Capítulo 3 - A Hora Final
ão, eu não vou, carniça de consolação, Desespero, banquetear-me contigo;
Não desentrançarei – por mais fracos que estejam – estes restos de um homem
Em mim, nem exaurido gritarei Não posso mais. Posso;
Posso ter esperança e desejar um novo dia, e não querer não ser.
– Gerard Manley Hopkins, Carrion Comfort
Jem estava inclinado contra a carruagem do Instituto, os olhos fechados, o rosto pálido como papel. Will estava ao seu lado, a mão segurando firmemente o ombro de Jem. Tessa sabia quando correu em direção a eles que não era apenas um gesto fraternal. Seu aperto era o mantinha Jem de pé.
Ela e Henry ouviram o grito do verme ao morrer. Gabriel os encontrara, momentos depois, correndo nos degraus da escada. Ele lhes contara sem fôlego da morte da criatura, e depois do que tinha acontecido a Jem, e tudo para Tessa tinha ficado branco, como se ela tivesse sido atingida com força no rosto. Eram palavras que ela não tinha ouvido há muito tempo, mas que sempre esperava, por vezes sonhava, pesadelos que a faziam acordar com falta de ar.
— Jem... desmaiar... respirar... sangue.... Will... Will está com ele... Will...
Claro que Will estava com ele.
Os outros estavam fervilhando. Os Lightwood estavam com sua irmã, e Tatiana ainda estava quieta – ou talvez Tessa simplesmente não pudesse ouvir seus gritos de histeria. Tessa estava ciente de Cecily nas proximidades, bem como Henry, de pé desajeitadamente ao lado dela, como se desejasse confortá-la, mas não sabia como começar.
Os olhos de Will reconheceram Tessa quando ela se aproximou, quase tropeçando novamente em seu vestido rasgado. Por um momento, eles estavam em perfeito entendimento. Jem era o que permitia que os dois ainda pudessem se encarar. Sobre o tema “Jem”, ambos eram ferozes e inflexíveis. Tessa viu a mão de Will apertar a manga de Jem.
— Ela está aqui — ele avisou.
Os olhos de Jem se abriram bem devagar. Tessa lutou para manter o olhar de choque longe do rosto. Suas pupilas estavam dilatadas, sua íris era um fino anel de prata em torno do preto.
— Ni shou shang le ma, quin ai de? — ele sussurrou.
Jem estava ensinando mandarim para Tessa, por insistência dela. Entendeu “quin ai de”, pelo menos, se não o resto. Minha querida. Ela estendeu-lhe a mão e apertou-a.
— Jem...
— “Você está machucada, meu amor?” — Will disse.
Sua voz era tão nivelada quanto seus olhos, e por um momento, o sangue inundou as bochechas de Tessa e ela olhou para suas mãos dadas. Os dedos de Jem estavam mais pálidos que os dela, como a mão de uma boneca de porcelana. Como não percebeu que ele estava tão doente?
— Obrigado pela tradução, Will — ela respondeu, sem desviar o olhar de seu noivo.
Jem e Will estavam salpicados de sangue negro, mas o queixo e garganta de Jem também estavam marcados com manchas de sangue vermelho. Seu próprio sangue.
— Eu não estou ferida — Tessa sussurrou, e então ela pensou: Não, não é bem assim, não completamente. Seja forte para ele. Ela ajeitou os ombros, mantendo seu aperto na mão de Jem.
— Onde está o remédio dele? — Ela exigiu para Will. — Você não pegou antes de sairmos do Instituto?
— Não fale de mim como se eu não estivesse aqui — Jem interviu, mas não havia raiva em sua voz.
Ele virou a cabeça para o lado e murmurou algo para Will, que assentiu e soltou seu ombro. Tessa podia sentir a tensão da postura de Will, equilibrado como um gato, preparado para o caso de o outro garoto escorregar ou cair, mas Jem permaneceu de pé.
— Eu sou mais forte quando Tessa está aqui, você vê. Eu lhe disse — Jem falou, ainda na mesma voz calma.
Com isso, Will abaixou a cabeça para que Tessa não pudesse ver seus olhos.
— Eu vejo. Tessa, não há nenhum de seu remédio aqui. Acredito que ele deixou o Instituto sem tomar o suficiente, embora não vá admitir isso. Volte para o Instituto com ele na carruagem, e tome conta dele – alguém deve....
Jem respirou irregularmente.
— Os outros…
— Vou conduzir para vocês. Será uma pequena viagem; Balios e Xanthos sabem o caminho. Henry pode levar os Lightwood.
