Capítulo 20 - As Peças Infernais

Como autômatos operados por fios,
Esqueletos finos em silhueta
Deslizaram pela lenta quadrilha
E se deram as mãos
E dançaram uma sarabanda imponente;
As risadas ecoaram finas e agudas.
– Oscar Wilde, The Harlot’s House

— É lindo — suspirou Henry.
Os Caçadores de Sombras do Instituto de Londres – e Magnus Bane – estavam em um semicírculo no estúdio de Henry, olhando para uma das paredes de pedra – ou, mais precisamente, para algo que apareceu em uma das paredes de pedra.
Era um arco brilhante, de cerca de 3 metros de altura, e talvez 1,5 metro de largura. Não era talhado na pedra, mas feito de símbolos brilhantes que se entrelaçavam como vinhas em uma grade. Os símbolos não eram do Livro Cinza – Gabriel teria reconhecido se fossem – mas eram símbolos que ele jamais vira antes. Tinham a aparência estranha de uma língua estrangeira, no entanto, cada um era único, lindo e soprava uma música murmurada sobre viagem e distância, de um espaço escuro em turbilhão e da distância entre os mundos. Na escuridão, eles brilhavam em verde, claros e ácidos. No espaço criado pelos símbolos, a parede não era visível – apenas a escuridão, impenetrável, de um grande buraco negro.
— É realmente incrível — observou Magnus.
Todos, exceto o feiticeiro, estavam uniformizados para combate e carregados de armas – a espada longa favorita de Gabriel estava pendurada em suas costas, e ele se coçava para pegar o cabo com as mãos enluvadas. Apesar de gostar de arco e flecha, tinha sido treinado para utilizar esta espada por um mestre que traçava os próprios mestres até Lichtenauer, e Gabriel considerava aquela arma sua especialidade. Além disso, um arco e flecha teria menos utilidade contra autômatos do que uma arma que poderia cortá-los em pedaços.
— Graças a você, Magnus — disse Henry.
Ele estava radiante, ou foi o que Gabriel pensou. Poderia ser o reflexo dos símbolos em seu rosto.
— De jeito algum — respondeu Magnus. — Não fosse sua genialidade, isso jamais teria sido criado.
— Apesar de eu estar apreciando essa troca de gentilezas — disse Gabriel, ao perceber que Henry estava prestes a responder — ainda restam algumas questões centrais em relação à invenção.
Henry o fitou confuso.
— Por exemplo?
— Acredito, Henry, que ele esteja perguntando se essa... entrada... — começou Charlotte.
— Chamamos de Portal — explicou Henry. A letra maiúscula ficou clara no tom.
— Se funciona — concluiu Charlotte. — Você já experimentou?
Henry pareceu magoado.
— Bem, não. Não deu tempo. Mas garanto a você que nossos cálculos foram perfeitos.
Todos, exceto Henry e Magnus, olharam alarmados para o Portal.
— Henry... — começou Charlotte.
— Bem, acho que Henry e Magnus devem ir primeiro — sugeriu Gabriel — foram eles que inventaram essa maldita coisa.
Todos olharam para ele.
— É como se ele tivesse substituído Will — comentou Gideon, com as sobrancelhas erguidas. — Dizem o mesmo tipo de coisa.
— Não sou como Will! — Gabriel se irritou.
— Espero que não — disse Cecily, mas tão baixinho que ele ficou imaginando se mais alguém teria ouvido.
Ela estava particularmente bonita hoje, apesar de Gabriel não saber por quê. Usava a mesma roupa de combate lisa e preta que Charlotte; os cabelos cuidadosamente presos atrás da cabeça, e o colar de rubi no pescoço brilhava sobre a pele. Contudo, Gabriel lembrou a si mesmo, com vigor, que, considerando estarem provavelmente prestes a se colocar em perigo mortal, pensar na aparência de Cecily não deveria ser sua maior preocupação. Ordenou a si mesmo que parasse de imediato.
— Não sou nada como Will Herondale — repetiu.
— Estou perfeitamente disposto a ser o primeiro — disse Magnus, com o ar sofrido de um mestre em uma sala cheia de alunos malcomportados. — Preciso de algumas coisas. Estamos torcendo para que Tessa esteja lá, e Will talvez também esteja, então gostaria de uniformes e armas extras para a travessia. Planejo, é claro, esperá-los do outro lado, mas se houver algum... desenvolvimento inesperado, é sempre bom estar pronto.
