proteger os Seres do Submundo contra os Caçadores de Sombras, que rotineiramente assassinavam e roubavam deles. Você viu os despojos de Starkweather no Instituto — ele cuspiu as últimas palavras — você viu pedaços de meus pais. Ele mantinha o sangue da minha mãe em um frasco.
E os restos de bruxos. Mãos em garras mumificadas, como a da Sra. Black. Um crânio totalmente aberto, de aparência humana, só que tinha presas em vez de dentes. Frascos de sangue com aparência lamacenta.
Tessa engoliu em seco. Sangue da minha mãe em uma frasco. Ela não podia dizer que não compreendia sua raiva. E, no entanto, ela pensou em Jem, seus pais morrendo na frente dele, a vida dele destruída, e ainda assim ele procurou vingança.
— Sim, foi horrível. Mas não é desculpa para as coisas que você fez.
Ela viu o lampejo de algo profundo em seus olhos: raiva, rapidamente escondida.
— Deixe-me contar-lhe o que eu fiz. Eu criei um exército. Um exército que, uma vez que a última do quebra-cabeça estiver no lugar, será invencível. E a última peça do quebra-cabeça — disse Mortmain — é você.
— Você fica dizendo isso e ainda assim se recusa a me explicar. Quer a minha cooperação e ainda assim não me diz nada. Me prendeu aqui, sir, mas não pode me forçar a falar com você, ou mudar minhas vontades, se eu optar por não...
— Você é meio Caçadora de Sombras, meio demônio. Essa é a primeira coisa você deveria saber.
Tessa, já pronta para se afastar dele, congelou.
— Isso não é possível. A descendência de Caçadores de Sombras e demônios são natimortos.
— Sim, são. Eles são. O sangue de um Caçador de Sombras, as runas no corpo de um Caçador de Sombras, significam a morte da criança feiticeira no útero. Mas sua mãe não era Marcada.
— Minha mãe não era uma Caçadora de Sombras! — Tessa olhou selvagemente para o retrato de Elizabeth Gray sobre a lareira. — Ou você está dizendo que ela mentiu para o meu pai, mentiu para todos em sua vida inteira...
— Ela não sabia — Mortmain interrompeu — os Caçadores de Sombras não sabiam. Nunca houve ninguém para lhes dizer. Meu pai construiu seu anjo mecânico, você sabe. Era para ser um presente para minha mãe. Dentro dele há um pouco do espírito de um anjo, uma coisa rara, algo que carregava com ele desde as Cruzadas. O próprio mecanismo foi concebido para estar sintonizado com a vida dela, para que cada vez que sua vida fosse ameaçada, o anjo seria intervisse para protegê-la. No entanto, meu pai nunca teve a chance de terminá-lo. Ele foi assassinado antes — Mortmain começou a andar — meus pais não foram apontados como vítimas de assassinato, é claro. Starkweather e sua espécie abatem os Seres do Submundo – enriquecem com o espólio roubado – e não há a mínima abertura para trazer a violência contra eles. Por isso ele era odiado pela comunidade do Submundo. As fadas do campo que me ajudaram a escapar quando meus pais foram mortos, e me escondi até que os Caçadores de Sombras pararam de me procurar — ele tomou uma respiração trêmula — anos mais tarde, quando eles decidiram ter sua vingança, eu os ajudei. Institutos estão protegidos contra a entrada de Seres do Submundo, mas não contra os mundanos e, naturalmente, contra autômatos — ele deu um sorriso terrível — foi assim que eu, com a ajuda de uma das invenções do meu pai, infiltrei-me no Instituto York e troquei o bebê no berço de lá por um mundano. A neta de Starkweather, Adele.
— Adele — Tessa sussurrou — eu vi um retrato dela.
Uma menina muito jovem, com cabelos longos e louros, usando o vestido de uma criança à moda antiga, uma fita enorme aparecendo em sua cabeça pequena. Seu rosto era magro, pálido e doente, mas seus olhos estavam brilhantes.