Will que foi rápido e eficiente, até rápido e eficiente demais para que pudesse agradecê-lo, mesmo assim não parecia querê-lo. Ajudou Tessa a colocar Jem na carruagem, com muito cuidado para não roçar o ombro dela ou tocar sua mão.
Will saiu para contar aos outros o que ia acontecer. Tessa foi para Henry explicar que ele precisava recolher os livros de registro de Benedict da casa. Depois voltou para a carruagem e fechou a porta, trancando Jem e ela num silêncio bem-vindo.
***
— O que estava dentro da casa? — Jem perguntou enquanto os portões da propriedade dos Lightwood eram abertos. Ele ainda parecia horrível, a cabeça encostada contra as almofadas da carruagem, os olhos semicerrados, as maçãs do rosto brilhando com febre.
— Ouvi Henry falar do escritório de Benedict...
— Ele tinha enlouquecido lá dentro — Tessa respondeu, esfregando as mãos frias dele — nos dias antes de se transformar, quando Gabriel disse que o pai não saía da sala, sua mente deve ter ido embora. Ele rabiscou na parede com o que parecia ser sangue, frases sobre as Peças Infernais. Que não tinham compaixão, que nunca iriam parar de chegar...
— Ele deve ter querido dizer o exército autômato.
— Deve — Tessa estremeceu um pouco e aproximou-se de Jem — acho que foi tolice minha, mas estes dois últimos meses foram tão calmos...
— Você esqueceu Mortmain?
— Não. Nunca esquecerei — ela afastou o olhar para a janela, embora não pudesse ver lá fora, pois tinha fechado as cortinas uma vez que a luz parecia estar machucando os olhos de Jem — esperava, talvez, que ele pudesse ter mudado sua atenção para outro lugar.
— Nós sabemos que ele não fez isso — Jem envolveu os dedos nos dela — a morte de Benedict é uma tragédia, talvez, mas essas rodas foram postas em movimento há muito tempo. Isto não tem nada a ver com você.
— Havia outros itens na biblioteca. Notas e livros de Benedict. Revistas. Henry trará para o Instituto para estudar. Meu nome estava neles — Tessa se conteve. Como podia incomodá-lo com essas coisas quando ele estava tão mal?
Como se Jem estivesse lendo sua mente, seus dedos se moveram para o pulso dela, descansando levemente sobre a veia onde seu coração batia.
— Tessa, é apenas uma crise passageira. Não vai durar. Eu preferiria que você me contasse a verdade, toda a verdade, seja amarga ou assustadora, para que eu possa compartilhá-la com você. Eu nunca deixaria nada de mal te acontecer, nem ninguém no Instituto — ele sorriu — seu coração está acelerando.
A verdade, toda a verdade, seja amarga ou assustadora.
— Eu te amo — ela falou.
Ele a olhou com uma luz no rosto que tornou mais bonito.
— Wo xi wang ni ming tian ke yi jia gei wo.
— Você... — ela arqueou as sobrancelhas — você quer se casar? Mas... mas já estamos noivos. Eu não acho que se pode noivar duplamente.
Ele deu uma risada, que se transformou em uma tosse; todo o corpo de Tessa ficou tenso, mas era uma pequena tosse, e não havia sangue.
— Eu disse que casaria com você amanhã, se eu pudesse.
Tessa fingiu negar com a cabeça.
— Amanhã não é conveniente para mim, senhor.
— Mas você já está devidamente vestida — ele comentou com um sorriso.
Tessa olhou para o dourado em ruínas de seu vestido de casamento.
— Se eu fosse me casar num açougue — ela respondeu — ah, bem, eu não gostava muito desse vestido mesmo. Berrante demais.
— Achei que você estava linda — a voz dele era suave.
Tessa deitou a cabeça no ombro dele.
— Haverá um outro tempo. Outro dia, outro vestido. Um tempo em que você estará bem e tudo estará perfeito.
A voz dele ainda era gentil, mas mostrou um desgaste terrível.
— Não existe nada perfeito, Tessa.
***
Sophie estava de pé na janela de seu pequeno quarto, a cortina puxada, os olhos fixos no pátio.
Fazia horas desde que as charretes chocalharam para longe, e ela foi limpar fora das grades, mas o esfregão e o balde estavam imóveis a seus pés. Ela podia ouvir a voz de Bridget subindo suavemente da cozinha abaixo:
"Earl Richard teve uma filha;
Uma empregada de grande formosura.
Deitou seu amor sobre o doce William,
Apesar de não estar a sua altura.”
