Capítulo 24 - A Medida do Amor

A medida do amor é amar sem medida.
– atribuída a Santo Agostinho

A sala do Conselho estava cheia de luz. Um grande círculo duplo tinha sido pintado sobre o pódio na frente do salão, e no espaço entre os círculos havia símbolos: de ligação, de sabedoria, de habilidade e astúcia, e aqueles que representavam o nome de Sophie. Sophie se ajoelhava no centro dos círculos. Os cabelos estavam soltos e caíam até a cintura, uma onda de cachos escuros contra o uniforme ainda mais escuro. Estava linda sob a luz que penetrava a cúpula no teto, a cicatriz no rosto vermelha como uma rosa.
A Consulesa estava diante dela, com as mãos pálidas elevadas, e o Cálice Mortal entre elas. Charlotte usava roupas simples e vermelhas, que ondulavam ao seu redor. Sua face pequena estava séria e severa.
— Pegue o Cálice, Sophia Collins — instruiu, e o salão estava completamente silencioso.
A câmara do Conselho não estava lotada, mas na fileira de Tessa estavam: Gideon e Gabriel, Cecily e Henry, e ela e Will, todos inclinados para a frente ansiosos, esperando a Ascensão de Sophie. Em cada extremidade do pódio havia um Irmão do Silêncio, com as cabeças baixas, as túnicas parecendo feitas de mármore.
Charlotte abaixou o Cálice e o entregou a Sophie, que o pegou com cuidado.
— Você jura, Sophia Collins, que vai renunciar à vida mundana e seguir o caminho da Caça às Sombras? Vai tomar o sangue do Anjo Raziel e honrá-lo? Jura servir à Clave, seguir a Lei estabelecida pelo Pacto e obedecer à palavra do Conselho? Defenderá aquilo que é humano e mortal, sabendo que, pelo seu serviço, não haverá recompensa nem agradecimento, apenas honra?
— Juro — respondeu Sophie, com voz muito firme.
— Pode ser um escudo para os fracos, uma luz no escuro, uma verdade entre falsidades, uma torre na enchente, um olho que enxerga quando todos os outros são cegos?
— Posso.
— E, quando morrer, oferecerá seu corpo para ser cremado pelos Nephilim, para que suas cinzas construam a Cidade dos Ossos?
— Oferecerei.
— Então, beba — disse Charlotte.
Tessa ouviu Gideon respirar fundo. Esta era a parte perigosa do ritual. Era a parte que poderia matar os não treinados ou indignos.
Sophie abaixou a cabeça e levou o Cálice aos lábios. Tessa chegou para a frente, com o peito apertado por causa da apreensão. Sentiu a mão de Will deslizar sobre a dela, um peso morno e confortante. A garganta de Sophie se moveu ao engolir.
O círculo que envolvia as duas ardeu mais uma vez com uma luz fria azul esbranquiçada, ofuscando-as. Quando se extinguiu, Tessa ficou piscando estrelas dos olhos enquanto a luz diminuía. Ela piscou os olhos apressadamente e viu Sophie segurando o Cálice. Havia um brilho no Cálice quando o devolveu a Charlotte, que deu um sorriso largo.
— Agora você é uma Nephilim — disse ela. — E eu a batizo Sophia, Caçadora de Sombras, do sangue de Jonathan Caçador de Sombras, filha dos Nephilim. Levante-se, Sophia.
E Sophie se levantou, em meio à comemoração da multidão na qual os gritos de Gideon eram os mais altos dentre muitos. A menina estava sorrindo, o rosto todo brilhando ao sol do inverno que penetrava a claraboia. Sombras percorriam o chão, diretas e rápidas. Tessa olhou para o alto, maravilhada – uma brancura penetrava as janelas, girando suavemente além do vidro.
— Neve — sussurrou Will ao seu ouvido. — Feliz Natal, Tessa.

***

Aquela era a noite da festa anual de Natal do Enclave. Era a primeira vez que Tessa via o salão do Instituto aberto e cheio de gente. As janelas imensas brilhavam com luz refletida, projetando um brilho dourado sobre o assoalho polido. Além dos vidros escuros, via-se a neve caindo em grandes flocos brancos, mas o interior do Instituto estava quente e seguro.
O Natal entre Caçadores de Sombras não era o Natal que Tessa conhecia. Não havia coroas de advento, nem corais, nem biscoitos natalinos. Tinha uma árvore, apesar de não ser decorada tradicionalmente. Um grande abeto, que quase tocava o teto na outra extremidade do salão (quando Will perguntou a Charlotte como fizeram para colocá-lo ali, ela apenas acenou e falou qualquer coisa sobre Magnus). Velas se equilibravam em cada galho, apesar de Tessa não conseguir enxergar onde se apoiavam, e projetavam ainda mais luzes douradas pelo salão.
Presos aos galhos da árvore – e pendurados em arandelas, em castiçais sobre as mesas, e nas maçanetas das portas – havia símbolos cristalinos e brilhantes, cada qual claro como vidro, mas, ao mesmo tempo, refratando a luz e lançando arco-íris luminosos pelo salão. As paredes eram decoradas com coroas de hera entrelaçadas, e frutinhas silvestres vermelhas se destacavam contra as folhas verdes. Aqui e ali havia viscos brancos. Tinha até um preso à coleira de Church, que passava por baixo de uma das mesas de Natal e parecia furioso.
Tessa tinha a impressão de nunca ter visto tanta comida. As mesas estavam cheias de galinha e peru, aves de caça e lebre, presunto de Natal e tortas, sanduíches finos, sorvetes, bolos, manjar-branco e pudins de creme, gelatina colorida e sobremesas natalinas regadas a licor e vinho, além de enormes recipientes de prata com ponche natalino. Havia também muitos doces e balas, sacos de São Nicolau, cada qual contendo carvão, um pouco de açúcar ou uma gota de limão, para dizer ao destinatário se seu comportamento naquele ano tinha sido traiçoeiro, doce ou amargo. Mais cedo teve chá e presentes só para os moradores do Instituto, onde trocaram lembranças antes da chegada dos convidados – Charlotte no colo de Henry, que se encontrava sobre a cadeira rolante, abrindo vários presentes para o bebê que nasceria em abril (cujo nome, ficou decidido, seria Charles. “Charles Fairchild”, Charlotte anunciou orgulhosamente, segurando o pequeno cobertor que Sophie havia tricotado para ela, com as iniciais C.F no canto).
— Charles Buford Fairchild — Henry a corrigiu.
Charlotte fez uma careta. Tessa, rindo, perguntou:
— Fairchild? Não vai se chamar Branwell?
Charlotte deu um sorriso tímido.
— Sou a Consulesa. Ficou decidido que, neste caso, a criança levaria meu nome. Henry não se importa, se importa, Henry?
— De jeito nenhum — respondeu. — Principalmente porque Charles Buford Branwell teria soado tolo, mas Charles Buford Fairchild soa muito bem.
— Henry...
Tessa agora sorria com a lembrança. Estava ao lado da árvore de Natal, observando os integrantes do Enclave em toda a sua elegância – mulheres com tons coloridos de inverno, vestidos vermelhos de cetim, seda safira e tafetá dourado, homens com trajes de noite – enquanto riam e conversavam. Sophie estava com Gideon, feliz e relaxada em um vestido de veludo; Cecily estava de azul, de lá para cá, alegre em olhar para tudo, e Gabriel atrás, com membros longos, cabelos emaranhados, divertindo-se em adoração.
Uma enorme lenha Yule com pedaços de hera queimava em uma imensa lareira de pedra, e sobre a lareira havia redes contendo maçãs douradas, nozes, pipoca colorida e balas. Também tinha música, suave e assombrosa, e Charlotte finalmente parecia ter achado uma função para a cantoria de Bridget, que se elevava sobre os instrumentos, afinada e doce;