Charlotte assentiu.
— Sim... é claro. — Ela olhou para baixo por um instante. — Não acredito que ninguém apareceu para nos ajudar. Achei que depois da minha carta pelo menos alguns... — interrompeu-se, engolindo em seco, e levantou a cabeça — deixe-me buscar Sophie. Ela pode preparar o que precisa, Magnus. E ela, Cyril e Bridget devem se juntar a nós em breve.
Charlotte desapareceu pelas escadas, e Henry olhou para ela com um carinho preocupado.
Gabriel não podia culpá-lo. Obviamente foi um golpe duro para Charlotte não ser atendida por ninguém, apesar de que ele poderia ter dito a ela que não seria. As pessoas são essencialmente egoístas, e muitos detestavam a ideia de ver uma mulher no comando do Instituto. Não se arriscariam por ela. Há poucas semanas diria o mesmo sobre si próprio. Agora que conhecia Charlotte, percebeu, surpreendentemente, que a ideia de se arriscar por ela era uma honra, como para a maioria dos ingleses seria se arriscar pela rainha.
— Como alguém faz o Portal funcionar? — perguntou Cecily, olhando para o arco brilhante como se fosse uma pintura em uma galeria, com a cabeça escura inclinada para o lado.
— Ele o transportará instantaneamente de um ponto a outro — disse Henry — mas o truque é... bem, essa parte é magia. — E falou a palavra um pouco nervoso.
— Você precisa visualizar o local para onde vai — explicou Magnus. — Não funcionará para levá-la a algum ponto onde nunca esteve ou que não consegue imaginar. Neste caso, para chegarmos a Cadair Idris, precisaremos de Cecily. Cecily, o quão próximo de Cadair Idris consegue nos deixar?
— No topo — respondeu ela, confiante — há várias trilhas que levam ao cume da montanha, e já atravessei duas delas com meu pai. Lembro-me do pico.
— Excelente — afirmou Henry — Cecily, você se colocará diante do Portal e visualizará nosso destino...
— Mas ela não vai primeiro, vai? — perguntou Gabriel. Assim que as palavras deixaram sua boca, ele mesmo se espantou. Não pretendia dizê-las. Ah, bem não tinha o que fazer, pensou. — Quero dizer: ela é a menos treinada de todos; não seria seguro.
— Posso ir primeiro — declarou Cecily, não parecendo nem um pouco grata pelo apoio de Gabriel. — Não vejo motivo pelo qual...
— Henry! — falou Charlotte, reaparecendo ao pé da escada.
Atrás dela estavam os criados do Instituto, todos uniformizados, Bridget parecia prestes a partir em uma caminhada matutina; Cyril, pronto e determinado; e Sophie, trazendo uma bolsa grande de couro.
Atrás deles mais três homens. Homens altos, com vestes de cor bege, que deslizavam os pés de modo peculiar. Irmãos do Silêncio.
Ao contrário de qualquer Irmão do Silêncio que Gabriel já tinha visto, no entanto, estes estavam armados. Cintos de armas nas cinturas, sobre as túnicas, das quais se penduravam lâminas longas e curvas, cujos cabos eram feitos de adamas brilhante, o mesmo material das estelas e lâminas serafim.
Henry levantou o olhar, confuso – em seguida, culpado, olhou do Portal para os Irmãos. Seu rosto ligeiramente sardento empalideceu.
— Irmão Enoch — disse — eu...
Acalme-se. A voz do Irmão do Silêncio ecoou na mente de todos. Não viemos alertá-lo sobre qualquer possibilidade de transgressão da Lei, Henry Branwell. Viemos lutar com vocês.
— Lutar conosco? — Gideon pareceu espantado. — Mas Irmãos do Silêncio não... digo, não são guerreiros...
Isso é incorreto. Caçadores de Sombras éramos e Caçadores de Sombras permanecemos, mesmo quando mudamos para nos tornarmos Irmãos. Fomos fundados pelo próprio Jonathan Caçador de Sombras e, apesar de vivermos pelo livro, podemos morrer pela espada, se desejarmos.