Às vezes, quando Bridget estava em um humor particularmente melodioso, Sophie pensava em persegui-la e empurrá-la dentro do forno, como a bruxa de João e Maria. Mas Charlotte certamente não iria aprovar. E Bridget estava cantando sobre amor proibido entre as classes sociais justamente quando Sophie era amaldiçoava-se, segurando com força a cortina de tecido na mão, vendo os olhos cinza-esverdeados em sua mente enquanto se perguntava e preocupava – as coisas dariam certo com Gideon? Ele a machucaria? Poderia brigar com seu pai? Quão terrível seria se...
Os portões do Instituto se abriram e uma carruagem sacudiu para dentro, Will conduzindo-a. Sophie o reconheceu, pois ele estava sem chapéu e seu cabelo preto selvagem voava ao vento. Ele saltou para o chão do assento do motorista e deu a volta para ajudar Tessa a descer do carro. Mesmo desta distância, Sophie podia ver que o vestido de ouro estava em farrapos, e logo em seguida Jem apareceu, apoiando-se pesadamente no ombro de seu parabatai.
Sophie prendeu a respiração. Embora não imaginava-se mais apaixonada por Jem, ainda se importava muito com ele. Era difícil não fazer isso, considerando sua generosidade, doçura e graça. Nunca fizera nada, mas estranhamente gentil ela. Ela ficara aliviada nos últimos meses que ele não tivera nenhum de seus “ataques da doença”, como Charlotte chamava – embora a felicidade não o tivesse curado, ele parecia mais forte, melhor...
O trio desapareceu no interior do Instituto. Cyril aparecera dos estábulos e estava lidando com Balios e Xanthos. Sophie respirou fundo e deixar a cortina cair de sua mão. Charlotte pode precisar dela para ajudar com Jem. Se houvesse alguma coisa que pudesse fazer... Ela se afastou da janela, saiu para o corredor e desceu as estreitas escadas dos criados.
No hall de entrada, reconheceu Tessa, pálida e olhando em volta, hesitando do lado de fora do quarto de Jem. Através da fresta aberta da porta, Sophie podia ver Charlotte curvada sobre Jem, que estava sentado na cama. Will estava inclinado em frente à lareira, os braços cruzada, tensão estampada em cada linha de seu corpo.
Tessa ergueu a cabeça quando viu Sophie, um pouco de cor voltando para seu rosto.
— Sophie — ela chorou baixinho — Sophie, Jem não está bem. Ele teve outro... outro surto de doença.
— Vai ficar tudo bem, senhorita Tessa. Eu o vi muito doente antes, e ele sempre volta através dela, como se atravessa a chuva.
Tessa fechou os olhos. As sombras sob eles eram cinza. Ela não precisava dizer o que ambas estavam pensando: um dia haveria um momento em que ele teria um ataque e não poderia passar através dele.
— Eu deveria ser buscar água quente — Sophie acrescentou — e panos...
— Eu deveria estar buscando essas coisas — Tessa interrompeu — e eu o faria, mas Charlotte diz que devo mudar de roupa, que aquele sangue de demônio pode ser perigoso se ficar muito tempo em contato com a pele. Ela enviou Bridget para buscar panos e cataplasmas, e o Irmão Enoch vai chegar a qualquer momento. E Jem não vai me ouvir de qualquer jeito, mas...
— Isso é o suficiente — Sophie interrompeu com firmeza — a senhorita não fará bem a ele se ficar doente também. Vou ajudá-la a se vestir. Venha, vamos fazê-lo, e rápido.
Os olhos de Tessa se abriram.
— Querido e sensata Sophie. É claro que você está certa.
Ela começou mover-se através do corredor, em direção ao seu quarto. Na porta, ela parou e se virou para olhar para Sophie. Seus grandes olhos cinzentos procuravam rosto da outra garota, e ela parecia acenar para si mesma, como se tivesse aprovado dar um palpite.
— Ele está bem, você sabe. Não se machucou.
— Mestre Jem?
Tessa sacudiu seu cabeça.
— Gideon Lightwood.
Sophie corou.
***
Gabriel não tinha muita certeza do porque estava na sala de estar do Instituto, exceto que seu irmão tinha dito a ele para vir aqui e esperar, e mesmo depois de tudo o que acontecera, ainda estava acostumado a fazer o que Gideon mandava.
Ele ficou surpreso com quão simples o quarto era, nada como os grandes quartos da casa dos Lightwood em Pimlico ou em Chiswick. As paredes eram decoradas com um papel de parede desbotado de rosas damascenas, a superfície da mesa estava com marcas de tinta e abridores de carta, as grades estavam cheias de pó. Acima da lareira pendia um espelho d’água manchado, emoldurado em dourado.
