Capítulo 19 - Jazer e Arder

Agora eu o queimarei de volta, eu o queimarei inteiro,
Apesar de ser condenada por isso, nós dois iremos jazer
E arder.
– Charlotte Mew, In Nynhead Cemetery

Só ficou escuro por alguns momentos. A água gelada sugou Will, que começou a cair, até que, em seguida, se curvou sobre si mesmo ao atingir o chão, perdendo o ar.
Engasgou-se e rolou de barriga, ajoelhando-se, com os cabelos e roupas pingando. Alcançou a pedra de luz enfeitiçada, em seguida, abaixou a mão; não queria iluminar nada que trouxesse atenção para ele. O símbolo de Visão Noturna teria de bastar.
Foi o suficiente para mostrar que ele estava em uma caverna pedregosa. Se olhasse para o alto, conseguia ver as águas do lago em redemoinho, suspensas como que por vidro, e um pedaço borrado de luar. Túneis esticavam-se da caverna, sem marcas que mostrassem para onde poderiam ir. Ele se levantou e escolheu aleatoriamente o túnel mais da esquerda, avançando cautelosamente para a escuridão sombria.
Os túneis eram amplos, e o solo era liso e não trazia marcas de possíveis passagens das criaturas mecânicas. As laterais eram de pedra vulcânica áspera. Lembrou-se de ter subido Cafair Idris com o pai, anos atrás. Havia muitas lendas sobre a montanha: que era o trono de um gigante, que ali se sentava e olhava para as estrelas; que o Rei Artur e seus cavaleiros dormiam sob a colina, esperando o momento em que a Bretanha despertasse e precisasse deles novamente; que qualquer um que passasse a noite nos contornos da montanha acordaria poeta ou louco.
Se ao menos soubesse, Will pensou ao dobrar a curva de um túnel e emergir em uma caverna maior, o quão estranha era a verdade dos fatos.
A caverna era larga e se abria para um espaço maior no lado oposto, onde uma luz fraca brilhava. Aqui e ali, Will captou um brilho prateado que pensou ser água correndo em riachos pelas paredes negras, mas, olhando de perto, percebeu que se tratava das veias de um quartzo cristalino.
Will foi em direção à luz fraca. Percebeu que o coração batia acelerado no peito, e tentou respirar uniformemente para acalmá-lo. Sabia o que estava acelerando a pulsação. Tessa. Se Mortmain estivesse com ela, então ela estaria aqui – perto. Em algum lugar, entre esses túneis, ele poderia encontrá-la.
Ouviu a voz de Jem na própria mente, como se seu parabatai estivesse ali ao lado, aconselhando-o. Ele sempre dizia que Will corria para o fim de uma missão em vez de proceder comedidamente, e que é preciso olhar para o próximo passo de uma trilha e não para a montanha ao longe, do contrário, a pessoa jamais chegaria ao objetivo.
Will fechou os olhos por um instante. Sabia que Jem tinha razão, mas era difícil lembrar quando o objetivo em questão era resgatar a garota que amava.
Abriu os olhos e foi em direção à luz no fim da caverna. O solo abaixo era liso, sem pedras e raiado como mármore. A luz à frente brilhou, e Will parou subitamente; apenas seus anos de treinamento como Caçador de Sombras impediram que caísse para a própria morte.
O solo pedregoso desembocava em uma queda acentuada. Will estava em um afloramento. Olhando para um anfiteatro redondo, cheio de autômatos.
Eles estavam em silêncio, parados, como brinquedos mecânicos sem corda. Todos vestidos, como os da cidade, com uniformes militares, alinhados um a um, como soldadinhos de chumbo em tamanho real.
No centro da sala, havia uma plataforma de pedra elevada, e, sobre a mesa, encontrava-se outro autômato deitado, como um cadáver na mesa de um legista. A cabeça era puro metal, mas havia pele humana pálida esticada sobre o resto do corpo – e nela havia símbolos marcados.
Enquanto observava, Will os reconheceu, um por um: Memória, Agilidade, Velocidade, Visão Noturna. Jamais funcionariam, é claro, não em uma engenhoca metálica com pele humana. Poderia enganar Caçadores de Sombras ao longe, mas...