“Ai, meu amor, falha comigo,
Me descarta sem cortesia.
E eu o amo há tanto tempo,
Deleitando-me com sua companhia.
Greensleeves era toda a minha alegria;
Greensleeves era meu deleite;
Greensleeves era meu coração dourado,
E quem, além de Lady Greensleeves?”

— Que o céu chova batatas — disse uma voz entoada. — Que caia uma tempestade ao som de Greensleeves.
Tessa se virou. De algum jeito, Will havia aparecido logo atrás dela, o que era inconveniente, considerando que vinha procurando por ele desde que chegara à sala e não tinha visto nem sinal. Como sempre, vê-lo com traje de noite – todo azul, preto e branco – deixou-a sem fôlego, mas ela disfarçou o aperto no peito com um sorriso.
— Shakespeare — disse ela — As alegres comadres de Windsor.
— Não é uma das suas melhores peças — disse Will, cerrando os olhos para assimilá-la.
Tessa havia selecionado um vestido de seda cor-de-rosa e nenhuma joia, exceto por um cordão de veludo com duas voltas no pescoço e pendurado atrás. Sophie penteou seu cabelo, por um favor, e não uma obrigação, e o decorou com enfeites brancos entre os cachos. Tessa se sentia muito elegante e chamando a atenção.
— Mas tem seus momentos.
— Sempre um crítico literário — Tessa suspirou, desviando o olhar para onde Charlotte conversava com um homem alto de cabelos claros que Tessa não conhecia.
Will se inclinou para ela. Cheirava a algo verde e invernal, abeto, limão ou cipreste.
— Essas são sementes de azevinho no seu cabelo — disse ele, respirando contra sua bochecha — tecnicamente acho que isso quer dizer que qualquer pessoa pode beijá-la a qualquer instante.
Ela arregalou os olhos para ele.
— Acha que vão tentar?
Ele a tocou levemente na bochecha; estava com luvas de chamois, mas Tessa sentiu como se fosse a pele dele na dela.
— Eu mataria qualquer um que o fizesse.
— Bem — respondeu Tessa. — Não seria seu primeiro escândalo natalino.
Ele parou por um instante e depois sorriu, aquele raro sorriso que iluminava seu rosto e alterava toda a natureza do mesmo. O sorriso que Tessa uma vez temeu que houvesse se perdido para sempre, com Jem, pela escuridão da Cidade do Silêncio. Jem não estava morto, mas parte de Will foi com ele quando este se foi, um pedacinho arrancado do coração de Will e enterrado entre os ossos sussurrantes. E Tessa se preocupou naquela primeira semana, temeu que Will não fosse se recuperar, que fosse ser eternamente uma espécie de fantasma, vagando pelo Instituto, sem comer, sempre virando para falar com alguém que não estava ali, a luz do rosto se apagando ao se lembrar e se calar.
Mas ela estava determinada. Seu próprio coração estava partido, mas consertar o de Will, tinha certeza, significaria consertar o próprio, de alguma forma. Assim que se sentiu suficientemente forte, decidiu que levaria chá para ele, mesmo que ele não quisesse, levaria livros, o levaria para a biblioteca e pediria ajuda para treinar. Suplicou a Charlotte que parasse de tratá-lo como um vidro que ia quebrar e o mandasse para a cidade para lutar, como já tinha feito antes, com Gabriel ou Gideon em vez de Jem. E Charlotte o fez, inquieta, mas Will voltava sangrando e ferido, porém com olhos vivos e acesos.
— Isso foi inteligente — disse Cecily a ela mais tarde, enquanto se colocavam perto da janela, observando Will e Gabriel conversando no jardim. — Ser Nephilim dá um propósito ao meu irmão. A Caça às Sombras vai consertar as feridas. A Caça às Sombras e você.
Tessa deixou a cortina cair e se fechar, pensativamente. Ela e Will não conversaram sobre o que aconteceu em Cadair Idris, na noite que passaram juntos. Aliás, ela parecia tão distante quanto um sonho. Como algo que tinha acontecido com outra pessoa, e não com ela, não com Tessa. Não sabia se Will sentia o mesmo. Sabia que Jem sabia, ou supunha, e que perdoou os dois, mas Will não havia se aproximado outra vez, nem dito que a amava, nem perguntado se ela o amava, desde o dia em que Jem se foi.
Parecia que eras intermináveis tinham se passado, apesar de terem sido apenas duas semanas, até Will encontrá-la sozinha na biblioteca e perguntar – um tanto bruscamente – se ela faria um passeio de carruagem com ele no dia seguinte. Confusa, Tessa concordou, imaginando secretamente se havia algum outro motivo para ele querer sua companhia. Um mistério a ser investigado? Uma confissão?
Mas não, foi apenas um passeio de carruagem pelo parque. Estava ficando frio, e o gelo cobria as bordas dos lagos. Os galhos nus das árvores eram ermos e adoráveis, e Will conversou educadamente sobre o tempo e os marcos da cidade. Ele parecia determinado a retomar a educação de Tessa sobre Londres de onde Jem havia parado. Foram ao Museu Britânico, à National Gallery , ao Kew Gardens, e à Catedral de São Paulo, onde Tessa finalmente perdeu a paciência.
Estavam na famosa Galeria dos Sussurros, e Tessa, apoiada na grade, olhava para a catedral abaixo. Will traduzia as inscrições em latim na parede, onde Christopher Wren fora enterrado – Se procura o monumento dele, olhe em volta – quando Tessa esticou distraidamente a mão para alcançar a dele. Ele imediatamente recuou, enrubescendo.
Ela o olhou, surpresa.
— Algum problema?
— Não — respondeu ele, depressa demais — eu apenas... não a trouxe aqui para poder agarrá-la na Galeria dos Sussurros.
Tessa explodiu.
— Não estou pedindo para me agarrar na Galeria dos Sussurros! Pelo Anjo, Will, pode parar de ser tão educado?
Ele a olhou, espantado.
— Mas não prefere...
— Não prefiro. Não quero que seja educado. Quero que seja você! Não quero que me mostre marcos da arquitetura como se fosse um guia! Quero que diga coisas loucas e engraçadas, faça músicas e seja... — o Will por quem me apaixonei, quase disse. — E seja Will. — Foi como concluiu. — Ou devo agredi-lo com meu guarda-chuva?
— Estou tentando cortejá-la — respondeu Will, exasperado — cortejá-la adequadamente. É tudo por isso. Sabe disso, não sabe?
— O Sr. Rochester nunca cortejou Jane Eyre — observou Tessa.
— Não, ele se vestiu de mulher e apavorou a coitada. É isso que quer?
— Você seria uma mulher muito feia.
— Não seria nada. Seria linda.
Tessa riu.
— Pronto. Aí está Will. Não é melhor? Não acha?
— Não sei — disse ele, olhando para ela. — Tenho medo de responder isso. Ouvi dizer que, quando falo, mulheres americanas sentem vontade de me atacar com guarda-chuvas.
Tessa riu outra vez, e logo os dois estavam rindo, as risadas sufocadas ecoando nas paredes da Galeria dos Sussurros. Depois disso, as coisas se tornaram decididamente mais fáceis entre os dois, e o sorriso de Will ao ajudá-la a saltar da carruagem na volta foi alegre e verdadeiro.
Naquela noite, houve uma leve batida à porta de Tessa, e quando ela foi atender, não encontrou ninguém, apenas um livro no chão. Um conto de duas cidades. Um presente estranho, pensou. Havia uma cópia na biblioteca, que ela podia ler sempre que quisesse, mas esta era nova, com uma nota da Hatchards marcando a primeira folha. Só quando levou o livro consigo para a cama foi que percebeu que havia uma inscrição na mesma página.