Charlotte sorria.
— Souberam da minha mensagem — disse ela. — E vieram. Irmão Enoch, Irmão Micah e Irmão Zacarias.
Os dois Irmãos atrás de Enoch inclinaram as cabeças em silêncio. Gabriel lutou contra um tremor. Sempre achou os Irmãos do Silêncio estranhos, apesar de saber que eram parte integral da vida de um Caçador de Sombras.
— O Irmão Enoch também me explicou por que mais ninguém veio — disse Charlotte, e o sorriso desapareceu — o Cônsul Wayland convocou uma reunião de Conselho para esta manhã, apesar de não ter nos informado. O comparecimento de todos os Caçadores de Sombras foi obrigatório, por Lei.
A respiração de Henry chiou através dos dentes.
— Aquele ho-homem horrível — concluiu, com uma rápida olhada para Cecily, que revirou os olhos — sobre o que é a reunião do Conselho?
— Sobre nossa substituição como chefes do Instituto — respondeu Charlotte — ele ainda acha que o ataque de Mortmain será contra Londres e que um líder forte deve estar aqui para enfrentar o exército mecânico.
— Sra. Branwell! — Sophie, enquanto entregava a bolsa para Magnus, quase a derrubou. — Não podem fazer isso!
— Ah, podem muito bem — respondeu Charlotte. Olhou em volta, para as faces de todos, e levantou a cabeça. Naquele instante, apesar de pequena, pensou Gabriel, ela pareceu mais alta que o Cônsul. — Todos sabíamos que isso aconteceria. Não tem importância. Somos Caçadores de Sombras, e nosso dever é uns com os outros, e fazer o que julgamos correto. Acreditamos em Will e temos fé nele. A fé nos trouxe até aqui; vai nos levar mais longe. O Anjo olha por nós, e vamos vencer.
Todos ficaram em silêncio. Gabriel olhou em volta, para a expressão de cada um – todos determinados – e até Magnus parecia, se não tocado ou convencido, reflexivo e respeitoso.
— Sra. Branwell — disse ele, afinal. — Se o Cônsul Wayland não a considera uma líder, então ele é um tolo.
Charlotte inclinou a cabeça em sua direção.
— Obrigada. Mas não devemos perder mais tempo, temos de ir depressa, pois esta questão não pode mais esperar.
Henry olhou para a esposa por um longo instante e, depois, para Cecily.
— Está pronta?
A irmã de Will assentiu e avançou para se colocar diante do Portal. A luz brilhante projetava uma sombra de símbolos não familiares em seu rosto pequeno e determinado.
— Visualize — disse Magnus — imagine com todas as suas forças que está vendo o topo de Cadair Idris.
As mãos de Cecily cerraram nas laterais do corpo. Enquanto encarava, o Portal começou a se mexer, os símbolos ondularam e mudaram. A escuridão da passagem clareou. De repente, Gabriel não estava mais olhando para a sombra. Encarava um retrato de uma paisagem que poderia ter sido pintada dentro do Portal – a curva verde do topo de uma montanha, um lago tão azul e profundo quanto o céu.
Cecily se engasgou um pouco – e, em seguida, sem incentivo, deu um passo à frente, desaparecendo pelo arco. Foi como ver um desenho se apagando.
Primeiro, as mãos desapareceram pelo Portal, depois os braços, esticados, e, por fim, o corpo.
Então ela se foi.
Charlotte soltou um gritinho.
— Henry!
Gabriel ouviu um zumbido. Escutou Henry garantindo a Charlotte que nada havia acontecido, mas foi como ouvir uma música que vinha de outro cômodo: as palavras se colocavam apenas como um ritmo sem significado. Tudo que ele sabia era que Cecily, a mais corajosa de todos, havia atravessado uma passagem desconhecida e desaparecido. E não podia deixá-la ir sozinha.
Avançou.
Ouviu o irmão chamá-lo pelo nome, mas ignorou; passando por Gideon, chegou ao Portal e atravessou.
Por um instante não viu nada além da escuridão. Em seguida, uma grande mão pareceu se esticar e agarrá-lo, e ele foi puxado para um redemoinho colorido.



O salão do Conselho estava cheio de pessoas gritando.