E se ele tiver usado pele de Caçador de Sombras?, sussurrou uma voz em sua mente. O que poderia criar neste caso? O quão louco ele é, e quando vai parar? O pensamento e a visão dos símbolos do Paraíso marcados em uma criatura tão monstruosa reviraram o estômago de Will; afastou-se da borda, apoiando-se contra uma parede fria de pedra, as mãos pegajosas de suor.
Ele avistou a vila mais uma vez em sua mente, com os cadáveres nas ruas, e ouviu o sussurro mecânico do demônio ao falar com ele: por todos esses anos vocês nos expulsaram deste mundo com suas lâminas Marcadas. Agora temos corpos nos quais suas armas não funcionam, e este mundo será nosso.
A raiva percorreu as veias de Will como fogo. Ele se afastou da parede e entrou por um túnel estreito, longe da sala da caverna. Enquanto se locomovia, teve a impressão de haver escutado um barulho atrás de si – um zumbido, como se o mecanismo de um grande relógio fosse ativado – mas quando se virou, não viu nada, apenas as paredes lisas da caverna e as sombras imóveis.
O túnel que seguia estreitava na medida em que avançava, até que finalmente Will estava se espremendo para passar por uma borda de pedra. Se apertasse mais, ele sabia, teria de se virar e voltar para a caverna; o pensamento o fez avançar com rigor renovado, e ele deslizou para a frente, quase caindo, quando a passagem se abriu repentinamente em um corredor mais amplo.
Era quase como um corredor no Instituto, só que feito de pedra lisa, com tochas dispostas em suportes metálicos em intervalos. Ao lado de cada tocha havia uma porta arqueada, também de pedra. As duas primeiras abriam-se para quartos escuros e vazios.
Atrás da terceira, estava Tessa.
Will não a viu imediatamente quando entrou. A porta de pedra se fechou parcialmente atrás dele, mas o menino descobriu que não estava no escuro.
Havia uma faísca de luz – as chamas diminutas de uma fogueira em uma lareira de pedra no fundo. Para seu espanto, era mobiliado como um quarto em uma pensão, com uma cama e um lavatório, tapetes no chão e até cortinas nas paredes, apesar de estarem sobre pedras, e não janelas.
Em frente ao fogo, havia uma sombra esguia, encolhida no chão. A mão de Will foi automaticamente para a adaga na cintura – então a sombra virou, com os cabelos caindo sobre o ombro, e ele viu seu rosto.
Tessa.
Tirou a mão da adaga, e o coração saltou no peito com uma força impossível e dolorosa. Viu a expressão dela mudar: curiosidade, espanto, incredulidade. Ela se levantou, as saias caindo ao redor enquanto se ajeitava, e ele a viu estender a mão.
— Will? — falou.
Foi como uma chave girando na fechadura, libertando-o; ele avançou.
Jamais houve distância tão grande separando-o de Tessa quanto nesse momento. O quarto era grande; agora a distância entre Londres e Cadair Idris não parecia nada em comparação à extensão do quarto. Ele sentiu um tremor, como uma espécie de resistência, e atravessou. Viu Tessa esticar a mão, a boca formar palavras; então, ela estava em seus braços, e os dois quase perderam a respiração ao se encontrarem.
Ela estava nas pontas dos pés, abraçando-o, sussurrando seu nome:
— Will, Will, Will.
Ele enterrou o rosto no pescoço dela, onde os cabelos espessos de Tessa ondulavam; ela tinha cheiro de fumaça e água de violeta. Ele a puxou ainda mais forte enquanto ela agarrava o colarinho do Caçador de Sombras, e permaneceram grudados. Por apenas aquele instante, a dor que o comprimia como um punho de ferro desde a morte de Jem pareceu relaxar, e ele pôde respirar.
Ele pensou no inferno pelo qual passou desde que deixou Londres – nos dias de cavalgadas incessantes, nas noites em claro. Sangue e perda, dor e luta. Tudo para trazê-lo aqui. Até Tessa.
— Will — repetiu ela, e o menino olhou para o rosto de Tessa, sujo de lágrimas. Tinha um hematoma na bochecha. Alguém bateu nela ali, e o coração de Will se encheu de raiva. Descobriria o responsável e acabaria com ele. Se fosse Mortmain, ele o mataria apenas após incendiar o laboratório monstruoso, para que o louco testemunhasse a ruína de tudo que criou.