Tess, Tess, Tessa.
Já houve algum som mais belo que seu nome? Dizê-lo em voz alta faz meu coração tocar como um sino. Estranho imaginar isso, não? – um coração tocando? Mas quando você me toca, é assim que me sinto, como se meu coração soasse no peito e a música percorresse minhas veias e explodisse meus ossos com alegria.
Por que escrevi estas palavras neste livro? Por sua causa. Você me ensinou a amar esta história, quando eu a desprezava. Quando li pela segunda vez, com mente e coração abertos, senti um completo desespero e uma inveja de Sydney Carton – sim, Sydney, pois por mais que não tivesse qualquer esperança de ser amado pela mulher que amava, ele, ao menos, conseguia se declarar. Ao menos, podia fazer algo que provasse sua paixão, ainda que a coisa em questão fosse morrer.
Eu teria escolhido a morte por uma chance de lhe dizer a verdade, Tessa, se pudesse ter a certeza de que a morte seria minha. E por isso invejei Sydney, por ele ser livre.
E agora finalmente estou livre e, finalmente, posso lhe dizer, sem que isso a ponha em perigo, tudo que sinto no meu coração. Você não é o último sonho da minha alma. É o primeiro, o único que jamais fui capaz de evitar. É o primeiro sonho da minha alma, e deste sonho espero que venham todos os outros, uma vida inteira.
Esperançoso, afinal,
Will Herondale

