Capítulo 18 - Somente Por Isso

Somente por isso na Morte desafogo
A ira que se acumula em meu coração:
Ele separa tanto as nossas vidas
Que não conseguimos ouvir o que um diz ao outro.
– Alfred, Lord Tennyson, In Memoriam A.H.H

Tessa estava à beira de um precipício em uma região desconhecida. As colinas ao redor eram verdes, descendo de modo íngreme em precipícios que iam em direção ao mar azul. Aves marinhas rodavam e grasnavam acima dela. Uma trilha cinza se curvava como uma cobra pela borda do topo da colina. Logo à frente, no caminho, estava Will.
Ele trajava uniforme preto e um longo casaco de equitação sujo de lama na bainha, como se tivesse percorrido um caminho extenso. Não usava chapéu nem luvas, e os cabelos escuros estavam emaranhados pelo vento do mar. O vento também levantou o cabelo de Tessa, trazendo o cheiro de sal e mar, de coisas molhadas que crescem à beira do mar; um cheiro que lembrava a viagem marítima no Main.
— Will! — chamou ela.
Havia algo de tão solitário na figura dele, como Tristão observando através do Mar da Irlanda e esperando o navio que o devolveria Isolda. Will não se virou ao ouvir o som da sua voz, apenas levantou os braços, com o casaco esvoaçando ao vento feito asas atrás dele.
O medo floresceu em seu coração. Isolda voltou para Tristão, mas foi tarde demais. Ele já havia morrido de tristeza.
— Will! — chamou novamente.
Ele deu um passo à frente no penhasco. Ela correu para a beirada e olhou para baixo, mas não havia nada, apenas água azul-cinzenta e espuma branca. A maré parecia carregar a voz dele para ela a cada impulso da água.
— Acorde, Tessa. Acorde.

