Capítulo 5 - O Códex dos Caçadores de Sombras

Os sonhos são verdadeiros enquanto duram, e não vivemos nos sonhos?
– Alfred, Lord Tennyson, O panteísmo superior

Levou uma era vagando mal-humorada de corredor a corredor antes de Tessa, por pura sorte, reconhecer um rasgo em mais uma das infinitas tapeçarias e percebeu que a porta do seu quarto devia ser uma das que se alinhavam naquela entrada particular. Alguns minutos de tentativa e erro mais tarde, e ela estava gratamente fechando a porta correta atrás dela e deslizando o ferrolho na fechadura.
No momento em que estava de volta em sua camisola e deslizara sob as cobertas, ela abriu o Códex dos Caçadores de Sombras e começou a ler. Você nunca irá nos entender lendo um livro, Will tinha dito, mas esse não era realmente o ponto. Ele não sabia o que livros significavam para ela, que livros eram símbolos de verdade e sentido, que este reconhecia que ela existia e que havia outros como ela no mundo. Segurá-lo em suas mãos fez Tessa sentir que tudo o que havia acontecido com ela nas últimas seis semanas, fora real – mais real até mesmo do que ter vivido isso.
Tessa aprendeu do Códex que todos os Caçadores de Sombras descendiam de um arcanjo chamado Raziel, que tinha dado ao primeiro deles um volume chamado Livro Cinza, cheio com “a língua do Paraíso” – as marcas rúnicas pretas que cobriam a pele dos Caçadores de Sombras treinados como Charlotte e Will. As marcas eram feitas em suas peles com uma ferramenta parecida com um estilete chamada estela – o objeto estranho parecido com uma caneta que ela tinha visto Will usar para desenhar na porta da Casa Sombria. As marcas proviam aos Nephilins todo tipo de proteção: cura, força e velocidade sobre-humana, visão noturna, e até mesmo os permitia se esconderem dos olhos mundanos com runas. Mas elas não eram um presente que qualquer um poderia usar. Fazer marcas na pele de um Ser do Submundo ou humano – ou mesmo de um Caçador de Sombras que fosse muito jovem ou impropriamente treinado – seria torturantemente doloroso e resultaria em loucura ou morte.
As marcas não eram a única forma com que eles se protegiam – eles usavam vestimentas de couro resistentes e encantadas quando iam para uma batalha. Havia desenhos de homens no equipamento de diferentes países. Para a surpresa de Tessa, havia também desenhos de mulheres em longas camisas e calças – não calçolas, tais como o tipo que ela tinha visto ser ridicularizado nos jornais, mas calças de homens de verdade. Virando a página, ela balançou a cabeça, imaginando se Charlotte e Jessamine realmente usavam tais trajes estranhos.
As páginas seguintes eram dedicadas aos outros presentes que Raziel tinha dado aos primeiros Caçadores de Sombras – poderosos objetos mágicos chamados Instrumentos Mortais – e um país de origem: um pequeno pedaço de terra retirado do que era então o Sacro Império Romano, rodeado com barreiras de modo que os mundanos não pudessem entrar. Era chamado Idris.
A lâmpada piscou fracamente enquanto Tessa lia, suas pálpebras se fechando cada vez mais. Seres do Submundo, ela leu, eram criaturas sobrenaturais, como fadas, lobisomens, vampiros e feiticeiros. No caso dos vampiros e lobisomens, eles eram seres humanos infectados com uma doença demoníaca. Fadas, por outro lado, eram meio-demônios e meio-anjos e, portanto, possuíam uma grande beleza e uma natureza maligna. Mas feiticeiros – feiticeiros eram os descendentes diretos de humanos e demônios.
Não era surpresa que Charlotte tinha perguntado se ambos os seus pais eram humanos. Mas eles eram, ela pensou, então não é possível eu ser uma bruxa, graças a Deus. Ela olhou fixamente para uma ilustração que mostrava um homem alto com cabelo bagunçado, de pé no centro de um pentagrama riscado em um chão de pedra. Ele parecia completamente normal, exceto pelo fato de que tinha os olhos com pupilas estendidas como as de um gato. Velas queimavam em cada uma das cinco pontas da estrela. As chamas pareciam deslizar em conjunto, borrando enquanto a própria visão de Tessa borrava em exaustão. Ela fechou seus olhos – e instantaneamente estava sonhando.