Ela ficou sentada por um longo tempo depois disso, segurando o livro sem ler, observando o amanhecer erguer-se sobre Londres. Pela manhã, quase voou para se vestir antes de pegar o livro e descer pelas escadas com ele. Encontrou Will saindo do quarto, com os cabelos ainda molhados do banho, e se jogou para ele, pegando-o pela lapela e puxando-o para si, enterrando o rosto em seu peito. O livro caiu no chão entre os dois enquanto ele esticava os braços para envolvê-la, acariciando seus cabelos, sussurrando suavemente:
— Tessa, o que foi, o que houve? Não gostou...
— Nunca escreveram algo tão bonito para mim — respondeu, com o rosto no peito dele, as batidas suaves do coração uniformes sob a camisa e o casaco. — Nunca.
— Escrevi logo depois que descobri que a maldição era falsa — explicou Will. — Pretendia entregar na época, mas... — A mão de Will apertou os cabelos de Tessa. — Quando descobri que estava noiva de Jem, deixei de lado. Não sabia quando poderia ou deveria dá-lo a você. Então, ontem, quando me pediu para que eu fosse eu mesmo, tive esperança suficiente para buscar de novo esses velhos sonhos, tirar a poeira do livro e entregá-lo a você.
Foram para o parque naquele dia. Apesar de frio, estava claro, e havia poucas pessoas por ali. O lago Serpentine brilhava sob o sol de inverno, e Will mostrou o lugar onde ele e Jem alimentavam os patos com torta de frango. Foi a primeira vez que ela o ouviu sorrir ao falar de Jem.
Sabia que não podia ser Jem para ele. Ninguém podia. Mas aos poucos, o vazio do coração de Will ia se preenchendo. Ter Cecily por perto era uma alegria para ele; Tessa percebia isso quando sentavam juntos diante do fogo, conversando suavemente em galês, e os olhos dele brilhavam; ele havia até aprendido a gostar de Gabriel e Gideon, que eram amigos para ele, apesar de ninguém poder ser amigo como Jem. E, claro, o amor de Charlotte e Henry continuava firme como sempre. A ferida jamais curaria, Tessa sabia, nem a dela nem a de Will, mas à medida que o inverno esfriava, Will sorria com mais frequência e comia com mais frequência, o olhar assombrado desaparecia, e ela começou a respirar com mais facilidade, sabendo que aquele olhar não era mortal.
— Hmmm — disse ele então, cambaleando ligeiramente sobre os pés enquanto examinava o salão. — Você pode ter razão. Acho que foi na época do Natal que fiz a tatuagem de dragão galês.
Com isso, Tessa precisou se concentrar para não enrubescer.
— Como isso aconteceu?
Will fez um gesto gracioso com a mão.
— Eu estava bêbado...
— Mentira. Você não ficou realmente bêbado ontem.
— Pelo contrário... para aprender como simular um estado inebriado, a pessoa deve se embriagar pelo menos uma vez, para ter referência. Nigel Seis Dedos estava...
— Não vai me dizer que realmente existe um Nigel Seis Dedos?
— Claro que existe... — começou Will, com um sorriso que subitamente desapareceu; olhou através de Tessa, para o salão.
Ela virou para seguir o olhar e viu o mesmo sujeito alto e de cabelos claros que conversava com Charlotte anteriormente abrindo caminho pela multidão em direção a eles.
Era corpulento, talvez quase 40 anos, com uma cicatriz que percorria o queixo. Desgrenhado, cabelos claros, olhos azuis e pele bronzeada pelo sol. Parecia ainda mais escura em contraste com a camisa branca. Havia algo de familiar nele, algo que surgiu no fundo da memória de Tessa.
Ele parou em frente aos dois. Desviou os olhos para Will. Eram de um azul mais claro que os de Will, quase da cor de centáureas. A pele em volta era morena com alguns pés de galinha. O homem falou:
— Você é William Herondale?
Will assentiu sem falar.
— Sou Elias Carstairs — disse o homem. — Jem Carstairs era meu sobrinho.
Will ficou branco, e Tessa percebeu o que havia de familiar no sujeito – alguma coisa nele, a forma como se portava e o formato das mãos, lembrava Jem. Como Will pareceu incapaz de falar, Tessa disse:
— Sim, este é Will Herondale. E eu sou Theresa Gray.
— A menina capaz de mudar de forma — disse o homem. Elias, Tessa lembrou a si mesma; Caçadores de Sombras utilizam os primeiros nomes. — Foi noiva de James antes de ele se tornar um Irmão do Silêncio.
— Fui — disse Tessa em voz baixa. — Eu o amo muito.
Ele lhe lançou um olhar – que não foi hostil nem desafiador, apenas curioso. Em seguida, se voltou para Will.
— Você era parabatai de Jem?
Will reencontrou a voz.
— Ainda sou — respondeu, e tensionou o maxilar teimosamente.
— James falou de você — disse Elias — depois que saí da China, quando voltei a Idris, perguntei se ele viria morar comigo. Nós o mandamos para longe de Xangai, pois não considerávamos o lugar seguro para ele enquanto os capangas de Yanluo estavam livres, buscando vingança. Mas, quando perguntei se queria ir para Idris, ele disse que não, não podia. Pedi que reconsiderasse. Falei que era sua família, seu sangue. Mas ele respondeu que não podia abandonar seu parabatai, que havia coisas mais importantes que o sangue — os olhos claros de Elias estavam firmes — eu lhe trouxe um presente, Will Herondale. Algo que pretendia dar para ele quando atingisse a maioridade, pois seu pai não estava mais vivo para lhe dar. Mas não posso fazer isso agora.
Will ficou completamente tenso, como se usasse uma gravata apertada demais. Falou:
— Não fiz nada para merecer um presente.
— Acho que fez.
Elias sacou do cinto uma espada curta com uma bainha elaborada. Estendeu para Will que, após um instante, pegou. A bainha era coberta com desenhos sofisticados de folhas e símbolos, cuidadosamente trabalhados, brilhando sob a luz dourada. Com um gesto decisivo, Will virou a espada e a segurou diante do rosto.
O cabo tinha os mesmos desenhos de símbolos e folhas, mas a lâmina era simples e vazia, exceto por uma linha de palavras no centro. Tessa se inclinou para ler a frase no metal.
Sou Cortana, do mesmo aço e temperamento que Joyeuse e Durendal.
— Joyeuse era a espada de Carlos Magno — disse Will, com a voz ainda rígida, daquele jeito que Tessa sabia que significava que ele estava contendo emoções — Durendal era de Rolando. Esta espada é... é do estofo de lendas.
— Forjadas pelo primeiro fabricante de armas de Caçadores de Sombras, Wayland, o Ferreiro. Tem uma pena da asa do Anjo no cabo — disse Elias. — Está na família Carstairs há centenas de anos. Fui instruído pelo pai de Jem a lhe dar quando ele fizesse 18 anos. Mas os Irmãos do Silêncio não podem aceitar presentes — ele olhou para Will — você era seu parabatai. Deve ficar com ela.
Will embainhou a espada.
— Não posso aceitar. Não vou aceitar.
Elias ficou espantado.
— Mas precisa — disse. — Você era parabatai de Jem, ele o amava...
Will estendeu a espada de volta para Elias Carstairs, segurando pela lâmina. Após um instante, Elias pegou, e Will virou e se afastou, sumindo na multidão.
Elias ficou olhando em choque.
— Não tive a intenção de ofender.
— Você falou de Jem no passado — explicou Tessa. — Jem não está conosco, mas não está morto. Will... não consegue suportar que pensem em Jem como alguém perdido ou esquecido.
— Não falei no sentido de esquecê-lo — disse Elias. — Só falei que os Irmãos do Silêncio não têm emoções como nós. Não sentem como nós. Se amam...
— Jem ainda ama Will — afirmou Tessa. — Sendo Irmão do Silêncio ou não. Existem coisas que nenhuma magia pode destruir, pois elas são mágicas. Você nunca os viu juntos, mas eu vi.
— Pretendia dar Cortana a ele. Não posso dar a James, então achei que devesse ficar com o parabatai.
— Você tem boas intenções — observou Tessa. — Mas, perdoe minha impertinência, senhor Carstairs: não pretende ter filhos?
Os olhos dele se arregalaram.
— Não tinha pensado...
Tessa olhou para a lâmina brilhante, em seguida para o homem que a segurava. Conseguia enxergar um pouco de Jem nele, como se olhasse para o reflexo de quem ama na água ondulante. Aquele amor, recordado e presente, deixou sua voz suave ao falar.
— Se não tem certeza — disse ela — então guarde. Guarde para seus próprios herdeiros. Will preferiria assim. Pois não precisa de uma espada que lhe lembre de Jem. Por mais nobre que seja a linhagem.