— Will — disse Tessa novamente, interrompendo seus pensamentos. Ela soou quase sem ar. — Will, seu idiota.
As noções românticas de Will frearam como uma carroça na Fleet Street.
— Eu... o quê?
— Oh, Will — disse ela. Os lábios tremiam; ela parecia não conseguir se decidir entre rir ou chorar. — Você se lembra de quando me disse que o jovem cavalheiro que vinha para o resgate nunca estava errado, mesmo que dissesse que o céu era roxo e feito de ouriços?
— Na primeira vez em que a vi. Sim.
— Oh, meu Will — ela se afastou gentilmente do abraço, ajeitando um cacho de cabelo atrás da orelha. Os olhos dela permaneciam fixos nos dele — não consigo imaginar como me encontrou, o quanto deve ter sido difícil. É incrível. Mas... você realmente acha que Mortmain me deixaria sozinha em um quarto com a porta aberta? — Ela virou as costas, se afastou alguns metros dele e parou subitamente. — Aqui — disse, e levantou a mão, abrindo os dedos. — O ar é sólido como uma parede aqui. Esta é uma prisão, Will, e agora você está nela, junto comigo.
Ele foi para o lado de Tessa, já sabendo o que encontraria. Lembrou-se da resistência que sentiu ao atravessar o quarto. O ar ondulou ligeiramente quando ele o tocou com o dedo, mas estava mais duro que um lago congelado.
— Conheço esta configuração — disse ele — a Clave de vez em quando usa uma versão dela — ele cerrou a mão em um punho e socou o ar sólido, forte o suficiente para machucar os ossos. — Uffern gwaedlyd — praguejou em galês. — Atravessei o país inteiro para chegar até você e não consigo nem fazer isso direito. Assim que a vi só consegui pensar em correr para você. Pelo Anjo, Tessa...
— Will! — Ela o pegou pelo braço. — Não ouse se desculpar. Sabe o que sua presença aqui significa para mim? É como um milagre ou uma intervenção direta dos Céus, pois tenho rezado para ver as faces daqueles com os quais me importo antes de morrer — falou simplesmente, sem rodeios. Era uma das características que ele amava em Tessa, que ela não se escondia nem dissimulava, mas falava o que pensava sem floreios. — Quando eu estava na Casa Sombria, não havia ninguém que se importasse o suficiente para me procurar. Quando você me encontrou, foi um acidente. Mas agora...
— Agora nos condenei ambos ao mesmo destino — falou, com a voz baixa.
Tirou uma adaga do cinto e a enfiou na parede invisível diante de si. A lâmina prateada Marcada da adaga estilhaçou, e Will descartou o cabo, praguejando novamente, baixinho.
Tessa pôs uma mão de leve no ombro dele.
— Não estamos condenados — disse ela. — Você certamente não veio sozinho, Will. Henry ou Jem nos encontrarão. Podemos ser libertados pelo outro lado da parede. Já vi como Mortmain faz...
Will não sabia o que aconteceu naquele momento. Sua expressão deve ter mudado ao ouvir o nome de Jem, pois viu que Tessa empalideceu. A mão dela apertou o braço dele.
— Tessa — falou — estou sozinho.
A palavra “sozinho” saiu quebrada, como se ele pudesse sentir o gosto amargo da perda na língua e estivesse lutando para falar apesar disso.
— Jem?
Foi mais que uma pergunta. Will não falou nada; a voz parecia tê-lo abandonado. Ele tinha pensado em tirá-la daqui antes de contar sobre Jem, imaginou-se revelando em algum lugar seguro, em algum lugar onde houvesse tempo e espaço para confortá-la. Agora sabia que tinha sido um tolo em achar isso, em imaginar que sua perda não estaria estampada em seu rosto.
O resto da cor deixou a face de Tessa; foi como ver uma chama piscar e, em seguida, apagar.
— Não — sussurrou ela.
— Tessa...
Ela deu um passo para longe dele, balançando a cabeça.
— Não, não é possível. Eu saberia... não pode ser.
Ele esticou a mão para ela.