— Ela morreu quando as primeiras runas lhe foram aplicadas — Mortmain falou com prazer — morreu gritando, como tantos Seres do Submundo morreram antes nas mãos dos Caçadores de Sombras. Agora eles mataram um que era amado. A retribuição adequada.
Tessa olhou-o com horror. Como alguém poderia achar que morrer em agonia era retribuição para uma criança inocente? Ela pensou em Jem novamente, suas mãos suaves no violino.
— Elizabeth, sua mãe, não cresceu sabendo que era uma Caçadora de Sombras. Ela não recebeu runas. Eu segui o seu progresso, é claro, e quando ela se casou com Richard Gray, tive a certeza de empregá-lo. Eu acreditava que a falta de runas em sua mãe significava que ela poderia conceber uma criança que era meio demônio, meio Caçador de Sombras, e para testar essa teoria eu mandei um demônio para ela na forma de seu pai. Ela nunca soube a diferença.
Apenas o estômago vazio de Tessa a impedia de vomitar.
— Você... fez o que... com a minha mãe? Um demônio? Eu sou meio demônio?
— Ele era um Grande Demônio, se isso te conforta. A maioria deles foi anjo uma vez. O aspecto era semelhante o suficiente — Mortmain sorriu — antes de sua mãe ficar grávida, eu havia trabalhado durante anos para terminar o anjo mecânico do meu pai. Eu o terminei, e depois que você foi concebida, o sintonizei com a sua vida. Minha maior invenção.
— Mas porque minha mãe estaria disposto a usá-lo?
— Para te salvar você — Mortmain respondeu — sua mãe percebeu que algo estava errado quando ela ficou grávida. Carregar um feiticeiro não é o mesmo que carregar uma criança humana. Fui até ela, em seguida, dei-lhe o anjo mecânico. Falei que usá-lo salvaria a vida de seu filho. Ela acreditou em mim. Eu não estava mentindo. Você é imortal, garota, mas não é invulnerável. Pode ser morta. O anjo está atento a sua vida, foi projetado para conservá-la se você estiver morrendo. Ele pode ter te salvado uma centena de vezes antes que você nascesse, e te salva desde então. Pense nas vezes em que esteve perto da morte. Pense na maneira como ele interveio.
Tessa buscou suas memórias, a forma como seu anjo tinha voado no autômato que a sufocava, rechaçara as lâminas da criatura que a tinha atacado em Ravenscar Manor, a impediu de se despedaçar nas rochas do desfiladeiro.
— Mas não me salvou da tortura, nem dos ferimentos.
— Não. Aquilo era parte da condição humana.
— Assim como a morte — disse Tessa — eu não sou humana, então você permite que as Irmãs Sombrias me torturem. Eu nunca poderia perdoá-lo por isso. Mesmo que me convencesse a morte do meu irmão era culpa dele, que a morte de Thomas foi justificada, que seu ódio era razoável, eu poderia nunca perdoá-lo por isso.
Mortmain ergueu a caixa a seus pés despejou seu conteúdo no chão. Houve um estrondo enquanto peças caíam dali – engrenagens e rodas dentadas, pedaços de metal molhados com fluido preto e, por último, saltando sobre o resto do lixo como bola de borracha vermelha de uma criança, uma cabeça decepada.
Da Sra. Black.
— Eu a destruí. Por você. Queria mostrar que eu sou sincero, senhorita Gray.
— Sincero em quê? — Tessa exigiu. — Por você fez tudo isso? Por que você me criou?
Os lábios dele tremeram um pouco, não era um sorriso, não de verdade.
— Por dois propósitos. O primeiro é para que você possa ter filhos.
— Mas bruxos não podem...
— Não — Mortmain interrompeu — mas você não é uma feiticeira comum. Em ti, o sangue de demônio e o sangue de anjo tem lutado sua guerra no próprio Céu, e os anjos têm sido vitoriosos. Você não é uma Caçadora de Sombras, mas não é uma bruxo, também. Você é algo novo, algo totalmente diferente. Caçadores de Sombras — ele cuspiu — todos os híbridos de Caçadores de Sombras e demônios morrem, e os Nephilim são orgulhosos disso, contentes de que seu sangue nunca será poluído, sua linhagem maculada por magia. Mas você. Você pode fazer magia. Pode ter filhos como qualquer outra mulher. Não por alguns anos ainda, mas quando chegar a sua plena maturidade. Os maiores bruxos vivos me garantiram. Juntos, vamos começar uma nova raça, com a beleza dos Caçadores de Sombras e sem a marca dos feiticeiros. Será uma corrida que vai quebrar a arrogância dos Caçadores de Sombras, substituindo-os da face da Terra.