Na plataforma elevada no centro, encontrava-se o Cônsul Wayland, encarando a gritaria com um olhar de impaciência furiosa no rosto. Os olhos escuros analisavam os Caçadores de Sombras reunidos à sua frente: George Penhallow gritava com Sora Kaidou, do Instituto de Tóquio; Vijay Malhotra cutucava com um dedo fino o peito de Japheth Pangborn, que atualmente quase não saía de sua casa de campo em Idris e que estava vermelho como um tomate pela indignidade generalizada. Dois dos Blackwell cercaram Amalia Morgenstern, que os ofendia em alemão. Aloysius Starkweather, todo de preto, estava ao lado de um dos bancos de madeira, seus ombros longos quase curvados para cima, em volta das orelhas, enquanto olhava para o pódio com olhos velhos e afiados.
O Inquisidor, ao lado do Cônsul Wayland, bateu com seu bastão de madeira no chão com força suficiente para quase quebrar os tacos.
— Já BASTA! — rosnou. — Todos ficarão em silêncio e, agora. SENTEM-SE.
Uma onda de choque atravessou o recinto; e, para surpresa do Cônsul, todos se sentaram. Não em silêncio, mas sentaram-se, todos os que tiveram espaço para isso. A câmara estava quase explodindo de tão cheia; esta quantidade de Caçadores de Sombras raramente aparecia em uma mesma reunião. Aqui havia representantes de todos os Institutos – Nova York, Bangkok, Genebra, Mumbai, Kioto, Buenos Aires. Só os Caçadores de Sombras de Londres, Charlotte Branwell e seu bando, estavam ausentes.
Somente Aloysius Starkweather permanecia de pé, com a capa escura e esfarrapada esvoaçando como as asas de um corvo.
— Onde está Charlotte Branwell? — perguntou ele. — Pela sua mensagem ficou subentendido que ela estaria aqui para explicar o recado que enviou ao Conselho.
— Eu explicarei o recado — disse o Cônsul, através de dentes cerrados.
— Seria preferível ouvir dela — disse Malhorta, com olhos escuros atentos ao olhar do Cônsul para o Inquisidor e de volta ao primeiro.
O Inquisidor Whitelaw parecia esgotado, como se andasse sofrendo de insônia; a boca estava dura nos cantos.
— Charlotte Branwell está exagerando — afirmou o Cônsul — assumo total responsabilidade por tê-la colocado na direção do Instituto de Londres. Algo que eu jamais deveria ter feito. Ela foi destituída do cargo.
— Eu me encontrei e conversei com a Sra. Branwell — disse Starkweather, com a voz rouca e o sotaque de Yorkshire — ela não me parece o tipo de pessoa que exagera com facilidade.
Parecendo se lembrar exatamente de por que tinha ficado tão feliz por Starkweather ter deixado de comparecer às reuniões do Conselho, o Cônsul respondeu secamente:
— Ela está em um estado delicado, e acredito que tenha... se alterado.
Conversas e confusão. O Inquisidor olhou para Wayland e o encarou, enojado. O Cônsul retribuiu o olhar. Estava claro que tinham discutido: o Cônsul estava rubro de raiva, e o olhar que direcionou ao Inquisidor, carregado de traição. Era evidente que Whitelaw não concordava com as palavras do Cônsul.
Uma mulher se levantou dos bancos lotados. Tinha cabelos brancos presos no topo da cabeça e uma postura arrogante. O Cônsul parecia rosnar por dentro. Callida Fairchild, tia de Charlotte.
— Se está sugerindo — disse ela, com voz gelada — que minha sobrinha vem tomando decisões histéricas por estar carregando um dos Caçadores de Sombras da próxima geração, Cônsul, sugiro que pense melhor.
O Cônsul trincou os dentes.
— Não existe prova de que as declarações de Charlotte Branwell sobre Mortmain estar no País de Gales contêm algum grau de veracidade — declarou — tudo vem de relatórios de Will Herondale, que não passa de um menino, bastante irresponsável, por sinal. Todas as provas, inclusive os diários de Benedict Lightwood, sugerem um ataque a Londres, e é para lá que devemos enviar nossas forças.