***

Estava frio na escadaria do Instituto, onde Will se encontrava sem casaco ou chapéu, olhando para a noite congelada. O vento soprava pequenas lufadas de neve contra suas bochechas, as mãos nuas, e ele ouviu, como sempre fazia, a voz de Jem no fundo da mente, dizendo para não ser ridículo, para voltar para dentro antes de pegar uma gripe.
O inverno sempre pareceu a estação mais pura para Will – mesmo a fumaça e a sujeira de Londres, no frio, congelavam, duras e limpas. Naquela manhã, ele havia quebrado uma camada de gelo que se formou em seu jarro de água, antes de jogar o líquido gélido no rosto e tremer ao se olhar no espelho, com os cabelos molhados pintando o rosto com linhas negras. Primeira manhã de Natal sem Jem em seis anos. O frio mais puro, trazendo a dor mais pura.
— Will. — A voz foi um sussurro, muito familiar.
Virou a cabeça, uma imagem da Velha Molly subindo em sua mente, mas fantasmas raramente iam para longe de onde tinham morrido ou sido enterrados, e além disso, o que ela poderia querer com ele agora?
Um olhar encontrou o seu, firme e escuro. O restante dela não era tão transparente, mas sim contornado em prata: o cabelo louro, o rosto de boneca, o vestido branco com o qual tinha morrido. Sangue, vermelho como uma flor, no peito.
— Jessamine — disse ele.
— Feliz Natal, Will.
O coração dele, que havia parado por um instante, começou a bater novamente, o sangue correndo veloz pelas veias.
— Jessamine, por que... O que faz aqui?
Ela fez beicinho.
— Estou aqui porque morri aqui — explicou, e a voz se fortaleceu.
Não era incomum que um fantasma adquirisse mais massa e poder auditivo quando estava perto de um humano, principalmente um que pudesse ouvi-los. Apontou para o jardim em volta, onde Will a segurou enquanto morria, o sangue correndo nas pedras.
— Não está feliz em me ver, Will?
— Deveria? — perguntou ele. — Jessie, normalmente, quando vejo fantasmas é porque existe algum assunto não concluído ou alguma tristeza que os prende a esse mundo.
Ela levantou a cabeça, olhando para a neve. Apesar de cair ao seu redor, não caía nela, como se estivesse sob um vidro.
— E se eu tivesse uma tristeza, me ajudaria a curá-la? Jamais gostou muito de mim quando eu era viva.
— Gostei — disse Will. — E sinto muito se dei a impressão de não gostar de você ou odiá-la, Jessamine. Acho que você fazia com que eu me lembrasse de mim mesmo mais do que gostaria de admitir, e, portanto, eu a julguei com a mesma severidade com que teria me julgado.
Com isso, ela olhou para ele.
— Nossa, sinceridade direta, Will? Você mudou mesmo. — Ela deu um passo para trás, e ele viu que seus pés não deixaram marcas na camada de neve sobre os degraus. — Estou aqui porque em vida não quis ser Caçadora de Sombras, proteger os Nephilim. Agora sou encarregada da guarda do Instituto pelo tempo que precisar ser guardado.
— E não se importa? — perguntou. — Estar aqui, conosco, quando poderia ter atravessado...
Ela franziu o nariz.
— Não quis atravessar. Exigiram tanto de mim em vida, sabe o Anjo como teria sido depois. Não, estou feliz aqui, olhando por vocês, quieta, pairando e invisível — seus cabelos prateados brilhavam ao luar enquanto ela inclinava a cabeça para ele — mas você está quase me enlouquecendo.
— Eu?
— Sim. Sempre disse que você seria um péssimo pretendente, Will. E agora está me provando isso.
— Sério? — perguntou Will. — Voltou do mundo dos mortos, como o fantasma do Velho Marley, para me importunar em relação às minhas chances românticas?
— Que chances? Já levou Tessa em tantos passeios de carruagem que imagino que ela seja capaz de desenhar um mapa de Londres de cabeça, mas já a pediu em casamento? Não. Uma dama não pode se pedir em casamento, William, e ela não pode dizer que o ama se não deixar claras suas intenções!
Will balançou a cabeça.
— Jessamine, você é incorrigível.
— E tenho razão — observou. — Do que tem medo?
— Que, se declarar minhas intenções, ela vai dizer que não me ama, não como amava Jem.
— Ela não vai amá-lo como amava Jem. Ela vai amá-lo como ama a você, Will, uma pessoa completamente diferente. Gostaria que ela não tivesse amado Jem?
— Não, mas também não quero me casar com alguém que não me ama.
— Precisa perguntar a ela para descobrir — falou Jessamine. — A vida é cheia de riscos, a morte é mais simples.
— Por que não a vi antes, se esteve aqui o tempo todo? — perguntou.