Pernas de Tessa falharam. Ela caiu no chão, o roupão espalhando-se em torno de si como água negra.
— Você... você quer me usar para ter os seus filhos?
Agora ele fez uma careta.
— Eu não sou um homem sem honra. Ofereço-lhe casamento. Eu sempre planejei isso — ele apontou para a pilha irregular de metal e carne que uma vez foi a Sra. Black — se eu puder ter a sua cooperação de boa vontade, eu preferiria. E posso prometer tratar assim todos os seus inimigos.
Meus inimigos. Ela pensou em Nate, a mão fechando na dela enquanto ele morria, sangrando, em sua colo. Pensou em Jem novamente, na maneira como ele nunca protestou contra seu destino, mas o enfrentava bravamente; pensou em Charlotte, que chorou por Jessamine, embora Jessie a tivesse traído, e pensou em Will, que tinha entregado o seu coração para ela e Jem passaram por cima, porque ele os amava mais do que amava a si mesmo. Havia bondade humana no mundo, ela pensou – acompanhado com os desejos e sonhos, tristezas e amarguras, ressentimentos e poderes – mas ele estava lá, e Mortmain nunca iria vê-lo.
— Você nunca vai entender. Diz que quer construir, inventar, mas eu conheço um inventor, Henry Branwell, e você não é nada como ele. Ele traz coisas para a vida, você só destrói. E agora me traz outro demônio morto; em vez de flores, mais morte. Você não tem sentimentos, Sr. Mortmain, nenhuma empatia por qualquer um. Mesmo que eu não soubesse disso antes, ficou muito claro quando você tentou usar a doença de James Carstairs para me forçar a vir aqui. Embora ele esteja morrendo por sua causa, ele não me permitiria vir – preferiria não tomar o seu yin fen. Assim é como as pessoas boas se comportam.
Ela viu o olhar em seu rosto. Desapontamento. Estava lá apenas por um momento, porém, antes de ser sobreposto por um olhar astuto.
— Não permitiu que você viesse? — ele falou. — Então eu não te subestimei, você teria feito isso. Teria vindo para cá por amor.
— Não amor por você.
— Não — ele concordou, pensativo — não por mim.
Ele tirou do bolso um objeto que Tessa reconheceu imediatamente.
Ela olhou para o relógio que ele estendia, pendurado em sua corrente de ouro. Estava claramente parado. Os ponteiros há muito tempo haviam parado de girar, o tempo parecendo congelado à meia-noite. As iniciais J.T.S. estavam gravadas na parte de trás em caligrafia elegante.
— Eu disse que há duas razões por que te criei você. Esta é a segunda. Há transmorfos no mundo: demônios e bruxos que podem tomar a aparência de outros. Mas só você pode realmente tornar-se alguém. Este relógio era do meu pai. John Thaddeus Shade. Peço que pegue este relógio e mude para o meu pai, então eu poderei falar com ele mais uma vez. Se fizer isso, enviarei todo o yin fen que eu tiver em minha posse – e é um montante considerável – para James Carstairs.
— Ele não irá aceitá-lo — Tessa disse imediatamente.
— Por que não? — Seu tom era razoável. — Você já não é uma condição para a droga. É um presente, dado livremente. Seria tolice jogá-lo fora e não aproveitar nada. Ao passo que fazendo esta pequena coisa para mim, você pode salvar a vida dele. O que me diz, Tessa Gray?

***

Will. Will, acorde.
Era a voz de Tessa, sem dúvida, e Will sentou-se ereto na sela. Ele apanhou a crina de Balios para se firmar e olhou ao redor com olhos turvos.