Gabriel olhou para o próprio reflexo. Sua roupa de combate estava rasgada no pescoço, e havia uma marca vermelha em sua mandíbula, onde um longo arranhão estava no processo de cura. Havia sangue em todo o seu uniforme. Seu próprio sangue, ou o do pai?
Ele afastou o pensamento rapidamente. Era estranho, pensou, como ele era o único que se parecia com sua mãe, Barbara. Ela era alta e inclinada para a esbeltez, o cabelo castanho ondulado e os olhos que lembravam o mais puro verde, como a grama que se inclinava em direção ao rio atrás da casa. Gideon parecia seu pai: largo e atarracado, com os olhos mais cinza do que verdes. O que era irônico, porque Gabriel era quem tinha o temperamento inerente ao pai: teimoso, rápido para pegar raiva, lento para se perdoar. Gideon e Barbara eram mais pacíficos, tranquilos e constantes, fiéis em suas crenças. Eles eram muito mais como...
Charlotte Branwell abriu a porta da sala de estar e entrou usando um vestido frouxo, os olhos tão brilhantes quanto os de um pequeno pássaro. Sempre que Gabriel a via, era atingido sobre quão pequena ela era, como ele se elevava sobre ela. O que Cônsul Wayland tinha pensado ao dar a esta pequena criatura o controle do Instituto e de todos os Caçadores de Sombras de Londres?
— Gabriel. — Ela inclinou a cabeça. — Seu irmão diz que não foi ferido.
— Eu estou bem — ele disse brevemente, e imediatamente soube que tinha soado rude. Não tinha a intenção de soar assim. Seu pai enfiara em sua cabeça há anos como Charlotte era inútil e facilmente influenciada, e embora soubesse que seu irmão discordou – discordou o suficiente para vir viver neste lugar e deixar sua família para trás – era uma lição difícil de pôr de lado — pensei que estaria com Carstairs.
— Irmão Enoch chegou, com outro dos Irmãos do Silêncio. Eles nos proibiram de entrar no quarto de Jem. Will está andando no corredor como uma pantera enjaulada. Pobre menino.
Charlotte olhou para Gabriel brevemente e foi se estabelecer próxima a lareira. Seu olhar era de inteligência aguçada, rapidamente mascarado pelo baixar dos seus cílios.
— Mas chega disso. Entendo que sua irmã já foi levada à residência dos Blackthorns em Kensington. Existe alguém que você gostaria que eu enviasse uma mensagem?
— Uma... mensagem?
Ela parou diante da lareira, apertando as mãos atrás das costas.
— Você precisa ir para algum lugar, Gabriel, a menos que queira atravessar as portas e sair para a rua só com cara e coragem.
Sair para a rua? Esta horrível mulher queria realmente expulsá-lo do Instituto? Ele pensou no que seu pai sempre lhe disse: Os Fairchild não se importam com ninguém, só com si mesmos e a Lei.
— Eu... a casa em Pimlico...
— O Cônsul em breve será informado sobre tudo o que aconteceu na casa dos Lightwood — disse Charlotte — as residências de Londres de sua família serão confiscada em nome da Clave, pelo menos até que possam ser examinadas e poder-se determinar que seu pai não deixou nada para trás que poderia fornecer pistas para o Conselho.
— Pistas para o quê?
— Para os planos de seu pai — ela respondeu, sem se intimidar — para sua conexão com o Magistrado, seu conhecimento dos planos dele. Para as Peças Infernais.
— Eu nunca tinha sequer ouvido falar dessas malditas Peças Infernais — Gabriel protestou, e depois corou.
Ele amaldiçoara, e na frente de uma senhora. Não que Charlotte fosse como qualquer outra senhora.
— Eu acredito em você. Não sei no que o Cônsul Wayland acredita, mas são os fatos. Se você me der um endereço...
— Eu não tenho um — Gabriel interrompeu, em desespero — para onde você acha que eu poderia ir?
Ela apenas olhou para ele, uma sobrancelha erguida.
— Eu quero ficar com o meu irmão — ele disse finalmente, consciente de que parecia petulante e zangado, mas não tinha certeza do que fazer sobre isso.
— Mas o seu irmão vive aqui. E você deixou sua opinião sobre o Instituto e a minha pretensão bem claros. Jem me disse que você acredita que meu pai levou seu tio ao suicídio. Não é verdade, você sabe, mas não espero que acredite em mim. Isso me faz perguntar, no entanto, por que você gostaria de permanecer aqui.
— O Instituto é um refúgio.
— Era o plano de seu pai torná-lo um refúgio?
— Eu não sei! Eu não sei quais eram os planos do meu pai, o que eram!
— Então por que você permaneceu com ele? — a voz dela era calma, mas implacável.
— Porque ele era meu pai! — Gabriel gritou.