Um burburinho percorreu o recinto. As palavras “ataque a Londres” foram repetidas diversas vezes. Amalia Morgenstern se abanou com um lenço bordado, enquanto Lilian Highsmith, passando os dedos em uma adaga que se projetava do punho de uma luva, pareceu satisfeita.
— Provas! — Callida irritou-se. — A palavra da minha sobrinha é prova...
Houve mais um burburinho, e uma jovem se levantou. Usava um vestido de cor verde forte e tinha uma expressão desafiadora. Na última vez em que o Cônsul a vira, ela estava chorando neste mesmo salão do Conselho, exigindo justiça. Tatiana Blackthorn, cujo nome de solteira era Lightwood.
— O Cônsul está certo quanto a Charlotte Branwell! — exclamou. — Charlotte Branwell e William Herondale são os responsáveis pela morte do meu marido!
— Ah? — manifestou-se o Inquisidor Whitelaw, com o tom carregado de sarcasmo. — Quem exatamente matou seu marido? Foi Will?
Houve um murmúrio de espanto. Tatiana pareceu furiosa.
— Não foi culpa do meu pai...
— Ao contrário — interrompeu o Inquisidor — isso foi mantido em sigilo, Sra. Blackthorn, mas você me deixa sem saída. Abrimos uma investigação sobre a morte de seu marido e ficou determinado que ele, de fato, foi o culpado, muito culpado. Não fossem as ações de seus irmãos, e de William Herondale e Charlotte Branwell, entre outros do Instituto de Londres, o nome dos Lightwood teria sido riscado dos registros dos Caçadores de Sombras, e você passaria o resto da vida como uma mundana sem amigos.
Tatiana ficou vermelha como um tomate e cerrou os punhos.
— William Herondale já... já me agrediu com insultos impronunciáveis a uma dama...
— Não vejo como isso influi na questão do momento — respondeu o Inquisidor — a pessoa pode ser grosseira na vida pessoal, porém correta em questões mais importantes.
— Você tomou nossa casa! — gritou Tatiana. — Sou forçada a depender da generosidade da família do meu marido, como uma pedinte...
Os olhos do Inquisidor brilhavam como as pedras de seus anéis.
— Sua casa foi confiscada, Sra. Blackthorn, e não roubada. Investigamos a casa da família Lightwood — prosseguiu, elevando o tom de voz — estava cheia de evidências sobre as ligações do patriarca da família com Mortmain, diários detalhando atos sujos, vis e impronunciáveis. O Cônsul cita os diários como provas de que haverá um ataque a Londres, mas quando Benedict Lightwood morreu, já estava louco em consequência da varíola demoníaca. Tampouco é provável que Mortmain tenha lhe confiado seus verdadeiros planos, mesmo que ele estivesse são.
Parecendo quase desesperado, o Cônsul Wayland interrompeu.
— A questão de Benedict Lightwood está encerrada... encerrada e irrelevante. Estamos aqui para discutir Mortmain e o Instituto! Primeiro, como Charlotte Branwell foi destituída do cargo e a situação que nos aguarda está centrada em Londres, precisamos de um novo líder para o Enclave de Londres. Vou abrir a decisão. Alguém gostaria de se colocar como substituto?
Houve um agito. George Penhallow havia começado a se levantar quando o Inquisidor se enfureceu:
— Isto é ridículo, Josiah. Ainda não há provas de que Mortmain não esteja onde Charlotte disse que estaria. Sequer começamos a falar em mandar reforços atrás dela...
— Atrás dela? Como assim, atrás dela?
O Inquisidor estendeu os braços para o salão.
— Ela não está aqui. Onde acha que estão os moradores do Instituto? Foram para Cadair Idris, atrás do Magistrado. No entanto, em vez de discutirmos a possibilidade de enviar auxílio, reunimos o Conselho para tratar do substituto de Charlotte?
O Cônsul se irritou.
— Não haverá ajuda! — rugiu. — Jamais haverá ajuda para aqueles que...
Mas o Conselho não ficou sabendo o que não seria ajudado, pois naquele instante uma lâmina de aço, mortalmente afiada, cortou o ar atrás do Cônsul e o decapitou.