— Ainda não posso entrar no Instituto, e, quando você está no jardim, está sempre com alguém. Já tentei atravessar as portas, mas uma espécie de força me impede. Mas é melhor do que antes. Primeiro, só conseguia subir alguns degraus. Agora estou como me vê — indicou sua posição na escadaria — um dia, conseguirei entrar.
— E, quando entrar, vai descobrir que seu quarto continua como sempre, e suas bonecas também — disse Will.
Jessamine deu um sorriso que fez Will imaginar se ela teria sido sempre tão triste ou se a morte a transformara mais do que ele achava que fantasmas podiam se transformar. Mas, antes que voltasse a falar, uma expressão de alarme atravessou seu rosto, e ela desapareceu em um turbilhão de neve.
Will virou para ver o que a assustou. As portas do Instituto se abriram, e Magnus aparecera. Estava com um casaco de lã e uma cartola de seda já marcada pelos flocos de neve.
— Eu devia saber que o encontraria aqui, fazendo o possível para virar picolé — disse Magnus, descendo os degraus até estar ao lado de Will, olhando para o jardim.
Will não quis mencionar Jessamine. Por alguma razão, sentiu que ela não gostaria que o fizesse.
— Estava deixando a festa? Ou só me procurando?
— As duas coisas — respondeu Magnus, vestindo um par de luvas brancas — aliás, estou saindo de Londres.
— Saindo de Londres? — repetiu Will, espantado. — Não pode estar falando sério.
— Por que não? — Magnus apontou um dedo para um floco de neve errante. Brilhou azul e desapareceu. — Não sou londrino, Will. Estou na casa de Woolsey há algum tempo, mas ela não é minha, e eu e ele cansamos da companhia um do outro rapidamente.
— Para onde vai?
— Nova York. Um Novo Mundo! Uma nova vida, um novo continente. — Magnus lançou as mãos para cima. — Talvez até leve seu gato comigo. Charlotte disse que ele anda triste desde que Jem se foi.
— Bem, ele morde todo mundo. Pode ficar com ele. Acha que vai gostar de Nova York?
— Quem sabe? Vamos descobrir juntos. O inesperado é o que me impede de estagnar.
— Nós, que não vivemos eternamente, não gostamos de mudança tanto quanto vocês, que vivem. Estou cansado de perder pessoas — disse Will.
— Eu também — concordou Magnus. — Mas é como falei, não é? Você aprende a suportar.
— Certa vez, ouvi dizer que os homens que perdem um braço ou uma perna podem continuar sentindo dor nesses membros, apesar de não existirem mais. Às vezes, é assim. Sinto Jem comigo, apesar de ele ter nos deixado, e é como se faltasse um pedaço de mim.
— Mas não falta — disse Magnus. — Ele não está morto, Will. Está vivo porque você o deixou ir. Ele teria ficado com você e morrido, se você pedisse, mas você o amava o bastante para preferir que ele vivesse, ainda que uma vida separada. E isso, acima de tudo, prova que você não é Sidney Carton, Will, que o seu amor não é o tipo de amor que só pode ser obtido pela destruição. Foi o que vi em você, o que sempre vi em você, o que me fez querer ajudá-lo. Que você não está se desesperando. Que tem uma capacidade infinita de se alegrar. — Pôs uma mão enluvada sob o queixo de Will e levantou sua cabeça. Havia poucas pessoas para as quais Will tinha de levantar a cabeça para olhar no olho, mas Magnus era uma delas. — Estrela brilhante — disse Magnus, com olhos pensativos, como se lembrasse de alguma coisa ou de alguém. — Vocês, que são mortais, ardem tão ferozmente. E você é mais feroz do que a maioria, Will. Jamais vou esquecê-lo.
— Nem eu — respondeu Will — devo muito a você. Quebrou minha maldição.
— Você não era amaldiçoado.
— Sim, era. Era. Obrigado, Magnus, por tudo que fez por mim. Se não agradeci antes, faço isso agora. Obrigado.
Magnus abaixou a mão.
— Acho que nenhum Caçador de Sombras me agradeceu antes.
Will deu um sorriso torto.
— Eu tentaria não me acostumar. Não somos uma espécie muito grata.
— Não — Magnus riu. — Não vou me acostumar. — Seus olhos felinos cerraram. — Deixo-o em boas mãos, acredito, Will Herondale.
— Está falando de Tessa.
— Estou falando de Tessa. Ou nega que ela é a dona do seu coração?
Magnus já havia começado a descer as escadas. Parou e olhou para Will.
— Não nego — respondeu Will. — Mas ela ficará triste que tenha saído sem se despedir.
— Ah — disse Magnus, virando na base da escada com um sorriso curioso. — Acho que não será necessário. Diga que voltarei a encontrá-la.
Will assentiu. Magnus virou, as mãos nos bolsos do casaco, e caminhou para os portões do Instituto. Will observou até a figura desbotar na brancura da neve.