Verde, cinza, azul. A vista do campo galês espalhado diante dele. Ele passara por Welshpool e pela fronteira da Inglaterra com o País de Gales por volta do amanhecer. Lembrava pouco de sua jornada, apenas uma contínua progressão tortuosa de lugares: Norton, Atcham, Emstrey, Weeping Cross, desviando o cavalo ao redor de Shrewsbury e, finalmente, finalmente a fronteira e as montanhas galesas à distância. Eles estavam fantasmagóricos à luz da manhã, tudo envolto em névoa que lentamente desaparecia enquanto o sol tinha se erguia.
Supôs que estava em algum lugar perto de Llangadfan. Era uma estrada bonita, num velho atalho romano, mas quase vazio de habitações além de uma fazenda ocasional, e parecia infinitamente longa, mais comprida que o céu cinza que se estendia por cima. No Cann Office Hotel, ele obrigou-se a parar e comer um pouco, mas apenas por uns momentos. A viagem era o que importava.
Agora que estava no País de Gales, podia sentir aquilo – o magnetismo em seu sangue para o lugar onde ele tinha nascido. Apesar as palavras de Cecily, ele não sentia a conexão até agora – respirar o ar galês, ver as cores do País de Gales: o verde dos morros, o cinza da ardósia e do céu, a palidez de pedra caiada casas, os pontos brancos das ovelhas contra a grama. Pinheiros e carvalhos eram esmeralda escuro na distância, e mais acima, mas perto da estrada, a vegetação crescia verde acinzentada e ocre.
Enquanto se movia mais para o coração do país, as verdes colinas suaves cresceram potencialmente, o caminho ficou mais íngreme, e o sol começou a afundar em direção à borda da distante montanha.
Ele sabia onde estava, agora, soube quando passou para o Vale do Dyfi, e as montanhas na frente corriam para o alto, fortes e irregulares. O pico Car Afron estava a sua esquerda, uma queda de ardósia cinza e cascalho como teias de aranha cinza em toda a lateral. O caminho era íngreme e longo, e quando Will incitou Balios, ele caiu para frente na sela e, contra sua vontade, derivou para fora de sua consciência.
Sonhava com Cecily e Ella subindo e descendo colinas e não muito diferente destas, chamando por ele, Will! Venha correr com a gente, Will! E ele sonhou com Tessa e as mãos estendidas para ele, e soube que não podia parar, não conseguiria parar até que a alcançasse. Mesmo que ela nunca olhasse por ele em vigília, mesmo que a suavidade em seus olhos fosse para outra pessoa. E algumas, vezes, como agora, sua mão escorregaria para o bolso e se fecharia em torno do pingente de jade ali.
Algo acertou-lhe com força na lateral; ele derrubou o pingente quando ele caiu asperamente sobre a grama rochosa ao lado da estrada. A dor subiu-lhe no braço, e ele rolou para o lado a tempo de evitar Balios atingindo a terra ao lado dele.
Levou um momento para ele, ofegante, perceber que eles não tinham sido atacados. Seu cavalo, exausto demais para dar outro passo, desabou debaixo dele. Will ficou de joelhos e rastejou até Balios. O cavalo preto estava coberto por espuma, os olhos revirando para Will enquanto o Caçador de Sombras se aproximou dele e colocou um braço ao redor de seu pescoço. Para seu alívio, o pulso do cavalo era firme e forte.
— Balios, Balios — ele sussurrou, acariciando o crina do animal — sinto muito. Eu não devia ter montado você desse jeito.
Ele lembrou-se de quando Henry comprara os cavalos e estava tentando decidir como nomeá-los. Will quem escolhera os nomes: Balios e Xanthos, como os cavalos imortais de Aquiles. Nós dois podemos voar tão rápido quanto Zéfiro, que dizem ser o mais veloz dos ventos.
Mas aqueles cavalos eram imortais, e Balios não. Mais forte do que um cavalo comum, e mais rápido, porém toda criatura tem seus limites. Will deitou, a cabeça girando, e olhou para o céu – como um lençol cinza puxado com firmeza, alguns toques de nuvens negras aqui e ali.