— Acorde, Srta. Gray. Srta. Gray!
Tessa se levantou de súbito. Tinha caído no sono na cadeira perto da lareira em sua pequena prisão; um cobertor azul grosseiro tinha sido jogado sobre ela, apesar de não se lembrar de tê-lo pegado. O quarto ardia com a luz de tochas, e os carvões do fogo estavam baixos. Era impossível dizer se era noite ou dia.
Mortmain se encontrava diante dela, e, ao lado dele, havia um autômato. Um dos mais humanoides que Tessa já vira. Estava até vestido, ao contrário de muitos deles, com túnica militar e calças. As roupas deixavam a cabeça que se erguia do colarinho rijo ainda mais estranha, com aquelas feições exageradamente lisas e a careca metálica. E os olhos – ela sabia que eram de vidro e cristal, as íris vermelhas à luz do fogo, mas a forma como pareciam se fixar nela...
— Você está com frio — observou Mortmain.
Tessa exalou, e a respiração saiu em uma lufada branca.
— O calor de sua hospitalidade deixa a desejar.
Ele sorriu, com os lábios contraídos.
— Muito espirituosa. — Ele próprio estava com um casaco pesado sobre um terno cinza, sempre formal. — Srta. Gray, não a acordo à toa. Venho aqui porque quero que veja o que sua gentil assistência com as lembranças de meu pai me permitiu conquistar. — E gesticulou orgulhosamente para o autômato a seu lado.
— Outro autômato? — perguntou Tessa, desinteressada.
— Que grosseria de minha parte. — Os olhos de Mortmain se desviaram para a criatura. — Apresente-se.
A boca da criatura se abriu; Tessa viu um brilho metálico, e ela falou:
— Sou Armaros — disse. — Por um bilhão de anos percorri os ventos dos grandes abismos entre os mundos. Combati Jonathan, Caçador de Sombras, nas planícies de Brocelind. Por mais mil anos fiquei preso na Pyxis. Agora meu mestre me libertou, e sirvo a ele.
Tessa se levantou, e o cobertor deslizou para os pés, despercebido. O autômato a observava. Seus olhos eram totalmente preenchidos por uma inteligência sombria, uma consciência que nenhum autômato que já tinha visto possuía.
— O que é isso? — sussurrou ela.
— Um corpo de autômato animado por um espírito demoníaco. Os Seres do Submundo já dispõem de maneiras de capturar energias demoníacas e utilizá-las. Eu mesmo já as usei para ativar os autômatos que você conheceu. Mas Armaros e seus irmãos são diferentes. São demônios com carapaças de autômatos. Conseguem pensar e raciocinar. Não são facilmente enganados. E são muito difíceis de matar.
Armaros se esticou – Tessa não pôde deixar de perceber que ele se movia de maneira fluida, suave, sem as travas dos autômatos que já vira antes. Movia-se como uma pessoa. Sacou a espada pendurada em sua lateral e a entregou a Mortmain. A lâmina estava coberta com os símbolos com os quais Tessa havia se familiarizado nos últimos meses, que decoravam as lâminas de todas as armas de Caçadores de Sombras. Eles as tornavam armas de Caçadores de Sombras. Os símbolos que eram mortais a demônios. Armaros mal deveria ser capaz de olhar para a lâmina, quanto mais empunhá-la.
Tessa sentiu um aperto no estômago. O demônio entregou a espada a Mortmain, que a manejou com a precisão de um experiente oficial da marinha. Girou a lâmina, empunhou-a para a frente e enfiou-a no peito do demônio.
Ouviu-se um som de metal partindo. Tessa estava acostumada a ver autômatos sucumbirem ao serem atacados, derramarem fluido negro ou cambalearem. Mas o demônio se manteve de pé, sem piscar ou se mover, como um lagarto ao sol. Mortmain girou o cabo furiosamente, em seguida, puxou a arma.
A lâmina se desmanchou em cinzas; como uma lenha, queimava na fogueira.
— Entenda — disse Mortmain. — São um exército feito para destruir Caçadores de Sombras.
Armaros era o único autômato que Tessa já tinha visto sorrir; ela não sabia que seus rostos tinham sido construídos para realizar tal propósito. O demônio disse:
— Destruíram muitos dos meus. Será um prazer matar todos eles.
Tessa engoliu em seco, mas tentou não deixar o Magistrado perceber. O olhar dele se desviava de Tessa para o demônio autômato, e foi difícil dizer para qual ele parecia mais feliz em olhar. Ela queria gritar, se jogar nele e arranhá-lo no rosto. Mas a parede invisível se colocava entre os dois, brilhando singelamente, e ela sabia que não podia rompê-la.
Oh, você será mais do que sua noiva, senhorita Gray, a Sra. Black dissera. Será a ruína dos Nephilim. É por isso que você foi criada.