***

Tessa havia se retirado do salão sem que ninguém percebesse. Até mesmo Charlotte, sempre atenta, estava distraída, sentada ao lado de Henry em sua cadeira de rodas, com a mão na dele, sorrindo para os músicos.
Tessa não demorou para encontrar Will. Imaginava onde ele estaria, e acertou – na escadaria do Instituto, sem casaco nem chapéu, deixando a neve cair-lhe na cabeça e nos ombros. Havia uma camada branca por todo o jardim, como açúcar, congelando a fileira de carruagens que ali esperavam, os portões de ferro negro, as pedras onde Jessamine morreu. Will olhava fixamente para a frente, como se tentasse identificar alguma coisa através dos flocos.
— Will — disse Tessa, e ele se virou para olhar para ela.
Ela havia trazido um xale de seda, mas nada mais pesado, e sentiu a ferroada fria dos flocos de neve na pele nua do pescoço e dos ombros.
— Devia ter sido mais educado com Elias Carstairs — disse Will como resposta.
Olhava para o céu, onde uma pálida lua crescente surgia entre nuvens espessas e névoa. Flocos brancos de neve caíram e se misturaram aos cabelos negros de Will. As bochechas e lábios estavam ruborizados pelo frio. Ele estava mais bonito que nunca.
— Em vez disso, me comportei como teria feito... antes.
Tessa entendeu o que ele quis dizer. Para Will, só existia um antes e depois.
— Tem direito de se aborrecer — disse ela. — Já falei, não quero que seja perfeito. Só que seja Will.
— Que nunca será perfeito.
— A perfeição é monótona — Tessa replicou, e desceu o último degrau para se colocar ao lado dele. — Estão jogando “complete a citação poética”. Você poderia ter dado um show. Acho que ninguém lá dentro é capaz de desafiar seus conhecimentos literários.
— Além de você.
— De fato, seria uma competição difícil. Talvez pudéssemos formar uma equipe e dividir os lucros.
— Não parece uma boa forma — falou Will distraído, inclinando a cabeça para trás. A neve o contornava, como se ele estivesse no fundo de um redemoinho. — Hoje, quando Sophie Ascendeu...
— Sim?
— Não é algo que gostaria? — Ele se virou para olhar para ela, brancos flocos de neve presos nos cílios escuros. — Para você?
— Sabe que é impossível para mim, Will. Sou feiticeira. Ou, pelo menos, é o mais próximo do que sou. Jamais posso ser completamente Nephilim.
— Eu sei. — Ele olhou para as mãos, abrindo os dedos para deixar os flocos se ajustarem, derretendo, sob suas palmas. — Mas em Cadair Idris você disse que torcia para ser Caçadora de Sombras, que Mortmain havia destruído suas esperanças...
— Na época, era verdade — admitiu ela. — Mas quando me tornei Ithuriel, quando me Transformei e destruí Mortmain, como pude odiar algo que me permitiu proteger as pessoas que amo? Não é fácil ser diferente, muito menos ser única. Mas começo a achar que nunca poderia ter tido um caminho fácil.
Will riu.
— Um caminho fácil? Não, não para você, minha Tessa.
— Sou sua Tessa? — Ela apertou o xale, fingindo que o tremor era por causa do frio. — Você se incomoda pelo que sou, Will? Por não ser como você?
As palavras se colocaram entre eles, não pronunciadas: não há futuro para um Caçador de Sombras que se envolve com feiticeiros.
Will empalideceu.
— As coisas que eu disse no telhado, há tanto tempo... sabe que não foram sinceras.
— Eu sei...
— Não quero que seja diferente do que é, Tessa. Você é o que é, e eu a amo. Não amo só as partes que estão em conformidade com a Clave...
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Está disposto a suportar o resto?
Ele passou a mão pelo cabelo escuro e molhado.
— Não. Não estou me explicando direito. Não há nada em você que eu possa me imaginar não amando. Realmente acha que é tão importante para mim que seja Nephilim? Minha mãe não é Caçadora de Sombras. E quando a vi se Transformar no anjo, quando a vi arder com o fogo divino, foi glorioso, Tess — ele deu um passo em direção a ela — o que você é, o que consegue fazer, é como um grande milagre, como fogo ou flores ou a expansão do mar. Você é única no mundo, assim como é única em meu coração, e jamais haverá um tempo em que não a amarei. Eu a amaria mesmo que não fosse Caçadora de Sombras...
Ela deu um sorriso trêmulo.
— Mas fico feliz em sê-lo, ainda que só metade — ela falou — pois significa que posso ficar com você, aqui no Instituto. A família que encontrei aqui pode continuar a ser minha família. Charlotte disse que, se eu quisesse, poderia deixar de ser Gray e assumir o nome que deveria ter sido da minha mãe antes de casar. Poderia ser uma Starkweather. Poderia ter um verdadeiro nome de Caçadora de Sombras.
Ela ouviu Will exalar. Soltou uma lufada branca no frio. Os olhos dele estavam azuis, arregalados e claros, fixos em seu rosto. Tinha a expressão de um homem que havia se preparado para fazer algo assustador e estava fazendo.
— Claro que pode ter um verdadeiro nome de Caçadora de Sombras — disse Will — pode ter o meu.
Tessa o encarou, toda em preto e branco, contra o preto e branco da neve e da pedra.
— Seu nome?
Will deu um passo até estarem frente a frente. Em seguida, pegou a mão dela e retirou a luva, que guardou no bolso. Segurou a mão despida de Tessa na dele, curvando os dedos sobre os dela. A mão dele era quente e calejada, e o toque a fez tremer. Seus olhos estavam firmes e azuis; eram tudo que Will era: verdadeiros e ternos, aguçados e inteligentes, amorosos e generosos.
— Case comigo. Case comigo, Tess. Case comigo e seja Tessa Herondale. Ou seja Tessa Gray. Ou o que quiser se chamar, mas case comigo, fique comigo e nunca me deixe, pois não posso suportar viver mais um dia em que você não faça parte da minha vida.
A neve caía em volta deles, branca, fria e perfeita. As nuvens no céu haviam partido, e, pelos buracos, ela via as estrelas.
— Jem me contou o que Ragnor Fell falou sobre meu pai — prosseguiu Will. — Que meu pai só amou uma mulher, e era ela ou nada. Você é isso para mim. Eu te amo e só amarei você até morrer...
— Will!
Ele mordeu o lábio. O cabelo estava cheio de neve, os cílios marcados por flocos.
— Foi uma declaração grandiosa demais? Eu a assustei? Sabe como sou com palavras...
— Ah, eu sei.
— Lembro-me do que me disse uma vez — continuou ele — que as palavras têm o poder de nos transformar. Suas palavras me transformaram, Tess, me fizeram um homem melhor. A vida é um livro, e há mil páginas que ainda não li. Leria com você, quantas pudesse, antes de morrer...
Ela pôs a mão no peito dele, acima do coração, e sentiu a batida na palma, um ritmo único e próprio.
— Só queria que não falasse sobre morrer — disse ela. — Mas mesmo por isso, sim, sei como é com palavras, e, Will... amo todas elas. Cada palavra que diz. As bobas, as loucas, as lindas e as que são só para mim. Amo as palavras e amo você.
Will começou a falar, mas Tessa tapou sua boca com a mão.
— Amo suas palavras, meu Will, mas guarde-as por um instante — disse ela, e sorriu para os olhos dele. — Pense em todas as palavras que guardei dentro de mim por todo esse tempo enquanto não conhecia suas intenções. Quando me procurou na sala de estar e falou que me amava, mandá-lo embora foi a coisa mais difícil que já tive de fazer. Você disse que amava as palavras do meu coração, a forma da minha alma. Eu lembro. Lembro cada palavra que disse daquele dia até hoje. Jamais esquecerei. São tantas que gostaria de dizer a você, e tantas que gostaria de ouvi-lo dizer para mim. Espero que tenhamos todas as nossas vidas para dizê-las um para o outro.
— Então, vai se casar comigo? — Will perguntou espantado, como se não conseguisse acreditar na própria sorte.
— Sim — respondeu, a última, a mais simples e a mais importante de todas as palavras.
E Will, que tinha palavras para todas as ocasiões, abriu e fechou a boca, em silêncio, e, em vez de falar, puxou-a para perto de si. O xale caiu na escada, mas os braços de Will a aqueciam, com a boca quente na dela enquanto ele baixava a cabeça para beijá-la. Tinha gosto de neve e vinho, como inverno e Will em Londres. Tinha a boca suave contra a dela, passava as mãos por seus cabelos, derrubando os enfeites brancos pelos degraus de pedra. Tessa agarrou Will enquanto a neve girava ao redor. Pelas janelas do Instituto, era possível ouvir o singelo som da música tocando no salão: o piano, o violoncelo, e sobressaindo-se, como faíscas saltando para o céu, as notas doces e alegres do violino.