No sonho, ela dançava em meio a fumaça girando por um corredor forrado de espelhos, e cada espelho que passava lhe mostrava um rosto diferente. Ela podia ouvir uma música encantadora, perturbadora. Parecia vir de certa distância, e ainda assim estava por toda parte. Havia um homem caminhando a sua frente – um rapaz, na verdade, esbelto e sem barba – mas mesmo ela sentindo que o conhecia, não podia ver seu rosto ou reconhecê-lo. Ele poderia ter sido seu irmão, ou Will, ou alguém completamente diferente. Ela seguiu, chamando-o, mas ele regrediu pelo corredor, como se a fumaça o levasse com ela. A música ergueu-se e ergueu-se em um crescendo...
E Tessa acordou, respirando com dificuldade, o livro caindo de seu colo quando ela sentou. O sonho havia ido, mas a música continuava, alta, assombrosa e doce. Ela caminhou até a porta e espiou o corredor.
A música estava mais alta no corredor. De fato, estava vindo do quarto do outro lado. A porta estava suavemente entreaberta, e as notas pareciam fluir pela abertura como água através do estreito gargalo de uma jarra.
Um roupão estava pendurado em um gancho ao lado da porta; Tessa o pegou e colocou-o por cima de sua roupa de dormir, saindo para o corredor. Como num sonho, ela atravessou o corredor e colocou a mão suavemente na porta; ela se abriu sob o seu toque.
Dentro, o cômodo estava escuro, iluminado apenas pelo luar. Ela viu que não era diferente de seu próprio quarto, a mesma grande cama de dossel, a mesma mobília escura pesada. As cortinas tinham sido abertas em uma janela alta, e luz prateada pálida fluía para o quarto como uma chuva de agulhas. No trecho quadrado de luar na frente da janela, alguém estava de pé. Um garoto – ele parecia pequeno demais para ser um homem adulto – com um violino encostado no ombro. Seu rosto descansava contra o instrumento, e o arco movia-se para frente e para trás sobre as cordas, tirando notas delas, notas mais bonitas e perfeitas que qualquer coisa que Tessa tinha ouvido.
Os olhos dele estavam fechados.
— Will? — ele disse, sem abrir os olhos ou deixar de tocar. — Will, é você?
Tessa não disse nada. Ela não conseguia suportar falar, interromper a música – mas em um momento o garoto parou por si só, baixando o seu arco e abrindo os olhos com uma careta.
— Will... — ele começou e, em seguida, vendo Tessa, seus lábios se separaram em surpresa — você não é Will.
Ele suava curioso, mas não incomodado, apesar do fato de que Tessa tinha invadido seu quarto no meio da noite e o surpreendido tocando violino de pijama, ou o que Tessa assumiu ser pijama. Ele usava um conjunto leve e folgado de calças e uma camisa sem gola, um roupão preto de seda amarrado frouxamente sobre elas. Ela tinha razão. Ele era jovem, provavelmente a mesma idade de Will, e a impressão de juventude era intensificada pela sua magreza. Ele era alto, mas muito esguio, e desaparecendo abaixo do colarinho da camisa, podia-se ver as bordas onduladas das marcas pretas que já vira na pele de Will e de Charlotte.
Sabia como eram chamadas agora. Marcas. E sabia o que elas o faziam. Nephilim. O descendente de homens e anjos. Não admirava que ao luar sua pele pálida parecesse brilhar como a pedra enfeitiçada de Will. Seus cabelos eram uma prata pálida, também, assim como seus olhos angulares.
— Sinto muito — disse ela, limpando a garganta.
O barulho lhe parecia terrivelmente áspero e alto no silêncio da sala; ela queria se encolher.
— E-eu não queria entrar aqui dessa forma. É... meu quarto fica do outro lado do corredor, e...
— Está tudo bem — ele abaixou o violino do ombro — você é a Srta. Gray, não é? A menina trocadora de forma. Will me contou um pouco sobre você.
— Oh — disse Tessa.
— Oh? — As sobrancelhas do menino levantaram-se. — Você não soa contente por eu saber quem você é.