— Os Caçadores de Sombras não serão tão facilmente destruídos — disse ela. — Já os vi destruindo seus autômatos. Talvez estes não possam ser derrotados pelas armas Marcadas, mas qualquer lâmina pode destruir metal e cortar cabos.
Mortmain deu de ombros.
— Caçadores de Sombras não estão acostumados a combater criaturas contra as quais suas armas Marcadas são inúteis. Isso vai desacelerá-los. E tenho incontáveis autômatos. Será como tentar conter a maré. — Ele inclinou a cabeça para o lado. — Vê, agora, a genialidade do que inventei? Mas devo agradecer a você, Srta. Gray, pela última peça do quebra-cabeça. Achei que você talvez pudesse... admirar... o que criamos juntos.
Admirar? Tessa procurou deboche nos olhos dele, mas havia uma espécie de indagação sincera ali, curiosidade misturada à frieza. Ela pensou em quanto tempo já teria passado desde que ele ouvira o elogio de outro ser humano, e respirou fundo.
— É óbvio que você é um grande inventor — ela falou.
Mortmain sorriu, satisfeito.
Tessa tinha consciência do olhar do demônio mecânico nela, da tensão e prontidão, porém tinha mais consciência de Mortmain. Seu coração batia forte. Ela parecia, como no sonho, diante de um precipício. Falar com ele assim era arriscado, e ela cairia ou voaria. Mas precisava arriscar.
— Vejo por que me trouxe aqui. E não é só por causa dos segredos de seu pai.
Havia raiva nos olhos dele, mas também alguma confusão. Ela não estava se comportando como ele esperava.
— O que quer dizer?
— Você é solitário — respondeu. — Cercou-se de criaturas que não são reais, que não vivem. Vemos nossas próprias almas nos olhos de outros. Há quanto tempo não vê que tem alma?
Os olhos de Mortmain cerraram.
— Eu tinha alma. Foi queimada pelo ofício que atribuí à minha existência: a busca pela justiça e pela retribuição.
— Não busque vingança e chame de justiça.
O demônio riu baixo, apesar de haver desprezo na risada, como se estivesse assistindo ao ataque de um gatinho.
— Permitirá que ela fale assim com você, Mestre? — perguntou. — Posso cortar a língua dela para você, silenciá-la para sempre.
— Não adiantaria nada mutilá-la. Ela possui poderes que você desconhece — respondeu Mortmain, com os olhos ainda em Tessa — existe um velho ditado na China, talvez seu amado noivo tenha lhe contado, que diz “um homem não pode viver sob o mesmo Céu que o assassino de seu pai”. Preciso dizimar os Caçadores de Sombras do abrigo do Céu; não viverão mais na Terra. Não tente apelar para minha nobreza, Tessa, pois não tenho nenhuma.
Tessa não conseguiu se conter – pensou em Um conto de duas cidades , nos apelos de Lucie Manette à nobreza de Sydney Carton. Sempre pensou em Will como Sydney, consumido por pecado e desespero contra a própria sabedoria, mesmo contra o próprio desejo. Mas Will era um homem bom, muito melhor do que Carton já fora. E Mortmain mal era um homem. Não era à nobreza que apelava, mas à vaidade: todos os homens se achavam bons no fim, certamente. Ninguém se considerava vilão. Ela respirou fundo.
— Duvido que seja isso. Com certeza você poderia voltar a ter valor e a ser bom. Fez o que planejou. Trouxe vida e inteligência a estas... estas suas Peças Infernais. Criou aquilo que pode destruir os Caçadores de Sombras. Por toda a vida, buscou justiça por acreditar que os Caçadores de Sombras eram corruptos e vis. Agora, caso se contenha, conquistará a maior das vitórias. Mostrará que é melhor do que eles.
Ela examinou o rosto de Mortmain. Será que havia hesitação ali – será que os lábios tremiam levemente, e a tensão da dúvida se fazia presente em seus ombros?
A boca dele se curvou em um sorriso.
— Então acha que posso ser um homem melhor? E se eu fizesse o que está dizendo, se me contivesse, acha que ficaria comigo por admiração, que não voltaria aos Caçadores de Sombras?
— Ora, sim, Sr. Mortmain. Juro — e engoliu a amargura na garganta. Se precisasse ficar com Mortmain para salvar Will e Jem, Charlotte, Henry e Sophie, ela o faria — acredito que consiga encontrar o melhor de si; acredito que todos nós consigamos.
Os lábios finos do Magistrado se curvaram para cima.
— Já é tarde, Srta. Gray — disse ele. — Não quis acordá-la antes. Venha comigo agora, para fora da montanha. Venha ver o trabalho deste dia, pois tenho algo para lhe mostrar.
Um dedo gélido tocou na espinha. Ela se endireitou.
— E o que é?
O sorriso de Mortmain se espalhou.
— O que estive esperando.