Ele pensou uma vez, nos breves instantes entre o “fim” da maldição e a descoberta de que Jem e Tessa estavam noivos, em trazer Tessa para Gales a fim de mostrar os lugares de sua infância. Pensou em levá-la a Pembrokenshire para andar em volta de Saint David’s Head e ver as flores do topo da colina, o mar azul de Tenby e encontrar conchas nas linhas da maré. Tudo agora parecia um sonho distante de criança. Havia apenas a estrada à frente, mais cavalgada e mais cansaço, e uma provável morte no fim.
Com outro afago tranquilizante no pescoço do cavalo, Will ficou de pé. Lutando contra a tontura, mancou até o topo da colina e olhou para baixo.
Havia um pequeno vale, no qual se encontrava uma pequena vila de pedra, um pouco maior do que um vilarejo. Pegou a estela do cinto e desenhou um símbolo de Visão no pulso esquerdo. Aquilo lhe deu poder suficiente para enxergar que a vila tinha uma praça e uma pequena igreja. Certamente teria alguma pousada onde poderia descansar à noite.
Tudo em seu coração o incentivava a seguir, a concluir a missão – não podia estar a mais de 30 quilômetros do objetivo – mas continuar significaria matar o cavalo, e sabia que chegar sozinho em Cadair Idris consistiria em não ter condições de combater ninguém. Voltou-se novamente para Balios e, com uma aplicação cuidadosa de carinhos e punhados de aveia, conseguiu levantar o cavalo. Pegando as rédeas e cerrando os olhos para o pôr do sol, começou a conduzir Balios pela colina, em direção à vila.

***

A cadeira em que Tessa estava sentada tinha um encosto alto e esculpido, com pregos imensos cujas pontas cutucavam-lhe as costas. Diante dela havia uma mesa ampla, com livros em uma das pontas. E sobre a mesa havia papel, um pote de tinta e uma pena. Ao lado do papel, o relógio de bolso de John Shade.
De cada lado, havia dois enormes autômatos. Pouco esforço fora empregado em fazê-los parecer humanos. Eram quase triangulares, com braços grossos se projetando de cada lado do corpo e cada braço culminando em uma lâmina afiada. Eram um tanto assustadores, mas Tessa não podia deixar de sentir que, se Will estivesse ali, comentaria que pareciam nabos, e talvez fizesse uma música sobre isso.
— Pegue o relógio — disse Mortmain. — E Transforme-se.
Ele estava sentado diante dela, em uma cadeira semelhante a sua, com o mesmo encosto alto e curvo. Estavam em outra sala cavernosa, para a qual ela fora levada por autômatos. A única luz vinha de uma lareira gigante, grande o bastante para assar uma vaca. O rosto de Mortmain estava encoberto por sombras, os dedos sob o queixo.
Tessa ergueu o relógio. Era pesado e frio em suas mãos. Ela fechou os olhos. Contava apenas com a palavra de Mortmain de que ele enviaria o yin fen; no entanto, ela acreditava. Ele não tinha razão para não fazê-lo, afinal. Que diferença faria se Jem Carstairs vivesse um pouco mais? Aquilo fora apenas um instrumento de barganha para levá-la às mãos dele, e aqui estava, com ou sem yin fen.
Ouviu a respiração de Mortmain chiar entre os dentes, e firmou os dedos sobre o relógio. De repente, ele pareceu pulsar em sua mão, como o anjo mecânico fazia às vezes, parecendo que tinha uma própria vida. Sentiu a mão se mexer, e, de repente, a Transformação tomou conta dela – sem precisar se esforçar como normalmente fazia. Engasgou um pouco ao sentir a Transformação dominá-la como um vento forte, puxando-a para baixo. De repente, John Shade estava ao seu redor, sua presença se sobrepondo à dela. A dor passou por seu braço, e ela soltou o relógio, que caiu ruidosamente sobre a mesa, mas a Transformação não podia ser contida. Seus ombros alargaram sob o vestido, os dedos ficaram verdes, a cor se espalhou pelo corpo como verdete sobre cobre.