— É que eu acho que Will está bravo comigo — explicou Tessa — então seja o que for o que ele te disse...
Ele riu.
— Will está zangado com todos. Não deixo isso interferir em meu julgamento.
Luar refletiu da superfície polida do violino do garoto quando ele se virou para colocá-lo em cima do guarda-roupa, o arco ao lado. Quando ele se virou de volta, estava sorrindo.
— Eu deveria ter me apresentado antes. Sou James Carstairs. Por favor, me chame de Jem – todos chamam.
— Oh, você é Jem. Você não estava no jantar — Tessa lembrou — Charlotte disse que você estava doente. Está se sentindo melhor?
Ele encolheu os ombros.
— Eu estava cansado, isso é tudo.
— Bem, imagino que deve ser cansativo, fazer tudo que vocês fazem — tendo lido o Códex, Tessa sentiu-se queimando com perguntas sobre os Caçadores de Sombras — Will disse que você veio de muito longe para viver aqui... você estava em Idris?
Ele ergueu suas sobrancelhas.
— Você sabe sobre Idris?
— Ou você veio de outro Instituto? Eles são todos em grandes cidades, não são? E por que para Londres...
Ele a interrompeu, estupefato.
— Você faz um monte de perguntas, não é?
— Meu irmão sempre diz que curiosidade é o pecado que me aflige.
— Dos pecados que existem, esse não é o pior deles — ele sentou no baú ao pé da cama, e fitou-a com uma curiosa gravidade — então vá em frente; pergunte-me tudo que quiser. Eu não consigo dormir de qualquer forma, e distrações são bem-vindas.
Imediatamente a voz de Will aumentou no fundo da cabeça de Tessa. Os pais de Jem tinham sido mortos por demônios. Mas eu não posso perguntar a ele sobre isso, Tessa pensou. Em vez disso, ela falou:
— Will me disse que você veio de muito longe. Onde você morava antes?
— Xangai. Você sabe onde é?
— China — Tessa respondeu com alguma indignação — todo mundo não sabe disso?
Jem sorriu.
— Você ficaria surpresa.
— O que você estava fazendo na China? — Tessa perguntou, com interesse sincero.
Ela não conseguia retratar muito bem o lugar de que Jem vinha. Quando pensava na China, tudo o que vinha à mente era Marco Polo e chá. Ela tinha a sensação de que era muito, muito longe, como se Jem tivesse vindo dos confins da terra – a leste do sol e oeste da lua, Tia Harriet teria dito.
— Pensei que ninguém ia lá, além de missionários e marinheiros.
— Caçadores de Sombras vivem em todo o mundo. Minha mãe era chinesa; meu pai era britânico. Eles se conheceram em Londres e mudaram-se para Xangai, quando foi oferecido a ele o cargo de administração do Instituto de lá.
Tessa ficou surpresa. Se a mãe de Jem tinha sido chinesa, então ele também era, não era? Ela sabia que havia imigrantes chineses em Nova York – a maioria trabalhava em lavanderias ou vendia charutos enrolados à mão em carrinhos na rua. Ela nunca tinha visto um deles que parecesse nem de perto como Jem, com seus estranhos cabelos e olhos prateados. Talvez tivesse algo a ver com ele ser um Caçador de Sombras? Mas ela não conseguia pensar em uma maneira de perguntar que não parecesse terrivelmente rude.
Felizmente, Jem não parecia estar esperando por ela para continuar a conversa.
— Peço desculpas pela pergunta, mas... seus pais estão mortos, não estão?
— Will te disse isso?
— Ele não precisou. Nós órfãos aprendemos a reconhecer um ao outro. Se eu puder perguntar... você era muito jovem quando aconteceu?
— Eu tinha três anos quando eles morreram em um acidente de carruagem. Eu mal me lembro deles — apenas em pequenos flashes: o cheiro da fumaça do tabaco, ou o lilás pálido do vestido da minha mãe — minha tia me criou. E a meu irmão, Nathaniel. Minha tia, porém...
Com isso, para sua surpresa, sua garganta começou a apertar. Uma imagem vívida de Tia Harriet lhe veio à cabeça, deitada na estreita cama de latão em seu quarto, os olhos brilhantes de febre. Não reconhecendo Tessa no final e chamando-a pelo nome de sua mãe, Elizabeth.