***

— Não acredito que estamos mesmo indo para casa — disse Cecily.
Estava com as mãos fechadas na frente do corpo e saltitava com as botas brancas. Trajava um casaco vermelho de inverno, a coisa mais brilhante do porão escuro, exceto pelo próprio Portal, grande, prateado e brilhante, na parede oposta. Através dele, Tessa viu, como uma imagem em um sonho, o azul do céu (o céu do lado de fora do Instituto era cinzento e londrino) e as colinas cobertas por neve.
Will estava ao seu lado, o ombro esbarrando no dela. Parecia pálido e nervoso, e ela queria segurá-lo pela mão.
— Não estamos indo para casa, Cecy — disse ele. — Não para ficar. Vamos visitar, quero apresentar nossos pais para minha noiva — e com isso a palidez diminuiu, e os lábios se curvaram em um sorriso — para que conheçam a menina com quem vou me casar.
— Ah, que bobagem — disse Cecily. — Podemos utilizar o Portal para vê-los sempre que quisermos! Charlotte é a Consulesa, então não temos como nos encrencar.
Charlotte resmungou.
— Cecily, esta é uma expedição singular. Não é um brinquedo. Não pode simplesmente utilizar o Portal sempre que quiser, e esta excursão deve ser mantida em segredo. Ninguém, além de nós, pode saber que visitaram seus pais, que eu permiti que transgredissem a Lei!
— Não vou contar para ninguém! — protestou Cecily. — Nem Gabriel. — Olhou para o menino ao seu lado. — Não vai, certo?
— Por que vamos levá-lo? — perguntou Will.
Cecily pôs as mãos no quadril.
— Por que vai levar Tessa?
— Porque Tessa e eu vamos nos casar — respondeu ele, e Tessa sorriu; a forma como a irmã caçula de Will conseguia irritá-lo como ninguém ainda a divertia.
— Bem, Gabriel e eu podemos nos casar — disse Cecily. — Um dia.
Gabriel emitiu um ruído engasgado e adquiriu um assustador tom de roxo.
Will jogou as mãos para o alto.
— Não pode se casar, Cecily! Só tem 15 anos! Quando eu me casar, terei 18! Um adulto!
Cecily não pareceu impressionada.
— Podemos ter um noivado longo — ela retrucou — mas não sei por que está me aconselhando a me casar com um homem que meus pais não conhecem!
Will se afobou.
— Não estou aconselhando a se casar com um homem que seus pais não conhecem!
— Então, concordamos. Gabriel precisa conhecer mamãe e papai. — Cecily olhou para Henry. — O Portal já está pronto?
Tessa se inclinou para perto de Will.
— Adoro o jeito como ela lida com você — sussurrou. — É muito divertido.
— Espere até conhecer minha mãe — disse Will, e deu a mão para ela.
Seus dedos estavam frios; o coração devia estar acelerado. Tessa sabia que ele tinha passado a noite em claro. A ideia de ver os pais após tantos anos era tão assustadora quanto emocionante. Sabia que aquela mistura de esperança e medo era infinitamente pior do que apenas uma das emoções.
— O Portal está pronto — disse Henry. — E, lembrem-se, em uma hora eu o abrirei novamente para que retornem por ele.
— Entendam que é só desta vez — afirmou Charlotte ansiosamente — mesmo que eu seja Consulesa, não posso permitir que visitem sua família mundana...
— Nem mesmo no Natal? — perguntou Cecily, com olhos arregalados e trágicos.
Charlotte ficou visivelmente enfraquecida.
— Bem, talvez no Natal...
— E aniversários — completou Tessa — aniversários são especiais.
Charlotte pôs as mãos no rosto.
— Ah, pelo Anjo.
Henry riu e apontou para a porta.
— Passem — disse, e Cecily foi primeiro, desaparecendo pelo Portal como se tivesse entrado em uma cachoeira.
Gabriel foi atrás, depois Will e Tessa, de mãos dadas. Tessa se concentrou no calor da mão de Will, na pulsação do sangue pela pele, enquanto a escuridão fria os conduzia, fazendo-os rodar por instantes intermináveis e irrespiráveis. Luzes explodiram atrás de seus olhos, e ela despertou da escuridão subitamente, piscando e tropeçando. Will segurou-a, impedindo que caísse.
Estavam na entrada ampla e curva da frente do Solar Ravenscar. Tessa só tinha visto o local de cima, quando ela, Jem e Will visitaram Yorkshire juntos, sem perceber que a família de Will agora morava ali. Lembrava-se que o solar ficava em um vale, entre colinas cobertas por vegetação – agora cobertas por uma camada de neve. Naquela vez, as árvores estiveram verdes; agora estavam despidas de folhas, e, no telhado escuro do solar, havia gelo brilhante.
A porta era de carvalho escuro e tinha uma aldrava pesada de bronze no centro. Will olhou para a irmã, que assentiu, e, em seguida, ele esticou os ombros e o braço para bater. A batida pareceu ecoar pelo vale, e Will praguejou baixinho.
Tessa o tocou levemente com a mão.
— Seja corajoso — disse ela. — Não é um pato, é?
Ele virou para sorrir para ela, os cabelos escuros caindo nos olhos, exatamente quando a porta abriu e revelou uma criada vestida de preto com uma touca branca. Ela olhou para o grupo na entrada e arregalou os olhos.
— Srta. Cecily — ela se engasgou, em seguida, direcionou o olhar para Will.
Botou a mão na boca, virou e correu de volta para casa.
— Oh, céus — disse Tessa.
— Causo esse efeito nas mulheres — observou Will — provavelmente deveria ter alertado antes de você concordar em se casar comigo.
— Ainda posso mudar de ideia — comentou Tessa docemente.
— Não ouse... — começou ele, com um riso arfante, e então, de repente, havia pessoas na porta: um homem alto, de ombros largos, cabelos claros com toques grisalhos e olhos azul-claros. Logo atrás, uma mulher: esguia e absurdamente linda, com os cabelos pretos de Will e Cecily e olhos azuis tão escuros quanto violetas. Ela gritou assim que viu Will, e levantou as mãos, balançando-as como passarinhos assustados por uma lufada de vento.
Tessa soltou a mão de Will. Ele parecia congelado, como uma raposa quando os cães de caça estavam por perto.
— Vá — disse Tessa suavemente.
Ele deu um passo à frente, e então sua mãe o abraçou, dizendo:
— Eu sabia que voltaria. Sabia. — E, em seguida, ouviu-se uma enxurrada de palavras em galês, das quais Tessa só conseguiu identificar o nome de Will.
O pai estava espantado, porém sorria, estendendo os braços para Cecily, que correu para ele com uma vontade que Tessa jamais vira.
Pelos próximos instantes, Tessa e Gabriel ficaram na entrada, pouco à vontade, sem olhar um para o outro, mas sem saber ao certo para onde deveriam olhar. Após um longo instante, Will se desvencilhou da mãe, afagando-a suavemente no ombro. Ela riu, apesar de estar com os olhos cheios de lágrimas, e disse algo em galês que Tessa desconfiou fortemente se tratar de um comentário sobre o fato de que Will agora era mais alto do que ela.
— Mãezinha — disse ele afetuosamente, confirmando as suspeitas de Tessa, e se virou exatamente quando os olhos de sua mãe pousaram sobre a jovem, em seguida sobre Gabriel, e se espantaram — mãe e pai, esta é Theresa Gray. Estamos noivos e vamos nos casar no ano que vem.
A mãe de Will engasgou – apesar de ter soado mais como surpresa que qualquer outra coisa, para alívio de Tessa – e o olhar do pai de Will foi imediatamente para Gabriel, depois para Cecily, e ele cerrou os olhos.
— E quem é o cavalheiro?
O sorriso de Will se expandiu.
— Ah, ele — falou — este é... o amigo de Cecily, Sr. Gabriel Lightverme.
Gabriel, no meio do gesto de esticar a mão para cumprimentar o senhor Herondale, congelou horrorizado.
— Lightwood — disparou — Gabriel Lightwood...
— Will! — disse Cecily, afastando-se do pai para olhar para o irmão.
Will olhou para Tessa, com os olhos azuis brilhando. Ela abriu a boca para adverti-lo, para falar Will! como Cecily acabara de fazer, mas era tarde demais: ela já estava rindo.

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