***

Para: Cônsul Josiah Wayland
De: Inquisidor Victor Whitelaw

Josiah: perdoe minha informalidade, pois escrevo com pressa. Estou certo de que esta não será a única carta que receberá sobre este assunto; aliás, provavelmente sequer é a primeira. Eu mesmo já recebi muitas. Todas tratam da mesma questão que arde em minha mente: a informação de Charlotte Branwell procede? Nesse caso, me parece que há uma boa chance de o Magistrado se encontrar em Gales, de fato. Sei de suas dúvidas quanto à veracidade de William Herondale, mas nós dois conhecemos seu pai. Uma alma precipitada e passional demais, mas homem mais honesto não há. Não penso que o Herondale mais jovem seja mentiroso.
Independentemente disso, em consequência da mensagem de Charlotte, a Clave está um caos. Insisto em uma reunião do Conselho imediatamente. Se não o fizermos, a confiança dos Caçadores de Sombras em seu Cônsul e seu Inquisidor será irreversivelmente comprometida. Deixo o anúncio da reunião em suas mãos, mas isto não é um pedido. Convoque o Conselho ou renunciarei ao meu cargo e explicarei meus motivos.

Victor Whitelaw

***

Will acordou com gritos.
Anos de treinamento se puseram em prática instantaneamente: ele estava agachado no chão antes mesmo de acordar adequadamente. Olhando em volta, viu que o quartinho da pousada estava vazio, exceto por ele e pelos móveis – a cama estreita e a mesa lisa, quase invisíveis à sombra.
Os gritos voltaram, mais altos. Irradiavam de fora da janela. Will se levantou, atravessou o quarto silenciosamente e puxou uma das cortinas a fim de olhar para fora.
Mal se lembrava de ter entrado na cidade, conduzindo Balios atrás de si, que caminhava lentamente, de tão exausto. Uma pequena cidade galesa, como outras cidades do país, nada de extraordinário. Encontrou a pousada facilmente e entregou Balios aos cuidados do cavalariço, solicitando uma escovação e alimentação que consistisse de aveia quente, para reavivá-lo. O fato de que falava galês pareceu relaxar o funcionário da pousada, e rapidamente este lhe mostrou um quarto, onde sucumbiu quase de imediato, vestido, sobre a cama onde dormiu sem sonhar.
A lua brilhava no alto, e sua posição indicava que não era tarde da noite. Uma névoa cinza pairava sobre a cidade. Por um instante, Will achou que fosse uma bruma. Em seguida, ao inalar, percebeu que era fumaça. Pontos vermelhos saltavam entre as casas na cidade. Ele cerrou os olhos. Figuras corriam de um lado para o outro entre as sombras. Mais gritos – um brilho que só podia vir de lâminas...
Ele já estava do lado de fora com as botas quase amarradas em um instante, lâmina serafim na mão. Desceu os degraus e entrou na sala principal da pousada. Estava escuro e frio – não havia fogo, e várias janelas tinham sido quebradas, permitindo a entrada do ar frio da noite. O vidro sujava o chão, como pedaços de gelo. A porta estava aberta, e, quando Will entrou, viu que as dobradiças superiores tinham sido quase arrancadas, como se alguém tivesse tentado retirar a porta...
Ele saiu pela porta e dobrou a esquina da pousada, onde ficavam os estábulos. Ali o cheiro de fumaça era mais pesado, e ele avançou – quase tropeçando em uma figura abaixada no chão. Caiu de joelhos. Era o cavalariço, com a garganta cortada, o chão debaixo em uma mistura de sangue e terra. Os olhos estavam abertos, fixos, e a pele, já fria. Will engoliu bile e se ajeitou.
Foi mecanicamente para os estábulos, a mente explorando as possibilidades. Um ataque demoníaco? Ou será que tinha ido parar no meio de algo não sobrenatural, alguma briga entre membros da cidade ou sabe Deus o quê?
Ninguém parecia procurar especificamente por ele, isso era claro.