— Tess...
Ela começara a tremer violentamente.
— Não — repetiu. — Não, não diga. Se não disser, não será verdade. Não pode ser verdade. Não é justo.
— Sinto muito — sussurrou Will.
O rosto de Tessa se vincou e estilhaçou como uma barragem com muita pressão. Ela se ajoelhou, curvando-se sobre si, e abraçou o próprio corpo. Estava se segurando com força, como se pudesse quebrar. Will sentiu uma onda fresca da agonia opressora que experimentou no jardim do Green Man. O que tinha feito? Tinha vindo salvá-la, mas, em vez de fazê-lo, só trouxe desespero. Era como se realmente fosse amaldiçoado, capaz apenas de trazer sofrimento aos que amava.
— Sinto muito — falou novamente, com todo o coração nas palavras. — Muito. Eu teria morrido por ele, se pudesse.
Com essas palavras, ela levantou os olhos. Ele se preparou para a acusação nos olhos dela, mas não viu nada. Em vez disso, ela esticou a mão para ele, em silêncio. Espantado e surpreso, Will a pegou e permitiu que ela o puxasse para perto de si, até que estivesse ajoelhado diante dela.
O rosto de Tessa estava com marcas de lágrimas, cercado pelos cabelos, contornado em dourado pela luz do fogo.
— Eu teria feito o mesmo — falou. — Ah, Will. A culpa é toda minha. Ele jogou a vida fora por mim. Se tivesse tomado o remédio em intervalos mais longos... se tivesse se permitido descansar e ficar doente, em vez de fingir que estava bem por minha causa...
— Não! — Ele a pegou pelos ombros, virando-a para si. — Não é sua culpa. Ninguém poderia imaginar que fosse...
Ela balançou a cabeça.
— Como pode suportar viver a meu lado? — perguntou ela desesperada. — Tirei seu parabatai de você. E agora nós dois morreremos aqui. Por minha causa.
— Tessa — sussurrou Will, chocado.
Não conseguia lembrar quando fora a última vez em que esteve nesta posição, a última vez em que precisou confortar alguém com o coração partido e, de fato, se permitiu fazê-lo, sem se forçar a dar as costas. Sentiu-se tão desajeitado como quando era criança, derrubando facas até Jem ensiná-lo a usá-las. Ele limpou a garganta.
— Tessa, venha aqui.
E puxou-a para perto de si, até estar sentado no chão, com ela apoiada nele, a cabeça em seu ombro, seus dedos passando pelo cabelo dela. Will sentiu o corpo dela tremendo contra o dele, mas ela não se afastou. Em vez disso, agarrou-se a ele, como se sua presença realmente trouxesse conforto.
E se ele pensou no calor de Tessa em seus braços, ou no hálito da moça em sua pele, foi apenas por um instante, e podia fingir que não aconteceu.

***

A dor de Tessa, como uma tempestade, passou lentamente ao longo de horas. Ela chorou, e Will a segurou e não soltou, exceto uma vez em que se levantou para acender a fogueira. Voltou rapidamente e se sentou ao lado dela, ambos de costas para a parede invisível. Ela tocou o braço dele onde as lágrimas molharam o tecido.
— Desculpe — falou.
Já tinha perdido a conta das vezes em que pediu desculpas a Will nas últimas horas enquanto compartilhavam relatos do que ocorrera desde a separação no Instituto. Ele falou da despedida de Jem e Cecily, da cavalgada pelo campo, do instante em que soube que Jem havia partido. Ela relatou as exigências de Mortmain para que ela se Transformasse em seu pai e lhe desse a última peça do quebra-cabeça que transformaria o exército de autômatos em uma força incontrolável.
— Não tem por que se desculpar, Tess — disse Will agora. Ele estava olhando para o fogo, a única luz no recinto, que tingia o local de dourado e preto. As sombras sob os olhos eram violeta, e o ângulo das maçãs do rosto e da clavícula, bastante acentuado. — Você sofreu, assim como eu. Ver a vila destruída...
— Nós dois estávamos lá ao mesmo tempo — observou ela, pensativa. — Se eu soubesse que você estava próximo...
— Se eu soubesse que você estava próxima, teria conduzido Balios montanha acima, para chegar perto.