Ele girou para longe de Charlotte, sua respiração se tornando irregular em sua garganta. Sem consciência do que estava fazendo, ele passou os braços em torno de si, abraçando seu próprio corpo apertado, como se pudesse evitar que ele se desfizesse.
Memórias das últimas semanas, memórias que Gabriel estava fazendo o seu melhor para pressionar de volta para os recessos de sua mente, ameaçaram explodir para a luz: a semana na casa depois que os servos foram mandados embora, ouvindo os ruídos vindo do quarto no andar de cima, gritos na noite, sangue nas escadas pela manhã, o pai gritando por trás da porta trancada da biblioteca, como se não pudesse mais formular palavras...
— Se você vai me expulsar para a rua — disse Gabriel, com uma espécie de terrível desespero — faça-o agora. Eu não quero pensar que tenho uma casa quando não tenho. Não quero pensar que vou ver meu irmão novamente se eu não vou.
— Você acha que ele não iria atrás de você? Encontrá-lo onde quer que fosse?
— Acho que ele provou que se importa com todos — disse Gabriel — e isso não me inclui — ele se endireitou lentamente, perdendo o controle sobre si mesmo — mande-me embora ou me deixe ficar. Eu não vou implorar.
Charlotte suspirou.
— Você não vai ter que fazer isso. Eu nunca antes mandei embora alguém que não tinha outro lugar para ir, e não vou começar agora. Só vou avisar uma coisa. Permitir que alguém more no Instituto, bem no coração da Enclave, é colocar minha confiança em suas boas intenções. Não me faça me arrepender de ter confiado em você, Gabriel Lightwood.
***
As sombras aumentaram na biblioteca. Tessa sentou-se em uma piscina de luz perto de uma janela, ao lado de uma lâmpada azul. Um livro esteve aberto em seu colo por várias horas, mas ela não fora capaz de se concentrar em lê-lo. Seus olhos escorregavam sobre as palavras nas páginas sem absorvê-las, e que muitas vezes se encontrava tentando lembrar quem era um personagem, ou por que estavam fazendo aquelas ações. Estava no iniciando o capítulo cinco – mais uma vez – quando o ranger do piso a alertou. Ela olhou para cima e encontrou Will de pé diante dela, os cabelos úmidos, as luvas nas mãos.
— Will — Tessa colocou o livro no parapeito ao lado dela — você me assustou.
— Eu não queria interromper — disse ele em voz baixa — se você está lendo...
Ele começou a se afastar.
— Eu não estou — ela falou, e ele parou e olhou de volta para ela por cima do ombro — não consigo me perder em palavras agora. Não posso acalmar a distração da minha mente.
— Nem eu — ele concordou, voltando-se totalmente agora.
Já não estava mais salpicado de sangue. Suas roupas estavam limpas, e a pele estava quase sem marcas. Podia ver as linhas rosadas de escoriações no pescoço, desaparecendo sob o colarinho da camisa, a iratze fazendo seu trabalho de cura.
— Há notícias do meu... há notícia de Jem?
— Não há nenhuma mudança — ele respondeu, embora Tessa não tivesse imaginado o contrário. Se houvesse uma mudança, Will não estaria aqui.
— Os Irmãos ainda não vão deixar ninguém entrar no quarto, nem mesmo Charlotte. E por que você está aqui? — Ele continuou. — Sentada no escuro?
— Benedict escreveu na parede de seu escritório — ela disse em voz baixa — antes de se transformar naquela criatura, imagino, ou quando estava acontecendo. Eu não sei. “As Peças Infernais não têm compaixão. As Peças Infernais não têm remorso. As Peças Infernais não têm limitações. As Peças Infernais nunca vão parar de chegar.”
— As peças infernais? Presumo que signifique as criaturas mecânicas de Mortmain. Não que temos visto algum deles por meses.
— Isso não significa que eles não voltarão — Tessa replicou.
Ela olhou para a mesa da biblioteca, seu verniz arranhado. Quantas vezes Will e Jem devem ter sentado ali juntos, estudando, esculpindo suas iniciais na superfície da mesa, como entediados estudantes fazem.
— Eu sou um perigo para vocês aqui.
— Tessa, nós conversamos sobre isso antes. Você não é o perigo. Você é a coisa Mortmain quer, sim, mas se não estivesse aqui e protegida, ele poderia tê-la facilmente, e como iria se aproveitar dos seus poderes? Nós não sabemos... somente que ele te quer para alguma coisa, e é nossa vantagem mantê-la longe dele. Não é altruísmo. Nós, os Caçadores de Sombras não somos altruístas.
Ela ergueu os olhos com a última frase.