Tia Harriet foi a única mãe que Tessa realmente conheceu. Tessa tinha segurado sua mão fina enquanto ela morria, lá no quarto com o sacerdote. Ela lembrou-se de pensar que agora realmente estava sozinha.
— Ela morreu recentemente. Pegou uma febre inesperada. Ela nunca foi muito forte.
— Sinto muito em ouvir isso — Jem disse, e ele realmente parecia lamentar.
— Foi terrível, porque o meu irmão já tinha partido naquele momento. Ele havia partido para a Inglaterra um mês antes. Até nos mandou presentes – chá da Fortnum e Mason, e chocolates. E então titia ficou doente e morreu, e eu escrevi a ele vezes e mais vezes, mas as minhas cartas voltavam. Eu estava desesperada. E então chegou a passagem. Uma passagem para um navio a vapor para Southampton, e uma nota de Nate dizendo que ele iria me encontrar no cais, que eu devia ir morar com ele em Londres agora que titia tinha partido. Exceto que agora acho que ele jamais escreveu aquela nota... — Tessa parou, os olhos ardendo — sinto muito. Estou devaneando. Você não precisa ouvir tudo isso.
— Que tipo de homem é seu irmão? Como ele é?
Tessa olhou para Jem com uma pequena surpresa. Os outros tinham perguntado a ela o que ele poderia ter feito para se meter em sua situação atual, se ela sabia onde as Irmãs Sombrias poderiam estar mantendo-o, se ele tinha o mesmo poder que ela. Mas ninguém havia perguntado como ele era.
— Titia costumava dizer que ele era um sonhador. Ele sempre viveu em seu mundo. Nunca se importou com como as coisas eram, apenas como iriam ser, algum dia, quando ele tivesse tudo o que queria. Quando nós tivéssemos tudo que queríamos — ela se corrigiu — ele costumava apostar, acho que porque não conseguia imaginar perder – isso não fazia parte dos seus sonhos.
— Os sonhos podem ser coisas perigosas.
— Não... não — ela balançou a cabeça — eu não estou dizendo isso direito. Ele era um irmão maravilhoso. Ele...
Charlotte estava certa; era mais fácil conter as lágrimas se ela encontrasse alguma coisa, algum objeto, para fixar seu olhar. Ela olhou para as mãos de Jem. Elas eram finas e longas, e tinha o mesmo desenho na parte de trás de sua mão que Will, o olho aberto. Ela apontou para a tatuagem.
— O que isso faz?
Jem pareceu não notar que ela tinha mudado de assunto.
— É uma marca. Você sabe o que são elas? — Ele estendeu a mão para ela, a palma para baixo. — Essa aqui é a Vidência. Limpa a nossa Visão. Nos ajuda a ver o Submundo.
Ele virou a mão e puxou a manga de sua camisa. Ao longo do interior pálido de seu punho e braço estavam mais das marcas, muito pretas contra sua pele branca. Elas pareciam se entremear com o padrão de suas veias, como se o seu sangue corresse pelas marcas, também.
— Para rapidez, visão noturna, poder angelical, curar rapidamente — ele leu em voz alta — apesar de seus nomes serem mais complexos do que isso, e não em inglês.
— Elas doem?
— Doeram quando eu as recebi. Não doem nada agora — ele puxou a manga da camisa para baixo e sorriu para ela — agora, não me diga que essas são todas as perguntas que você tem.
Oh, eu tenho mais do que você pensa.
— Por que você não consegue dormir?
Ela viu que o tinha pegado desprevenido; um olhar de hesitação brilhou em seu rosto antes que ele falasse. Mas por que hesitar? ela pensou. Ele sempre poderia mentir, ou, simplesmente desviar, como Will teria feito. Mas Jem, ela sentiu instintivamente, não iria mentir.
— Eu tenho sonhos ruins.
— Eu estava sonhando também — ela contou — sonhei com a sua música.
Ele sorriu.
— Foi um pesadelo, então?
— Não. Foi encantador. A coisa mais linda que eu ouvi desde que cheguei a esta cidade horrível.