— E teria sido assassinado pelas criaturas de Mortmain no processo. Foi melhor não ter sabido. — Ela seguiu o olhar de Will para a lareira. — No fim das contas, você me encontrou, e é isso que importa.
— Claro que encontrei. Prometi a Jem que encontraria — falou. — Algumas promessas não podem ser quebradas.
Will respirou superficialmente. Ela sentiu na lateral do corpo: estava meio curvada contra ele, e as mãos dele tremiam, quase imperceptivelmente, enquanto a segurava. Reservadamente, sabia que não deveria se deixar ser abraçada assim por nenhum menino que não fosse seu noivo ou seu irmão – mas tanto o noivo quanto o irmão estavam mortos, e amanhã Mortmain encontraria os dois e os puniria. Em face disso tudo, Tessa não podia se preocupar com propriedade.
— De que adiantou toda aquela dor? — perguntou ela. — Eu o amava tanto e nem estava presente quando morreu.
A mão de Will a afagou nas costas – leve e rapidamente, como se temesse que ela fosse se afastar.
— Nem eu — declarou. — Eu estava no jardim de uma pousada, na metade do caminho para Gales, quando soube. Senti. Nosso laço sendo rompido. Foi como se um grande par de tesouras tivesse cortado meu coração ao meio.
— Will... — disse Tessa.
A dor do menino era tão palpável que se misturou à dela e criou uma tristeza aguda, um pouco mais leve por ser compartilhada, apesar de ser difícil dizer quem estava confortando quem.
— Você também sempre foi metade do coração dele.
— Fui eu que pedi para que ele fosse meu parabatai — contou Will. — Ele relutou. Queria que eu entendesse que estava me amarrando em um laço de vida a alguém que não viveria muito. Mas eu queria, queria cegamente uma prova de que não estava sozinho, uma maneira de mostrar a ele o que lhe devia. E ele, no fim, acabou deixando ser como eu queria. Era o que sempre fazia.
— Não — disse Tessa. — Jem não era um mártir. Não foi castigo para ele ser seuparabatai. Você era como um irmão; melhor do que um irmão, pois o escolheu. Quando Jem falava de você, era com lealdade e amor, sem qualquer sombra de dúvida.
— Eu o confrontei — prosseguiu Will. — Quando descobri que ele vinha tomando mais yin fen do que deveria. Fiquei tão irritado. Acusei-o de jogar a vida fora. Ele disse “posso escolher ser tudo que posso por ela, arder tanto quanto quiser”.
Tessa engoliu em seco.
— Foi escolha dele, Tessa. Não foi algo que você impôs. Ele nunca foi tão feliz como quando esteve com você. — Will não estava olhando para ela, mas para o fogo. — Não importa o que eu já tenha dito a você, qualquer coisa, fico feliz por ele ter tido aquele tempo com você. E você deveria sentir o mesmo.
— Você não parece feliz.
Will continuava olhando para o fogo. Os cabelos negros estavam úmidos quando entrou no quarto, e já tinham secado, formando cachos soltos nas têmporas e na testa.
— Eu o decepcionei — falou. — Ele me confiou a missão de segui-la, encontrá-la e levá-la para casa em segurança. E agora falhei na última parte. — Ele finalmente virou para ela, os olhos azuis sem enxergar. — Eu não o teria deixado. Teria ficado com ele se pedisse, até a morte. Teria honrado meu juramento. Mas ele me pediu que viesse atrás de você...
— Então, apenas fez o que ele pediu. Não o decepcionou.
— Mas era também o que estava no meu coração — falou Will. — Não posso separar egoísmo de altruísmo agora. Quando sonhei salvá-la, a maneira como você me olhou... — A voz dele baixou abruptamente. — Fui bem castigado por essa arrogância, de qualquer forma.
— Mas eu fui recompensada. — Tessa pegou a mão dele. Os calos de Will eram ásperos contra sua palma. Ela viu o peito dele inchar com a surpresa. — Pois não estou sozinha; eu o tenho comigo. E não devemos perder todas as esperanças. Talvez ainda exista chance para nós. De vencer Mortmain ou escapar dele. Se alguém consegue criar uma maneira, esse alguém é você.