O Inquisidor cambaleou para trás e alcançou seu bastão enquanto o sangue se espalhava ao redor; o corpo do Cônsul caiu, sucumbindo ao chão em duas partes cortadas: o corpo caiu no piso do estrado ensopado de sangue, enquanto a cabeça decepada rolava como uma bola de tênis. Enquanto caía, um autômato se revelou atrás dele – tão esguio quanto um esqueleto humano, vestido com os restos esfarrapados de um traje militar. Sorriu como uma caveira ao retrair a lâmina escarlate e olhar para a sala silenciada e espantada, cheia de Caçadores de Sombras.
O único outro ruído veio de Aloysius Starkweather, que dava uma risada contínua e baixinha, aparentemente para si mesmo.
— Ela avisou — sibilou. — Ela avisou o que aconteceria...
Um instante depois, o autômato avançou, a mão esticada para se fechar na garganta de Aloysius. O sangue explodiu do pescoço do velho enquanto a criatura o levantava do chão, ainda sorrindo.
Os Caçadores de Sombras começaram a gritar, e, em seguida, as portas se abriram, permitindo que uma enxurrada de criaturas mecânicas invadisse o salão.



— Bem — disse uma voz bastante entretida. — Isso é inesperado.
Tessa se sentou de súbito, puxando a colcha pesada para cima de si. Ao lado dela, Will se mexeu, apoiando-se nos cotovelos, e seus olhos se abriram lentamente.
— O quê...
Uma luz brilhante preenchera o quarto. As tochas se acenderam com força total, e parecia que o local estava iluminado pela luz do dia. Tessa pôde ver a bagunça que fizeram: roupas espalhadas pelo chão e pela cama, o tapete em frente à lareira amarrotado, as roupas de cama enroladas neles. Do outro lado da parede invisível, uma figura familiar com um elegante terno escuro e o polegar na barra da calça. Os olhos felinos brilhavam de alegria.
Magnus Bane.
— Talvez seja melhor se levantarem — disse ele. — Todos estarão aqui em breve para resgatá-los, e podem preferir estar vestidos quando chegarem — ele deu de ombros — eu preferiria, de qualquer forma, mas, pensando bem, sou famoso por ser extremamente tímido.
Will praguejou em galês. Estava sentado agora, com as cobertas na cintura, e tinha feito o possível para se posicionar de modo a proteger Tessa do olhar de Magnus. Will estava sem camisa, é claro, e, à luz mais clara, Tessa viu onde o bronzeado das mãos e do rosto desbotava em um tom mais claro no peito e ombros. A marca da estrela branca brilhava como luz em seu ombro, e ela viu os olhos de Magnus se voltarem para a marca e se fecharem.
— Interessante — disse ele.
Will emitiu um ruído incoerente de protesto.
— Interessante? Pelo Anjo, Magnus...
Magnus lançou a ele um olhar irônico. Havia algo ali... algo que fez Tessa ter a sensação de que Magnus soubesse de alguma coisa que eles não sabiam.
— Se eu fosse outra pessoa, teria muito a dizer agora — observou o feiticeiro.
— Aprecio seu controle.
— Em breve, não apreciará — respondeu Magnus secamente.
Em seguida, esticou o braço, como se fosse bater a uma porta, e cutucou a parede invisível entre eles. Foi como ver alguém colocar a mão na água: ondas se espalharam do ponto onde seu dedo tocou, e, de repente, a parede deslizou e sumiu em uma cascata de faíscas azuis.
— Aqui — disse o feiticeiro, e jogou um saco de couro amarrado para o pé da cama — trouxe o uniforme. Achei que pudessem precisar de roupas, apesar de não ter imaginado o quanto.
Tessa o encarou por trás do ombro de Will.
— Como nos encontrou? Como sabia... Quais dos outros estão com você? Estão bem?
— Sim. Diversos deles estão percorrendo este local, procurando por vocês. Agora se vistam — instruiu, e virou-se de costas, para lhes dar privacidade.
Tessa, mortificada, alcançou o saco na cama, remexeu até encontrar o uniforme, em seguida se levantou com o lençol em volta do corpo e correu para trás do biombo chinês no canto do quarto.
Não olhou para Will enquanto ia; não conseguiu. Como poderia olhar sem pensar no que fizeram? Imaginando se ele estaria horrorizado, se não conseguiria acreditar que pudessem fazer aquilo depois que Jem...