— Acho que você é muito altruísta — ao seu ruído de desacordo, ela continuou — certamente você deve saber que é exemplar. Há um frio da Clave, é verdade. Somos poeira e sombras. Mas você é como os heróis da antiga mitologia, como Aquiles e Jasão.
— Aquiles foi assassinado com uma seta envenenada e Jasão morreu sozinho, morto por seu próprio navio apodrecendo. Esse é o destino dos heróis; o Anjo sabe por que alguém iria querer ser um.
Tessa observou-o. Havia sombras sob os seus olhos azuis, ela percebeu, e seus dedos torciam o tecido de seu punho com preocupação, sem pensar, como se ele não estivesse consciente de que estava fazendo isso. Meses, ela pensou. Meses desde que esteve a sós por mais do que um momento com Will. Eles tinham encontros acidentais nos corredores, no pátio, trocando gentilezas desajeitadamente. Ela perdeu suas piadas, os livros que ele lhe emprestara, os flashes de riso em seu olhar. Presa na memória de um Will anterior, ela falou sem pensar:
— Eu não consigo parar de recordar algo que você me disse uma vez — ela comentou.
Ele olhou para ela com surpresa.
— Mesmo? E o que é isso?
— Que às vezes, quando você não sabe o que fazer, finge que é um personagem de um livro, porque é mais fácil decidir o eles fariam.
— Eu finjo — disse Will — talvez, mas não é o melhor conselho para alguém se você está procurando a felicidade.
— Não a felicidade. Não exatamente. Quero ajudar... fazer o bem... — ela parou de falar e suspirou — e eu me virei para muitos livros, mas se há orientação neles, eu não encontrei. Você disse que estava Sydney Carton...
Will fez um som e afundou-se numa cadeira do lado oposto ao dela. Seus cílios foram baixaram, ocultando sua olhos.
— E acho que eu sei o que faz o resto de nós — ela continuou — mas eu não quero ser Lucie Manette, pois ela não fez nada para salvar Charles, ela deixou Sydney fazer tudo. E ela foi cruel com ele.
— Com Charles? — Will perguntou.
— Com Sydney. Ele queria ser um homem melhor, mas ela não o ajudou.
— Ela não podia. Ela estava noiva de Charles Darnay.
— Ainda assim, não foi gentil.
Will se levantou de sua cadeira tão rapidamente quanto havia se jogado nela. Ele se inclinou para frente, com as mãos sobre a mesa. Seus olhos eram muito azuis na luz azul da lâmpada.
— Às vezes, é preciso escolher entre ser gentil ou honrado — disse ele — na maioria das vezes, não é possível ser ambos.
— Qual é o melhor? — Tessa sussurrou.
A boca de Will se torceu com humor amargo.
— Eu acho que depende do livro.
Tessa esticou a cabeça para trás para olhar ele.
— Sabe aquela sensação quando você está lendo um livro e sabe que vai ser uma tragédia, pode sentir o frio e a escuridão que vem, ver o ciclo se fechando em torno dos personagens que vivem e respiram nas páginas? Mas você está tão ligado à história como se estivesse sendo arrastado na traseira de uma carruagem, e não pode deixar de seguir ou desviar o curso de lado — os olhos azuis dele estavam escuros com compreensão, ele entendia, e Tessa apressou-se — eu sinto agora como se o mesmo estivesse acontecendo, só que não com os personagens em um livro, mas comigo própria, meus queridos amigos e companheiros. Eu não quero sentar-me enquanto a tragédia vem para nós. Quero desviá-la, me esforço para descobrir como isso pode ser feito.
— Você teme por Jem — disse Will.
— Sim. E temo por você, também.
— Não — Will respondeu com a voz rouca — não desperdice isto em mim, Tess.
Antes que ela pudesse responder, a porta da biblioteca se abriu. Era Charlotte, parecendo drenada e exausta. Will virou-se para ela rapidamente.
— Como está Jem?
— Acordado e conversando — Charlotte respondeu — ele teve um pouco de yin fen, e os Irmãos do Silêncio foram capazes de deixar sua condição estável, e parar a hemorragia interna.
À menção de hemorragia interna, Will parecia estar prestes a vomitar; Tessa imaginou se parecia do mesmo jeito.
— Ele pode ter um visitante — Charlotte continuou — na verdade, ele requisitou.
Will e Tessa trocaram um olhar rápido. Tessa sabia que ambos estavam pensando: qual deles deve ser o visitante? Tessa era a noiva de Jem, mas Will era seu parabatai, que era sagrado em si.
Will começou a recuar, quando Charlotte falou novamente, parecendo cansada até os ossos:
— Ele chamou você, Will.