A cabeça dela se levantou. Ela parecia pesada, como se um peso enorme a pressionasse. Olhando para baixo, viu que tinha os braços fortes de um homem, uma pele verde, escura e texturizada, as mãos grandes e curvadas. Uma sensação de pânico a dominou, mas era uma faísca pequena, mínima em um imenso golfo de escuridão. Jamais havia se perdido tanto em uma Transformação.
Mortmain havia sentado ereto. Encarava-o com os lábios comprimidos, e os olhos brilhavam com uma luz escura e rígida.
— Pai — disse ele.
Tessa não respondeu. Não pôde responder. A voz que veio de dentro dela não lhe pertencia; era de Shade.
— Meu príncipe mecânico — disse Shade.
A luz nos olhos de Mortmain se expandiu. Ele se inclinou para a frente, empurrando os papéis para Tessa, ansiosamente.
— Pai — falou. — Preciso de sua ajuda, e depressa. Tenho uma Pyxis. Tenho os mecanismos para abri-la. Tenho os corpos dos autômatos. Só preciso do feitiço que criou, o de ligadura. Escreva-o para mim e terei a última peça do quebra-cabeça.
A pequena chama de pânico dentro de Tessa estava crescendo e dominando-a. Este não era um reencontro tocante entre pai e filho. Era algo que Mortmain queria e precisava do feiticeiro John Shade. Ela começou a lutar, a tentar escapar da Transformação, mas estava presa por uma garra que parecia de ferro. Desde que passou a ser treinada pelas Irmãs Sombrias, aprendeu a se livrar de uma Transformação, mas apesar de John Shade estar morto, Tessa podia sentir seu controle firme sobre ela, mantendo-a aprisionada em seu corpo e forçando aquele corpo a agir. Horrorizada, ela viu a própria mão alcançar a pena, mergulhar a ponta na tinta e começar a escrever.
A pena arranhou o papel. Mortmain se inclinou para a frente. Arfava como se estivesse correndo. Atrás dele, o fogo estalava, alto e alaranjado na lareira.
— É isso — disse ele, e a língua lambeu o lábio superior. — Vejo como funcionaria, sim. Finalmente. É exatamente isso.
Tessa encarou. O que vinha da caneta parecia uma enxurrada de bobagens: números, sinais e símbolos que não compreendia. Novamente tentou lutar, conseguindo apenas borrar a página. Lá se ia a pena outra vez – tinta, papel, mais rabiscos. A mão que segurava a pena tremia violentamente, mas os símbolos continuavam fluindo. Tessa começou a morder o lábio: forte e depois mais forte. Sentiu gosto de sangue na boca. Parte do sangue pingou na página. A pena continuou escrevendo através dele e espalhou um líquido escarlate pela folha.
— É isso — disse Mortmain. — Pai...
A ponta da pena estalou, tão barulhenta quanto um tiro, ecoando nas paredes da caverna. A pena quebrou na mão de Tessa, e ela caiu sobre a cadeira, exausta. O verde desbotava da pele, o corpo encolhia. Seus próprios cabelos castanhos caíam soltos sobre os ombros. Ainda sentia o gosto do sangue na boca.
— Não — ela engasgou e se esticou para pegar os papéis — não...
Mas seus movimentos foram lentos em consequência da dor e da Transformação, e Mortmain foi mais rápido. Rindo, ele arrancou os papéis da mão dela e se levantou.
— Muito bem. Obrigado, minha pequena feiticeira. Você me deu tudo que eu precisava. Autômatos, levem a Srta. Gray de volta ao quarto.
A mão metálica se fechou nas costas do vestido de Tessa e a levantou. O mundo parecia balançar entorpecidamente diante dela. Ela viu Mortmain esticar o braço e levantar o relógio dourado que caíra sobre a mesa.
Ele sorriu para o objeto, um sorriso selvagem e vil.
— Vou deixá-lo orgulhoso, pai — falou. — Nunca duvide disso.
Tessa, sem conseguir mais assistir, fechou os olhos. O que eu fiz?, pensou enquanto o autômato começava a empurrá-la de lá. Meu Deus, o que fiz?

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