Puxou com força o uniforme de combate. Por sorte, aquela roupa, ao contrário dos vestidos, podia ser vestida sem a ajuda de ninguém. Através da tela, Tessa ouviu Magnus explicando a Will que ele e Henry utilizaram uma combinação de magia e invenção e conseguiram criar um Portal que transportava de Londres a Cadair Idris. Ela viu apenas as sombras dos dois, mas observou Will acenar com a cabeça, aliviado, enquanto Magnus listava os que o acompanharam: Henry, Charlotte, os irmãos Lightwood, Cyril, Sophie, Cecily, Bridget e um grupo de Irmãos do Silêncio.
Ao ouvir o nome da irmã, Will começou a se vestir com mais pressa ainda e, quando Tessa saiu de trás da tela, já estava completamente trajado com o uniforme, com as botas amarradas e as mãos prendendo o cinto de armas. Ao vê-la, esboçou um sorriso tímido.
— Os outros estão espalhados pelos túneis para encontrá-los — explicou Magnus — combinamos procurar por meia hora e depois nos encontrarmos na câmara central. Vou lhes dar um instante para... se recomporem — ele sorriu e apontou para a porta — estarei lá fora, no corredor.
No instante em que a porta se fechou atrás dele, Tessa estava nos braços de Will, com as mãos no pescoço do Caçador de Sombras.
— Oh, pelo Anjo — disse ela. — Que vergonha.
Will passou as mãos pelos cabelos da menina e beijou-a, nas pálpebras, nas bochechas, e, depois, na boca, rapidamente, mas com fervor e concentração, como se nada pudesse ser mais importante.
— Ouça só — disse ele. — Você falou “pelo Anjo”. Como uma Caçadora de Sombras — e beijou o lado de sua boca — eu te amo. Meu Deus, eu te amo. Esperei tanto tempo para dizer.
Ela curvou as mãos nas laterais da cintura de Will, segurando-o ali, o tecido do uniforme áspero sob as pontas de seus dedos.
— Will — disse, hesitante. — Você não está... arrependido?
— Arrependido? — Ele a fitou incrédulo. — Nage ddim... Está louca, se acha que me arrependo, Tess. — Acariciou-a na bochecha, com a junta do dedo. — Tem mais, tantas coisas que quero falar...
— Não acredito... — provocou. — Will Herondale tem mais coisas a dizer?
Ele ignorou o comentário.
— Mas agora não é hora... Não com Mortmain em cima de nós, provavelmente, e Magnus ali fora. Agora é hora de terminar isso. Mas quando acabar, Tess, falarei tudo o que sempre quis. Quanto ao momento... — Ele beijou a cabeça de Tessa e soltou-a, examinando seu rosto. — Preciso saber que acredita em mim quando digo que a amo. Só isso.
— Acredito em tudo que diz — respondeu Tessa, com um sorriso, e suas mãos desceram da cintura para o cinto de armas de Will.
Ela fechou os dedos no cabo de uma adaga e puxou-a do cinto, sorrindo enquanto ele a fitava, surpreso. Ela o beijou na bochecha e deu um passo para trás.
— Afinal — falou — você não estava mentindo sobre aquela tatuagem do dragão de Gales, estava?



O local fazia Cecily se lembrar da cúpula de Saint Paul, que Will a levou numa visita em um de seus dias menos mal-humorados depois que ela veio para Londres. Era a maior construção na qual já havia entrado. Testaram os ecos das respectivas vozes no interior da Galeria dos Sussurros e leram a inscrição deixada por Christopher Wren: si monumentum requiris circumspice . “Se procura o monumento dele, olhe em volta.”
Will explicou o significado, que Wren preferia ser lembrado pelos trabalhos que realizou do que por qualquer túmulo. Toda a catedral era um monumento à sua obra – assim como, de certa forma, todo este labirinto sob a montanha, e particularmente esta sala, era um monumento a de Mortmain.
Aqui também havia uma cúpula no teto, apesar de não ter janelas e se tratar apenas de uma concavidade que subia pela pedra. Uma galeria circular passava pela parte superior da cúpula, e havia uma plataforma ali, da qual supostamente era possível olhar para o chão de pedra lisa.