Will olhou assustado. Ele lançou um olhar para Tessa.
— Eu...
Tessa não pôde evitar a pequena explosão de surpresa e ciúmes que surgiu em seu coração com as palavras de Charlotte, mas ela empurrou-a para longe impiedosamente. Ela amava Jem o suficiente para querer o que ele queria, e ele sempre teve seus motivos.
— Você vai — ela disse suavemente — claro que ele gostaria de vê-lo.
Will começou a se mover em direção a porta para acompanhar Charlotte. No meio do caminho, ele voltou e atravessou a sala até Tessa.
— Tessa, enquanto estou com Jem, você faria uma coisa para mim?
Tessa olhou para cima e engoliu em seco. Ele estava muito perto, muito, muito perto: todas as linhas, formas e ângulos de Will encheram seu campo de visão como o som de sua voz encheu seus ouvidos.
— Sim, certamente — ela respondeu — o que é?
***
Para: Edmund e Linette Herondale
Ravenscar Manor
West Riding, Yorkshire
Cecily tirou a ponta da caneta das linhas que tinha escrito, em seguida, amassou o papel com uma mão e baixou a cabeça sobre a mesa.
Ela tinha começado esta carta tantas vezes, e ainda tinha que chegar a uma versão satisfatória. Talvez não devesse estar tentando agora, ela pensou, não quando ainda estava tentando acalmar os nervos, uma vez que acabara de chegar ao Instituto.
Todos estavam preocupados com Jem, e Will, depois que a verificou suas lesões no jardim, quase não falara com ela novamente. Henry tinha ido correndo para Charlotte, Gideon tinha chamado Gabriel de lado, e Cecily se viu a subir as escadas do Instituto sozinha. Ela entrou em seu quarto, não se incomodando em trocar de roupa, e se encolheu na cama de dossel macio.
Tinha ficado entre as sombras, ouvindo os sons fracos de Londres lá fora, e seu coração se apertou com uma súbita e dolorosa saudade. Ela pensou nas colinas verdes de Gales, em sua mãe e seu pai, e pulara da cama como se tivesse sido empurrada, tropeçando até a mesa e pegando caneta e papel, a tinta manchando seus dedos em sua pressa. E ainda assim as palavras certas não vinham. Sentia-se sangrando lamento e solidão de seus poros, e ainda assim não consegui moldar os sentimentos de modo que seus pais conseguissem ler.
Naquele momento, houve uma batida na porta. Cecily pegou um livro que havia deixado descansando sobre a mesa, apoiou-a como se estivesse lendo, e falou:
— Entre.
A porta se abriu. Era Tessa, permanecendo hesitante na porta. Ela não estava mais usando seu vestido de casamento destruído, mas um simples vestido de musselina azul e dois colares brilhantes em sua garganta: o anjo mecânico e o pingente de jade que tinha sido seu presente nupcial de Jem.
Cecily olhou Tessa com curiosidade. Embora as duas meninas fossem simpáticas uma com a outra, elas não eram próximas. Tessa tinha uma certa desconfiança em torno dela que Cecily suspeitava nunca poder ultrapassar, e havia algo enigmático e estranho sobre ela. Cecily sabia que ela podia mudar de forma, poderia Transformar-se em qualquer pessoa, e não conseguia evitar de pensar nela como anormal. Como você poderia conhecer o verdadeiro rosto de alguém que pode mudá-lo tão facilmente como se muda um vestido?
— Sim? — disse Cecily. — Senhorita Gray?
— Por favor, me chame Tessa — pediu a outra menina, fechando a porta atrás de si.
Não era a primeira vez que ela pedia a Cecily para chamá-la por seu nome de batismo, mas o hábito e a teimosia impediam Cecily de fazê-lo.
— Eu vim para ver se você estava bem e se precisava de qualquer coisa.
— Ah — Cecily sentiu uma ligeira pontada de desanimação — estou muito bem.
Tessa avançou ligeiramente.
— Isso é Grandes Esperanças?
— Sim.
Cecily não falou que tinha visto Will lê-lo e escolhera o livro para tentar entender mais sobre o que irmão estava pensando. Até agora ela estava lamentavelmente perdida. Pip era mórbido, e Estella tão horrível que Cecily queria sacudi-la.
— “Estella” — Tessa disse suavemente — “até a última hora da minha vida, tu hás de ser uma parte do meu caráter, do pouco que há de bom em mim, e do que há de mau.”
— Então você memoriza passagens de livros, como Will? Ou esse é o seu favorito?