— Londres não é horrível — Jem disse bem-humorado — você simplesmente tem que conhecê-la. Precisa vir comigo para um passeio por Londres um dia. Posso mostrar-lhe as partes que são lindas – que eu amo.
— Cantando os louvores da nossa bela cidade? — uma voz leve perguntou.
Tessa se virou e viu Will, encostado à moldura da porta. A luz do corredor atrás dele delineava seu cabelo de aparência úmida com ouro. A bainha do seu casaco escuro e suas botas negras estavam cercadas com lama, como se ele tivesse acabado de chegar de fora, e suas bochechas estavam coradas. Ele estava sem chapéu, como sempre.
— Nós tratamos você bem aqui, não tratamos, James? Duvido que eu teria esse tipo de sorte em Xangai. Do que vocês nos chamam lá mesmo?
— Yang guizi — Jem respondeu prontamente, e aparentava não estar surpreso pela súbita aparição de Will — “diabos estrangeiros”.
— Ouviu isso, Tessa? Eu sou um diabo. Você também — Will desatrelou-se da porta e perambulou para o quarto.
Ele atirou-se na beira da cama, desabotoando seu casaco. Ele tinha uma capa ligada a ele, muito elegante, forrada de seda azul.
— Seu cabelo está molhado — Jem observou — onde você estava?
— Aqui, ali e em toda parte — Will sorriu.
Apesar de sua graça habitual, havia algo sobre a maneira como ele se movia – o rubor em seu rosto e o brilho em seus olhos...
— Cozido como uma coruja, não é? — Jem perguntou, com afeto.
Ah, Tessa pensou. Ele está bêbado. Ela tinha visto seu próprio irmão sob a influência de álcool vezes suficientes para reconhecer os sintomas. De alguma forma, ela se sentiu vagamente desapontada.
Jem sorriu.
— Onde você esteve? O dragão azulA sereia?
— A taverna do diabo, se você quer saber — Will suspirou e encostou-se a um dos postes da cama — eu tinha tantos planos para esta noite. A busca da embriaguez cega e mulheres da vida eram meus objetivos. Mas, infelizmente, não era para ser. Mal eu tinha consumido minha terceira bebida no Diabo quando fui abordado por uma pequena criança encantadora vendendo flores, que me pediu duas moedas por uma margarida. O preço parecia exorbitante, então eu recusei. Quando disse isso à garota, ela começou a me assaltar.
— Uma menininha te roubou? — Tessa perguntou.
— Na verdade, ela não era uma menininha no fim das contas, mas um anão em um vestido com um pendor para a violência, que atende pelo nome de Nigel Seis Dedos.
— Erro fácil de cometer — Jem comentou.
— Eu o peguei no ato de deslizar a mão no meu bolso — Will disse, gesticulando animadamente com suas esbeltas mãos com cicatrizes — não podia deixar que isso procedesse, naturalmente. A briga começou quase que imediatamente. Eu tinha a vantagem até que Nigel pulou no bar e me atingiu por trás com um jarro de gim.
— Ah. Isso explica porque seu cabelo está molhado — Jem observou.
— Foi uma luta justa. Mas o proprietário do Diabo não viu isso dessa forma. Jogou-me para fora. Eu não posso voltar por uma quinzena.
— A melhor coisa para você — Jem replicou sem compaixão — fico feliz em ouvir que são negócios como de costume, então. Fiquei preocupado por um momento que você tivesse voltado para casa mais cedo para ver se eu estava me sentindo melhor.
— Você parece estar se virando perfeitamente bem sem mim. Na verdade, vejo que você conheceu nossa misteriosa trocadora de forma residente — Will falou, olhando para Tessa. Foi a primeira vez que ele reconheceu a presença dela desde que apareceu na porta — você normalmente aparece em quartos de cavalheiros no meio da noite? Se eu soubesse disso, teria feito campanha mais árdua para ter certeza de que Charlotte a deixasse ficar.
— Não vejo como isso é do seu interesse — Tessa respondeu — especialmente já que você me abandonou no corredor e me deixou para encontrar o caminho de volta para o meu quarto.
— E você encontrou o caminho para o quarto de Jem ao invés disso?
— Foi o violino — Jem explicou — ela me ouviu praticando.
— Ruído terrivelmente lamentoso, não é? — Will perguntou a Tessa. — Não sei como todos os gatos da vizinhança não saem correndo toda vez que ele toca.