Voltou o olhar para ela. Os cílios de Will encobriram seus olhos enquanto ele dizia:
— Você é incrível, Tessa Gray. Ter tanta fé em mim, apesar de eu não ter feito nada para merecê-la.
— Nada? — A voz dela se elevou. — Nada para merecê-la? Will, você me salvou das Irmãs Sombrias, afastou-me para me salvar, me resgatou incontáveis vezes. É um bom homem. Um dos melhores que já conheci.
Will pareceu tão espantado quanto se ela o tivesse empurrado. Molhou os lábios secos.
— Preferia que não dissesse isso — sussurrou ele.
Ela se inclinou para ele. Seu rosto era feito de sombras, ângulos e planos; ela queria tocá-lo, tocar a curva da boca, o arco dos cílios contra a bochecha. O fogo refletia nos olhos de Will, como alfinetadas de luz.
— Will. Na primeira vez em que o vi, achei parecido com um herói de um livro. Você brincou que era Sir Galahad. Lembra? E, por muito tempo, tentei entendê-lo assim, como se fosse o Sr. Darcy, Lancelot ou o pobre Sydney Carton, e foi um desastre. Levei tanto tempo para entender, mas consegui, e compreendo agora... Você não é um herói literário.
Will soltou uma risada curta e incrédula.
— É verdade — concordou. — Não sou nenhum herói.
— Não — disse Tessa. — É uma pessoa, assim como eu.
Os olhos de Will examinaram o rosto da menina, mistificados; ela apertou um pouco mais a mão dele, entrelaçando os dedos nos dele.
— Não vê, Will? Você é uma pessoa como eu. Você é como eu. Fala as coisas que eu penso, mas que nunca digo em voz alta. Lê os livros que leio. Gosta das poesias que gosto. Me faz rir com suas músicas ridículas e com a maneira como enxerga a verdade de tudo. Tenho a sensação de que pode olhar dentro de mim e ver todos os lugares onde sou estranha ou diferente e adaptar seu coração, pois você é estranho e diferente da mesma forma — com a mão que não segurava a dele, ela o tocou na bochecha, levemente — somos iguais.
Os olhos de Will tremeram e fecharam; ela sentiu os cílios nas pontas dos dedos. Quando ele falou novamente, a voz estava áspera, porém controlada.
— Não diga essas coisas, Tessa. Não diga.
— Por que não?
— Diz que sou um bom homem — falou ele. — Mas não sou um homem tão bom. E estou... estou catastroficamente apaixonado por você.
— Will...
— Eu a amo tanto, tanto, tanto — continuou — e quando fica perto assim de mim, esqueço quem você é. Esqueço que pertence a Jem. Eu teria de ser a pior pessoa do mundo para pensar o que estou pensando agora. Mas estou.
— Eu amava Jem — declarou Tessa. — Ainda amo, e ele me amava, mas não sou de ninguém, Will. Meu coração é meu. Está além do seu controle. Está além do meucontrole.
Os olhos de Will continuavam fechados. O peito dele subia e descia rapidamente, e ela pôde ouvir as batidas fortes do seu coração, aceleradas sob a solidez das costelas. O corpo dele estava quente contra o dela, e vivo, e ela pensou nas mãos frias dos autômatos e nos olhos de Mortmain, ainda mais frios. Pensou no que aconteceria se sobrevivesse e Mortmain alcançasse seus objetivos, se ela ficasse presa a ele pelo resto da vida – um homem que não amava e que, aliás, detestava. Pensou nas mãos frias dele nela e se aquelas seriam as únicas mãos que a tocariam.
— O que acha que vai acontecer amanhã, Will? — sussurrou. — Quando Mortmain nos encontrar? Seja sincero.
A mão dele se moveu cautelosamente, quase contra a vontade, deslizando por seu cabelo e repousando no pescoço. Tessa imaginou se ele podia sentir sua pulsação, respondendo à dele.
— Acho que Mortmain vai me matar. Ou, para ser exato, vai mandar aquelas criaturas me matarem: elas não podem ser contidas. Lâminas Marcadas não servem mais do que armas comuns, e lâminas serafim não fazem nenhum efeito.
— Mas você não tem medo.