Ouviu os relinchos ansiosos de Balios ao entrar no estábulo. Parecia tudo normal, do teto de gesso ao chão de pedra com calhas. Não havia outros cavalos abrigados por ali, o que foi bom, pois assim que ele abriu a porta, Balios avançou, quase derrubando Will. O menino mal conseguiu desviar enquanto o cavalo passava por ele e atravessava a porta.
— Balios! — Will praguejou e correu atrás do animal, apressando-se pela lateral da pousada e para a estrada principal.
Parou no mesmo instante. A rua estava um caos. Corpos caídos se acumulavam, descartados junto ao meio-fio como se fossem lixo. Casas com portas escancaradas, janelas destruídas. Pessoas correndo de um lado para o outro nas sombras, gritando e chamando nomes. Várias casas queimavam.
Enquanto Will observava, horrorizado, viu uma família correr pela porta de uma casa em chamas, o pai, com roupa de dormir, tossia e engasgava, e uma mulher atrás dele segurava a mão de uma menininha.
Mal cambalearam para a rua quando formas surgiram das sombras. A luz do luar refletia no metal.
Autômatos.
Moviam-se com fluidez, sem falhas ou dificuldades. Estavam vestidos –uma seleção de uniformes militares; Will reconheceu alguns, outros não. Mas as faces eram puramente metálicas, assim como as mãos, que empunhavam espadas longas. Havia três deles; um, com uma túnica militar vermelha rasgada, seguia na frente, rindo – rindo? – enquanto o pai de família tentava empurrar a mulher e a filha para trás de si, tropeçando nas pedras ensanguentadas da rua.
Tudo acabou em poucos instantes, rápido demais para que Will conseguisse se mover. As lâminas brilharam, e mais três corpos se juntaram à massa nas ruas.
— É isso — disse o autômato, com a túnica rasgada. — Queimar as casas e expulsá-los como ratos. Matá-los quando correrem...
Levantou a cabeça e pareceu ver Will. Mesmo através do espaço que os separava, o menino sentiu a força daquele olhar.
Will ergueu a lâmina serafim.
— Nakir.
O brilho da lâmina se intensificou e iluminou a rua, um raio de luz branca entre o vermelho das chamas. Em meio ao sangue e ao fogo, Will viu o autômato de túnica vermelha marchar em sua direção. Brandia uma espada na mão esquerda. A mão era metálica, tinha articulações; curvava-se em torno do cabo da espada como uma mão humana.
— Nephilim — disse a criatura, parando a poucos centímetros de Will. — Não esperávamos sua espécie aqui.
— Evidentemente — disse Will.
Ele deu um passo à frente e enfiou a lâmina serafim no peito do autômato.
Ouviu um chiado fraco, como bacon fritando em uma panela. O autômato olhou para baixo, entretido, e Nakir se reduziu a cinzas, deixando a mão de Will em volta de um cabo destruído.
O autômato riu e levantou o olhar para Will. Seus olhos ardiam com vida e inteligência, e o menino soube, com uma pontada no coração, que estava olhando para algo que jamais havia visto – não apenas uma criatura que conseguia transformar uma lâmina serafim em cinzas, mas um tipo de máquina com vontade, disposição e estratégia suficientes para incendiar uma cidade e matar seus habitantes enquanto fugiam.
— Agora você vê — disse o demônio, pois era isso que estava diante dele — Nephilim, por todos esses anos vocês nos expulsaram deste mundo com suas lâminas Marcadas. Agora temos corpos nos quais suas armas não funcionam, e este mundo será nosso.
Will respirou fundo enquanto o demônio erguia a espada. Deu um passo para trás – a lâmina subiu e desceu – e desviou no mesmo instante em que algo passou correndo a seu lado, algo imenso e negro que levantou, deu um coice e derrubou o autômato de lado.
Balios.
Will esticou o braço e agarrou cegamente a crina do cavalo. O demônio se ergueu da lama e saltou para ele, com a lâmina brilhando, exatamente quando Balios correu, com Will montado em suas costas. Cavalgaram pela rua de pedras, com Will agachado sobre o cavalo, o vento sacudindo seu cabelo e secando o rosto molhado – ele não sabia se de sangue ou lágrimas.