— Achei que foi bonito.
— Isso porque era — Jem concordou.
Will apontou um dedo acusador na direção deles.
— Vocês estão se juntando contra mim. É assim que será a partir de agora? Eu serei o estranho de fora? Querido Deus, terei que me tornar amigo de Jessamine.
— Jessamine não te suporta — Jem apontou.
— Henry, então.
— Henry irá te atear fogo.
— Thomas — Will sugeriu.
— Thomas... — Jem começou, e se dobrou, de repente atormentado com um ataque de tosse explosivo tão violento que ele escorregou do baú para agachar-se sobre os joelhos.
Muito chocada para se mover, Tessa só pôde olhar enquanto Will – sua embriaguez intensa desaparecendo em uma fração de segundo – pulou da cama e ajoelhou-se ao lado de Jem, colocando a mão em seu ombro.
— James — ele chamou suavemente — onde está?
Jem levantou uma mão para repeli-lo. Suspiros torturantes sacudiam seu corpo magro.
— Eu não preciso... estou bem...
Ele tossiu novamente e um fino borrifo de vermelho se espalhou no chão na frente dele. Sangue.
A mão de Will apertou o ombro de seu amigo; Tessa viu as articulações ficarem brancas.
— Onde está? Onde você colocou?
Jem acenou debilmente para a cama.
— Em cima... — ele suspirou. — Em cima da cornija... na caixa... a prateada...
— Eu vou buscá-la, então — Will foi gentil de um modo que Tessa nunca ouvira Will antes — fique aqui.
— Como se eu fosse a qualquer lugar — Jem esfregou o dorso da mão na boca, a marca do olho aberto voltou com listras vermelhas.
Levantando-se, Will virou e viu Tessa. Por um momento ele pareceu puramente surpreso, como se tivesse esquecido de que ela estava lá.
— Will — ela sussurrou — existe alguma coisa...
— Venha comigo — pegando-a pelo braço, Will a direcionou, gentilmente, em direção à porta aberta. Ele empurrou-a para o corredor, movendo-se para bloquear sua visão do quarto — boa noite, Tessa.
— Mas ele está tossindo sangue — Tessa protestou em voz baixa — talvez eu devesse buscar Charlotte...
— Não.
Will olhou por cima do ombro, então de volta para Tessa. Ele se inclinou em direção a ela, sua mão no ombro dela. Ela podia sentir cada um dos seus dedos pressionando sua pele. Eles estavam próximos o suficiente para que ela pudesse sentir o ar noturno em sua pele, o cheiro de metal, fumaça e neblina. Algo sobre o jeito que ele cheirava era estranho, mas ela não podia apontar exatamente o que.
Will falou em voz baixa.
— Ele tem remédio. Irei dá-lo. Não há necessidade de Charlotte saber sobre isso.
— Mas se ele está doente...
— Por favor, Tessa — havia uma urgência suplicante nos olhos azuis de Will — seria melhor se você não dissesse nada sobre isso.
De alguma forma, Tessa percebeu que não podia dizer não.
— Eu... tudo bem.
— Obrigado.
Will soltou o ombro dela e ergueu a mão para tocar seu rosto tão levemente que ela pensou que poderia quase ter imaginado isso. Muito surpresa para dizer qualquer coisa, permaneceu em silêncio enquanto ele fechava a porta entre eles. Enquanto ouvia a tranca deslizar, ela percebeu por que havia pensado que algo estava estranho quando Will tinha se inclinado em sua direção.
Apesar de Will ter dito que tinha estado fora a noite toda bebendo – apesar de ele até mesmo alegar ter tido um jarro de gim arrebentado sobre a cabeça – não havia nenhum cheiro de álcool nele.



Demorou um longo tempo antes de Tessa conseguir dormir de novo. Ela estava deitada, o Códex aberto ao seu lado, o anjo mecânico tiquetaqueando em seu peito, enquanto assistia a luz do lampião traçar padrões pelo teto.



Tessa estava de pé olhando para si mesma no espelho sobre a penteadeira enquanto Sophie abotoava os botões na parte de trás do vestido. Na luz da manhã que corria pelas janelas altas, ela parecia muito pálida, as sombras cinza sob seus olhos destacando-se em manchas.