E aqui também havia uma inscrição na parede. Quatro frases, talhadas na pedra em quartzo brilhante.

AS PEÇAS INFERNAIS NÃO TÊM COMPAIXÃO.
AS PEÇAS INFERNAIS NÃO TÊM REMORSO.
AS PEÇAS INFERNAIS NÃO TÊM LIMITAÇÕES.
AS PEÇAS INFERNAIS NUNCA VÃO PARAR DE CHEGAR.

No chão de pedra, alinhados em fileiras, havia centenas de autômatos.
Usavam uma variedade de uniformes militares e estavam mortalmente parados, com os olhos metálicos fechados. Soldados de lata, pensou Cecily, ampliados a um tamanho real. As Peças Infernais. A grande criação de Mortmain – um exército feito para ser invencível, para destruir Caçadores de Sombras e avançar sem remorso.
Sophie fora a primeira a descobrir o salão; ela gritou e os outros correram para descobrir o motivo. Encontraram-na parada, tremendo, entre a massa de criaturas mecânicas. Uma delas estava caída a seus pés; ela havia cortado as pernas com um golpe da lâmina, e a máquina caiu como uma marionete cujas cordas foram talhadas. As outras não se moveram, nem acordaram, apesar do destino da companheira, o que deu coragem aos Caçadores de Sombras para avançar entre elas.
Henry agora estava de joelhos, ao lado da carapaça de um dos autômatos ainda imóveis; ele havia cortado o uniforme da criatura, aberto o peito de metal e examinava seu interior. Os Irmãos do Silêncio estavam em volta, assim como Charlotte, Sophie e Bridget. Gideon e Gabriel também voltaram, e suas buscas foram infrutíferas. Somente Magnus e Cyril ainda não tinham retornado.
Cecily não conseguia se livrar da inquietação crescente – não pela presença dos autômatos, mas pela ausência do irmão. Será que ele não estava aqui para ser encontrado? Contudo, ela não disse nada. Havia prometido a si mesma que, como Caçadora de Sombras, não perderia o controle nem gritaria, por qualquer que fosse o motivo.
— Olhem isto — murmurou Henry em voz baixa.
Dentro do peito da criatura mecânica havia uma confusão de fios e o que, aos olhos de Cecily, parecia uma caixa de metal, do tipo em que se guarda tabaco. Talhado no exterior da caixa havia o símbolo de uma serpente mordendo o próprio rabo.
— O Ouroboros. O símbolo do armazenamento das energias demoníacas.
— Como na Pyxis — Charlotte assentiu.
— Que Mortmain roubou de nós — confirmou Henry — eu já havia me preocupado com a possibilidade de que fosse este o plano de Mortmain.
— Que qual fosse o plano de Mortmain? — perguntou Gabriel.
Estava ruborizado, e seus olhos verdes brilhavam. Santo Gabriel, pensou Cecily, pois sempre perguntava o que estava em sua mente.
— Animar os autômatos — respondeu Henry distraidamente, alcançando a caixa — dar-lhes consciência, até mesmo vontade...
Interrompeu-se quando tocou a caixa, que, de repente, brilhou com luz. Luz, como a iluminação de uma pedra de luz enfeitiçada, entornando da caixa através do Ouroboros. Henry recuou com um grito, mas já era tarde demais. A criatura se sentou, rápida como um raio, e o pegou. Charlotte berrou e se jogou para a frente, mas não foi veloz o suficiente. O autômato, ainda com o peito grotescamente aberto, pegou Henry por baixo dos braços e bateu seu corpo como um chicote.
Fez-se um terrível ruído de ruptura, e Henry amoleceu. O autômato jogou-o de lado e virou-se para atingir o rosto de Charlotte. Ela se encolheu ao lado do corpo do marido enquanto a criatura mecânica deu um passo à frente e pegou o Irmão Micah. O Irmão do Silêncio bateu com o bastão na mão do autômato, mas a criatura sequer pareceu perceber. Com um estrondo mecânico que soou como uma risada, o monstro esticou o braço e abriu a garganta do Irmão do Silêncio.
O sangue esguichou pela sala, e Cecily fez exatamente o que prometeu que não faria: gritou.

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