***

Tessa se sentou no chão do quarto, na fortaleza de Mortmain, olhando entorpecida para o fogo.
As chamas brincavam sobre suas mãos e sobre o vestido azul. Ambos manchados de sangue. Não sabia como tinha acontecido; a pele no pulso estava cortada, e Tessa tinha uma lembrança de um autômato levando-a para lá e rasgando sua pele com os dedos afiados de metal enquanto tentava se soltar.
Não conseguia livrar a mente das imagens que a dominavam – lembranças da destruição da vila no vale. Foi levada até lá com vendas nos olhos, carregada por autômatos, antes de ser jogada de qualquer jeito em um afloramento de pedra cinza com vista para a cidade.
— Observe — dissera Mortmain, sem olhar para ela, apenas se gabando — observe, Srta. Gray, e depois fale comigo sobre redenção.
Tessa ficou aprisionada, um autômato segurando-a por trás, com uma mão tapando-lhe a boca, e Mortmain murmurou suavemente as coisas que faria se ela ousasse desviar os olhos da cidade. Ela assistiu desamparada enquanto os autômatos marcharam para a cidade, cortando homens e mulheres inocentes pelas ruas. A lua se ergueu, tingida de vermelho, enquanto o exército mecânico incendiava metodicamente as casas, aniquilando as famílias que fugiam, confusas e apavoradas.
E Mortmain riu.
— Agora vê — dissera ele. — Essas criaturas, essas criações, são capazes de pensar, raciocinar e montar estratégias. Como os humanos. Contudo, são indestrutíveis. Olhe ali aquele tolo com a espingarda.
Tessa não queria olhar, mas não teve escolha. E assistiu, com olhos secos e severos, enquanto uma figura distante erguia uma espingarda para se defender. Os tiros atrasaram alguns dos autômatos, mas não os detiveram. Eles continuaram avançando para cima dele, arrancaram a espingarda e o empurraram para a rua.
E então o destroçaram.
— Demônios — murmurara Mortmain. — São selvagens e adoram destruir.
— Por favor. — Tessa se engasgara. — Por favor, chega, chega. Farei o que quiser, mas, por favor, poupe a vila.
Mortmain riu secamente.
— Criaturas mecânicas não têm coração, Srta. Gray — dissera ele. — Não têm compaixão, não mais do que o fogo ou a água. Seria o mesmo que implorar que uma enchente ou um incêndio florestal abandonasse a destruição.
— Não estou implorando a eles — respondera. Com o canto do olho, achou que tivesse visto um cavalo negro correndo pelas ruas da cidade, com um cavaleiro montado. Alguém escapando da carnificina, rezou. — Estou implorando a você.
Ele voltou os olhos frios para ela, e estavam tão vazios quanto o céu.
— No meu coração também não há compaixão. Você apelou em vão para minha nobreza mais cedo. Eu a trouxe aqui para mostrar a inutilidade do gesto. Não tenho nobreza para a qual apelar; ela foi destruída há muitos anos.
— Mas eu fiz o que você me pediu — dissera desesperadamente. — Não há necessidade disso, não por mim...
— Não é por você — respondera Mortmain, desviando os olhos dela. — Os autômatos precisavam ser testados antes de serem enviados para a batalha. É simples ciência. Agora têm inteligência. Estratégia. Nada pode detê-los.
— Então vão se voltar contra você.
— Não vão. A vida deles é ligada à minha. Se eu morrer, eles serão destruídos. Para viver, eles precisam me proteger. — O olhar de Mortmain estivera distante e frio. — Basta. Eu a trouxe aqui para mostrar que sou o que sou, e você vai aceitar. Seu anjo mecânico protege sua vida, mas as vidas de outros inocentes estão em minhas mãos, em suas mãos. Não me teste ou haverá uma segunda vila. Não quero mais ouvir protestos inúteis.
Seu anjo mecânico protege sua vida. Agora estava com a mão nele, sentindo a batida familiar sob os dedos. Fechou os olhos, mas terríveis imagens passavam por trás de suas pálpebras. Ela viu na mente os Nephilim encarando os autômatos como os mundanos da cidade o fizeram, e viu Jem ser destruído pelos monstros mecânicos, Will, perfurado por lâminas de metal, Henry e Charlotte ardendo...
A mão apertou violentamente o anjo e o arrancou do pescoço, derrubando-o no chão de pedra na mesma hora em que uma acha de lenha caiu na fogueira, levantando uma coluna de faíscas vermelhas. Àquela luz, viu a palma da mão esquerda e a cicatriz clara da queimadura que provocou em si mesma no dia em que contou a Will que estava noiva de Jem.