— Existem coisas piores do que a morte — falou. — Não ser amado ou não poder amar: isso é pior. E cair lutando, como um Caçador de Sombras deve fazer, não é nenhuma desonra. Uma morte honrosa: sempre quis que fosse assim.
Um tremor percorreu o corpo de Tessa.
— Há duas coisas que quero — falou, e se surpreendeu com a firmeza da própria voz — se acha que Mortmain vai matá-lo amanhã, então desejo receber uma arma. Vou me despir do meu anjo mecânico e lutarei a seu lado; se cairmos, cairemos juntos. Pois também desejo uma morte honrosa, como Boadiceia.
— Tess...
— Prefiro morrer a ser uma ferramenta do Magistrado. Dê-me uma arma, Will.
Sentiu o corpo dele tremer contra o dela.
— Posso fazer isso por você — falou afinal, subjugado. — Qual é a segunda coisa? O que você queria?
Ela engoliu em seco.
— Quero beijá-lo mais uma vez antes de morrer.
Os olhos dele se arregalaram. Azuis como o mar e o céu no sonho de Tessa, quando ele caiu longe dela, azuis como as flores que Sophie colocou em seu cabelo.
— Não...
— Diga nada que não seja sincero — concluiu para ele. — Eu sei. Não estou dizendo. É verdade, Will. E sei que pedir isso ultrapassa todos os limites plausíveis. Sei que devo parecer um pouco louca. — Tessa olhou para baixo, depois para cima outra vez, reunindo coragem. — E se você puder me dizer que pode morrer amanhã sem que nossos lábios voltem a se tocar, e que não lamentará nada, então me diga, e desisto, pois não tenho direito...
As palavras de Tessa foram cortadas, pois ele a pegou e a puxou contra si, tocando a boca na dela. Por uma fração de segundo, foi quase doloroso, afiado de desespero e uma fome quase descontrolada, e ela sentiu gosto de sal e calor na boca, e o engasgo da respiração de Will. E então suavizou, com um controle forçado que ela pôde sentir por todo o próprio corpo, e o roçar de lábios contra lábios, a ação recíproca de línguas e dentes, intercalando dor e prazer em um espaço de instantes.
Na varanda dos Lightwood, ele foi tão cuidadoso, mas agora não estava sendo. Deslizou as mãos pelas costas de Tessa, passando os dedos por seus cabelos, agarrando o tecido solto nas costas do vestido. Ele quase a levantou, de modo que os corpos se tocassem; ele estava contra ela, o comprimento longo do corpo de Will ao mesmo tempo rígido e frágil. A cabeça de Tessa se inclinou para o lado enquanto ele usava os lábios para abrir os dela, e eles não apenas se beijavam como se devoravam. Os dedos de Tessa agarravam com firmeza os cabelos de Will, tão forte que devia estar doendo, e os dentes dela tocaram o lábio inferior dele. Ele gemeu e a puxou mais para perto, fazendo-a engasgar sem fôlego.
— Will — sussurrou Tessa, e ele se levantou, erguendo-a nos braços enquanto a beijava.
Ela segurou firme nas costas e nos ombros de Will enquanto ele a carregava para a cama e a colocava ali. Tessa já estava descalça; ele tirou as botas e deitou ao lado dela. Parte do treinamento de Tessa foi sobre a remoção do uniforme, e as mãos dela foram leves e velozes sobre a roupa dele, soltando os fechos e a puxando de lado, como uma concha. Ele a descartou impacientemente e se ajoelhou para soltar o cinto de armas.
Tessa o observou, engolindo em seco. Se fosse mandá-lo parar, a hora era agora. As mãos cicatrizadas de Will eram ágeis, abrindo as presilhas, e quando ele virou para deixar o cinto cair ao lado da cama, a camisa – molhada de suor e grudando nele – deslizou para cima, exibindo a curva oca da barriga, o osso arqueado do quadril. Ela sempre achou Will lindo, os olhos, lábios e rosto, mas nunca tinha pensado em seu corpo assim. Mas a forma dele era bela, como os planos e ângulos de David, de Michelangelo. Tessa se esticou para tocá-lo, passar a mão, suave como seda, na pele dura e lisa da barriga de Will.