Ela nunca tinha sido alguém que olhasse fixamente os espelhos. Uma rápida olhada para ver que seu cabelo estava bem e que não havia manchas nas roupas. Agora, ela não conseguia parar de olhar para aquele reflexo de rosto fino e pálido. Parecia ondular enquanto ela olhava, como um reflexo visto na água, a vibração que a tomava um pouco antes da transformação. Agora que ela tinha usado outros rostos, visto através de outros olhos, como ela poderia alguma vez dizer que qualquer rosto era realmente seu, mesmo que fosse o rosto que ela tinha ganhado ao nascer? Quando ela se transformava de volta para si mesma, como poderia saber que não houve nenhuma ligeira mudança em seu próprio ser, algo que a mudaria? Ou será que importava com o que ela se parecia no fim das contas? Seria o seu rosto nada além de uma máscara de carne, irrelevante para o seu verdadeiro eu?
Ela podia ver Sophie refletida no espelho também; seu rosto estava virado de tal forma que sua bochecha desfigurada estava para o espelho. Parecia ainda mais terrível na luz do dia. Era como ver uma pintura encantadora cortada em tiras com uma faca. Tessa se coçava para perguntar a ela que tinha acontecido, mas sabia que não devia. Em vez disso ela disse:
— Sou muito grata por me ajudar com o vestido.
— Grata de estar ao serviço, senhorita — o tom de Sophie era contínuo.
— Eu só queria perguntar... — Tessa começou.
Sophie enrijeceu. Ela pensa que eu irei lhe perguntar sobre seu rosto, pensou Tessa.
— O jeito que você falou com Will no corredor na noite passada...
Sophie riu. Foi uma risada curta, mas genuína.
— Estou autorizada a falar com o Sr. Herondale como eu preferir, sempre que preferir. É uma das condições do meu emprego.
— Charlotte permite que você faça suas próprias condições?
— Não é simplesmente qualquer pessoa que pode trabalhar no Instituto — explicou Sophie — você precisa ter um toque da Visão. Agatha tem, e também Thomas. A Sra. Branwell quis-me logo quando soube que eu tinha, disse que estava procurando uma criada para a Srta. Jessamine por eras. Ela me avisou sobre o Sr. Herondale, disse que ele provavelmente seria rude comigo, e familiar. Falou que eu poderia ser rude de volta, que ninguém se importaria.
— Alguém deve ser rude com ele. Ele é rude o suficiente com todo mundo.
— Tenho certeza de que é o que a Sra. Branwell pensa.
Sophie compartilhou um sorriso com Tessa no espelho; ela era absolutamente linda quando sorria, pensou Tessa, com cicatriz ou sem.
— Você gosta de Charlotte, não é? — ela perguntou. — Ela realmente parece muito amável.
Sophie deu de ombros.
— Na antiga casa em que eu estava de serviço, a Sra. Atkins – esta era a governanta – mantinha o controle de cada vela que utilizávamos, cada pedaço de sabão que pegávamos. Tínhamos que usar o sabão até a lasca antes que ela nos desse um novo pedaço. Mas a Sra. Branwell me dá sabão novo sempre que eu quiser — ela falou com a voz firme como se fosse um testemunho do caráter de Charlotte.
— Imagino que eles têm muito dinheiro aqui no Instituto — Tessa pensou nas lindas mobílias e na grandeza do lugar.
— Talvez. Mas eu reformei vestidos suficientes para a Sra. Branwell para saber que ela não os compra novos.
Tessa pensou no vestido azul que Jessamine usara para jantar na noite anterior.
— E a Srta. Lovelace?
— Ela tem seu próprio dinheiro — Sophie respondeu sombriamente. Ela afastou-se de Tessa — pronto. Você está apta a ser vista agora.
Tessa sorriu.
— Obrigada, Sophie.



Quando Tessa entrou na sala de jantar, os outros já estavam no meio do café da manhã – Charlotte em um vestido cinza claro simples, espalhando geleia em um pedaço de torrada; Henry meio escondido atrás de um jornal; e Jessamine pegando delicadamente uma tigela de mingau. Will tinha um monte de ovos e bacon em seu prato e estava escavando-os ativamente, o que Tessa não pôde deixar de notar que era incomum para alguém que dizia ter saído para beber a noite toda.