Como naquele dia, pegou o atiçador da lareira. Levantou-o, sentindo o peso na mão. O fogo havia subido mais alto. Ela viu o mundo através de uma neblina dourada ao levantar o atiçador e trazê-lo contra o anjo mecânico.
Embora o atiçador fosse de ferro, explodiu em pó metálico, com uma nuvem de filamentos brilhantes girando para o chão, e sujou a superfície do anjo mecânico, que permaneceu intocado e intacto no piso diante de seus joelhos.
O anjo começou a se mexer e mudar. As asas tremeram, e as pálpebras fechadas se abriram em pedaços de quartzo esbranquiçado. Deles saíram finos raios de luz clara. Como em quadros da estrela de Belém, a luz se elevou e elevou, irradiando fios brilhantes. Lentamente, começou a se condensar uma forma – a forma de um anjo.
Era um borrão brilhante de luz, tão forte que era difícil olhá-la diretamente. Tessa pôde ver, através da luz, o contorno claro de algo que parecia um homem. Viu olhos que não tinham íris nem pupila – pedacinhos de cristal que brilhavam sob a luz do fogo. As asas do anjo eram largas, esticando-se a partir dos ombros, cada pena com pontas brilhantes de metal. As mãos estavam curvadas sobre o cabo de uma espada graciosa.
Os olhos vazios e brilhantes se fixaram nela.
Por que tenta me destruir? A voz era doce e ecoava em sua mente, como música. Eu a protejo.
De repente, ela pensou em Jem, apoiado nos travesseiros sobre a cama, com o rosto pálido e brilhante. A vida é mais do que viver.
— Não é você que quero destruir, mas a mim.
Mas por que faria isso? A vida é um dom.
— Quero agir corretamente — respondeu. — Mantendo-me viva, você permite que um grande mal exista.
Mal. A voz musical soou pensativa. Faz tanto tempo que estou na minha prisão mecânica que me esqueci sobre o bem e o mal.
— Prisão mecânica? — sussurrou Tessa. — Mas como um anjo pode ser aprisionado?
Foi John Thaddeus Shade que me prendeu. Capturou minha alma em um feitiço e a prendeu neste corpo mecânico.
— Como a Pyxis — observou Tessa. — Só que prendendo um anjo em vez de um demônio.
Sou um anjo do divino, disse ele, pairando diante dela. Sou o irmão de Sijil, Kurabi e dos Zurah, dos Fravashis e Darkinis.
— E... esta é sua forma verdadeira? É assim?
Vê apenas uma fração do que sou. Em minha verdadeira forma, sou uma glória mortal. Era minha a liberdade do Céu, antes de ser aprisionado e ligado a você.
— Sinto muito — sussurrou ela.
A culpa não é sua. Você não me prendeu. Nossos espíritos são ligados, é verdade, mas mesmo enquanto eu a protegi no ventre, sabia que era inocente.
— Meu anjo da guarda.
Poucos podem reclamar um único anjo que os guarde. Mas você pode.
— Não quero reclamá-lo — respondeu Tessa. — Quero morrer nos meus próprios termos e não ser forçada a viver nos de Mortmain.
Não posso deixá-la morrer. A voz do anjo estava carregada de pesar. Tessa se lembrou do violino de Jem, tocando a música do seu coração. É meu encargo.
Tessa levantou a cabeça. A luz do fogo atravessava o anjo como raios de sol através de um cristal, projetando cores nas paredes da caverna. Não era maldade; era bondade, contorcida e curvada à vontade de Mortmain, mas divina em sua natureza.
— Quando era um anjo — perguntou ela — qual era seu nome?
Meu nome, disse o anjo, era Ithuriel.
— Ithuriel — sussurrou Tessa, e estendeu a mão para o anjo, como se pudesse alcançá-lo, confortá-lo de alguma forma. Mas seus dedos encontraram apenas ar. O anjo brilhou e desbotou, deixando para trás apenas um fulgor, uma explosão de luz no interior das pálpebras de Tessa.
Uma onda de frio atingiu a menina, e ela se levantou e abriu os olhos.
Estava meio deitada no chão de pedra fria em frente a um fogo quase apagado.
O quarto estava escuro, pouco iluminado pelas brasas avermelhadas na lareira. O atiçador estava no mesmo lugar de antes. A mão de Tessa voou para a garganta – e encontrou o anjo mecânico ali.
Um sonho. O coração da menina ficou apertado. Foi apenas um sonho. Não havia anjo para banhá-la em luz. Havia apenas este quarto frio, a escuridão opressora e o anjo mecânico, que marcava firmemente os minutos para o fim de tudo no mundo.