A resposta dele foi imediata e surpreendente. Will respirou fundo e fechou os olhos, e o corpo ficou totalmente imóvel. Ela passou os dedos pelo cós da calça, com o coração acelerado, sem saber o que estava fazendo – havia instinto ali, guiando, algo que não conseguia identificar nem explicar. A mão de Tessa se curvou na cintura de Will, o polegar tocou o osso do quadril e puxou-o para baixo.
Ele deslizou para cima dela lentamente, apoiando os cotovelos em ambos os lados de seus ombros. Seus olhos se encontraram, se sustentaram; tocavam-se por toda a extensão dos corpos, mas nenhum dos dois falou. A garganta de Tessa doía: adoração, melancolia, na mesma intensidade.
— Beije-me — falou.
Ele se abaixou lentamente até os lábios apenas se tocarem. Ela se curvou para cima, querendo encontrar a boca dele com a sua, mas ele recuou, acariciando sua bochecha com o nariz e passando os lábios no canto da boca de Tessa – em seguida, pela mandíbula até a garganta, provocando pequenos choques de prazer pelo corpo da jovem.
Ela sempre pensou nos próprios braços, mãos, pescoço, rosto como coisas separadas – que a pele não fosse a mesma que encobria tudo, nem que um beijo na garganta pudesse produzir efeitos até as solas dos pés.
— Will.
As mãos dela puxaram a camisa dele, que cedeu, com os botões arrancados, e a cabeça dele balançou para se livrar do tecido, todo cabelos selvagens, todo Heathcliff nos pântanos. As mãos dele foram menos certas no vestido dela, mas ele também o retirou, por cima da cabeça, e o descartou, deixando Tessa de camisa e espartilho. Ela ficou imóvel, chocada por estar tão despida na frente de alguém além de Sophie, e Will lançou um olhar selvagem para o espartilho que foi apenas em parte por desejo.
— Como... — perguntou ele. — Isso sai?
Tessa não conseguiu se conter; apesar de tudo, riu.
— Ele é amarrado — sussurrou ela. — Nas costas.
E conduziu as mãos dele até que os dedos encontrassem as fitas. Então ela tremeu, não de frio, mas pela intimidade do gesto. Will puxou-a contra si, agora com suavidade, e a beijou mais uma vez na linha da garganta, e em seu ombro, onde a camisa o deixava exposto, com o hálito suave e quente contra a pele dela, até que ela estivesse respirando com a mesma intensidade enquanto as mãos o acariciavam nos ombros, nos braços, nas laterais. Ela beijou as cicatrizes brancas das Marcas na pele de Will, envolvendo-o até se tornarem um emaranhado quente de membros e ela engolir as arfadas de Will.
— Tess — sussurrou ele. — Tess... se quiser parar...
Ela balançou a cabeça em silêncio. O fogo na lareira já estava quase extinto outra vez; Will era todo ângulos, sombras e pele dura contra ela. Não.
— Você quer isso? — A voz dele soou rouca.
— Quero — respondeu. — E você?
O dedo dele traçou o contorno de sua boca.
— Por isso, eu seria eternamente condenado. Por isso, eu abriria mão de tudo.
Ela sentiu o ardor por trás dos próprios olhos, a pressão das lágrimas, e piscou cílios molhados.
— Will...
— Dw i’n dy garu di am byth — disse ele. — Eu te amo. Sempre.
E se moveu para cobrir o corpo de Tessa com o seu.

***

Tarde da noite, ou cedo pela manhã, Tessa acordou. O fogo havia se apagado completamente, mas o quarto estava iluminado pela luz peculiar de uma tocha que parecia acender e apagar sem qualquer nexo.
Ela chegou para trás, apoiando-se no cotovelo. Will estava dormindo a seu lado, preso ao sono mudo dos exauridos. No entanto, ele parecia em paz – como ela nunca havia visto. A respiração fluía uniformemente, os cílios moviam-se levemente com os sonhos.
Ela havia dormido com a cabeça no braço dele, o anjo mecânico ainda em seu pescoço, apoiado no ombro de Will, à esquerda da clavícula. Quando se afastou, o anjo se soltou, e, para sua surpresa, ela viu que onde estivera apoiado, havia deixado uma marca do tamanho de um xelim, em forma de uma estrela branca clara.

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