— Eu não tenho a memória de Will — Tessa respondeu, se aproximando ligeiramente — ou sua runa mnemosyne. Mas eu amo esse livro — seus olhos cinzentos procuraram o rosto de Cecily — por que você ainda está em seu equipamento de luta?
— Eu estava pensando em ir até a sala de treinamento. Acho que posso pensar melhor lá, e não é como se alguém pensasse sobre o que eu faço.
— Mais treinamento? Cecily, você acabou de sair em uma batalha! — Tessa protestou. — Eu sei que às vezes pode precisar de várias aplicações de runas para curar totalmente – antes de começar um treinamento novamente... eu deveria chamar alguém para você: Charlotte, ou...
— Ou Will? — Cecily estalou. — Se qualquer um se importasse, já teria vindo.
Tessa parou ao lado da cama.
— Você não pode achar que ele não se preocupa com você.
— Ele não está aqui, não é?
— Ele me enviou — Tessa respondeu — porque ele está com Jem — ela terminou, como se isso explicasse tudo.
Cecily supôs que de alguma maneira, deveria explicar. Ela sabia que Will e Jem eram amigos íntimos, mas também eram mais do que isso. Ela lera sobre parabatai no Códex, e sabia que a ligação era uma que não existia entre os mundanos, algo mais próximo do que irmãos e melhor do que sangue.
— Jem é o seu parabatai. Ele fez uma promessa para estar lá em momentos como este.
— Ele estaria lá, com voto ou sem. Ele estaria lá para qualquer um de vocês. Mas ele não se preocupa o bastante para passar por aqui e ver se eu precisava de outra iratze.
— Cecy... — começou Tessa — a maldição de Will...
— Não foi uma maldição real
— Você sabe — Tessa disse, pensativa — de certa forma, foi. Ele acreditava que ninguém poderia amá-lo, que se permitisse isso, iria resultar na sua morte. Por isso deixou todos vocês. Ele te deixou para mantê-la segura, e você está aqui agora, a própria definição, para ele, de perigoso. Ele não pode suportar vir e olhar para seus ferimentos, pois para ele é como se ele próprio os tivesse colocado.
— Eu escolhi isso. Ser uma Caçadora de Sombras. E não só porque eu queria estar com Will.
— Eu sei disso. Mas eu também sentei com Will enquanto ele estava delirando por causa do sangue de vampiro, sufocando com água-benta, e sei que nome ele chamou. Foi o seu.
Cecily olhou com surpresa.
— Will chamou por mim?
— Oh, sim — um pequeno sorriso tocou o canto da boca de Tessa — ele não quis me dizer quem você era, é claro, quando lhe perguntei, e ele me deixou meio louca... — ela parou de falar, e desviou o olhar.
— Por quê?
— Curiosidade — Tessa respondeu com um encolher de ombros, embora suas maçãs do rosto estivessem coradas — o meu maior pecado que nos assedia. Em qualquer caso, ele te ama. Sei que com Will tudo é complicado e nada fez sentido, mas o fato de que ele não está aqui é apenas mais uma prova para mim de quão preciosa você é para ele. Ele se afasta de todos que ama, e quanto mais ele te ama, mais violentamente tenta não demonstrar isso.
— Mas não há nenhuma maldição...
— Os hábitos de anos não são tão esquecidos rapidamente — Tessa falou, e seus olhos estavam tristes — não cometa o erro de acreditar que ele não te ama porque ele não demonstra, Cecily. Confronte-o se for preciso e exija a verdade, mas não cometa o erro de se afastar porque acredita que é uma causa perdida. Não expulse-o de seu coração. Porque, se fizer isso, irá se arrepender.
***
Para: Membros do Conselho
De: Cônsul Josias Wayland
Perdoe a demora na minha resposta, senhores. Eu queria ter certeza de que não estava lhes dando a minha opinião em qualquer espírito de pressa precipitada, mas agora as minhas palavras são sólidas e resultados do paciente pensamento fundamentado.
Temo que não concorde com a escolha de Charlotte Branwell como minha sucessora. Embora possua um bom coração, ela é demasiadamente volúvel, emocional, apaixonado e desobediente para ter o cargo de um Cônsul. Como sabemos, o sexo frágil tem suas fraquezas que os homens não possuem, e infelizmente, ela é presa a todos eles. Não, eu não posso recomendá-la. Sugiro que considerem outra pessoa – o meu sobrinho, George Penhallow, que completará vinte e cinco neste novembro e é um bom Caçador de Sombras e um jovem íntegro. Acredito que ele tem a certeza moral e força de caráter para levar os Caçadores de Sombras em uma nova década.
Em nome de Raziel,
Cônsul Josias Wayland
Comentários
Postar um comentário
Nada de spoilers! :)