***

Will estava no topo de Cadair Idris, segurando as rédeas do cavalo.
Enquanto cavalgava em direção a Dolgellau, viu a imensa parede de Cadair Idris se erguendo sobre o estuário Mawddach, e perdeu o fôlego com um engasgo – ele estava ali. Já tinha subido a montanha antes, quando criança, com o pai, e aquelas lembranças permaneceram com ele ao deixar a estrada Dinas Mawddwy e cavalgar para a montanha nas costas de Balios, que ainda parecia fugir das chamas da cidade que deixaram para trás. Continuaram por um campo – o mar prateado podia ser visto de um dos lados, e o pico de Snowdon, do outro – até o vale Nant Cadair. A vila de Dolgellau abaixo, brilhando com luzes ocasionais, constituía uma bela vista, mas Will não a estava admirando. O símbolo de Visão Noturna que aplicou em si lhe permitiu acompanhar as pegadas das criaturas mecânicas. Havia o suficiente delas para que o chão estivesse partido onde atravessaram a montanha, e ele seguiu com o coração acelerado pela trilha de ruína em direção ao cume.
Os rastros passavam por um grupo de enormes pedregulhos que Will lembrava se chamarem Morena. Formavam uma parede parcial que protegia Cwm Cau, um pequeno vale sobre a montanha em cujo coração estava Llyn Cau, um lago glacial. Os rastros do exército mecânico levavam à beira do lago... E desapareciam.
Will ficou parado, olhando para as águas frias e claras. Sob a luz do dia, lembrava-se, a vista era magnífica: Llyn Cau era puro azul, cercado por grama verde, e o sol tocava as bordas afiadas de Mynydd Pencoed, os penhascos que contornavam o lago. Sentiu-se a milhares de quilômetros de Londres.
O reflexo da lua na água brilhou para ele. Will suspirou. A água batia gentilmente na beira do lago, mas não conseguia apagar os rastros dos autômatos. Estava claro de onde tinham vindo. Will esticou o braço e afagou o pescoço de Balios.
— Espere aqui — disse. — E, se eu não retornar, volte para o Instituto. Ficarão felizes em vê-lo, garoto.
O cavalo relinchou suavemente e o mordeu na manga, mas Will apenas respirou e entrou em Llyn Cau. O líquido frio subiu por suas botas e atingiu-lhe as calças, ensopando e congelando a pele. Ele perdeu o fôlego com o choque.
— Molhado outra vez — resmungou, e avançou pelas águas geladas do lago.
Elas pareceram sugá-lo, como areia movediça; mal teve tempo de respirar fundo antes da água fria arrastá-lo para a escuridão.

***

Para: Charlotte Branwell
De: Cônsul Wayland

Sra. Branwell,
Você está destituída do cargo de diretora do Instituto. Poderia falar sobre minha decepção com você ou da ruptura da fé que existe entre nós dois agora. Mas palavras, em face de uma traição da magnitude da que me ofereceu, são inúteis. Quando eu chegar a Londres amanhã, espero que você e seu marido já tenham saído e retirado seus pertences. O não cumprimento desta ordem resultará em penas severas pelos preceitos da Lei.

Josiah Wayland, Cônsul da Clave.

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