— Estávamos falando sobre você — Jessamine falou assim que Tessa encontrou um assento. Ela empurrou um porta-torrada de prata sobre a mesa para Tessa. — Torrada?
Tessa, pegando seu garfo, olhou ao redor da mesa ansiosamente.
— O que sobre mim?
— O que fazer com você, é claro. Seres do Submundo não podem viver no Instituto para sempre — disse Will — eu digo para a vendermos aos Ciganos em Hampstead Heath — acrescentou, voltando-se para Charlotte — ouvi dizer que eles compram as mulheres extras assim como cavalos.
— Will, pare com isso — Charlotte levantou os olhos do seu café da manhã — isso é ridículo.
Will se recostou na cadeira.
— Você está certa. Eles nunca iriam comprá-la. Muito magricela.
— Já chega — disse Charlotte — a Srta. Gray permanecerá. Se não por qualquer outra razão, que seja por estarmos no meio de uma investigação que requer a ajuda dela. Eu já enviei uma mensagem à Clave dizendo-lhes que estamos mantendo-a aqui até que esta questão do Clube Pandemônio seja esclarecida, e seu irmão encontrado. Não está certo, Henry?
— Muito — respondeu Henry, abaixando o jornal — o assunto do Pandemônio é uma prioridade. Absolutamente.
— É melhor você dizer a Benedict Lightwood, também — Will apontou — sabe como ele é.
Charlotte empalideceu ligeiramente, e Tessa se perguntou quem Benedict Lightwood poderia ser.
— Will, hoje eu gostaria que você revistasse a casa das Irmãs Sombrias. Etá abandonado agora, mas ainda vale a pena uma última procura. E quero que leve Jem com você...
Com isso, a diversão deixou expressão de Will.
— Ele está bem o suficiente?
— Ele está absolutamente bem.
A voz não era de Charlotte. Era de Jem.
Ele tinha entrado na sala em silêncio e estava junto ao aparador, os braços cruzados sobre o peito. Ele estava muito menos pálido do que na noite anterior, e o colete vermelho que usava trazia um leve toque de cor ao rosto.
— Na verdade, ele está pronto quando você quiser.
— Você deveria tomar algum café da manhã primeiro — Charlotte apontou, empurrando o prato de bacon em sua direção.
Jem sentou e sorriu para Tessa do outro lado da mesa.
— Oh, Jem, esta é a Srta. Gray. Ela é...
— Nós nos conhecemos — Jem disse calmamente, e Tessa sentiu uma onda de calor em seu rosto.
Ela não pôde deixar olhá-lo quando ele pegou um pedaço de pão e colocou manteiga sobre ele. Parecia difícil de imaginar que alguém de aparência tão etérea pudesse comer torradas.
Charlotte pareceu intrigada.
— Vocês se conheceram?
— Encontrei Tessa no corredor na noite passada e me apresentei. Acho que devo ter dado a ela um susto — seus olhos prata encontraram os de Tessa no outro lado da mesa, cintilantes com divertimento.
Charlotte deu de ombros.
— Muito bem, então. Eu gostaria que você fosse com Will. Enquanto isso, hoje, Srta. Gray...
— Chame-me de Tessa. Eu preferiria que todos chamassem.
— Muito bem, Tessa — disse Charlotte, com um pequeno sorriso — Henry e eu estaremos fazendo uma visita ao Sr. Axel Mortmain, o empregador de seu irmão, para ver se ele, ou qualquer de seus empregados, pode ter qualquer informação sobre o paradeiro de seu irmão.
— Obrigada.
Tessa ficou surpresa. Eles disseram que iriam procurar seu irmão, e estavam realmente fazendo isso. Ela não esperava que o fizessem.
— Já ouvi falar de Axel Mortmain — Jem se pronunciou — ele era um taipan, um dos chefes de grandes empresas em Xangai. Sua empresa tinha escritórios no Bund.
— Sim — Charlotte concordou — os jornais dizem que ele fez sua fortuna com a importação de seda e chá.
— Bah — Jem falou despreocupadamente, mas havia uma oscilação em sua voz — ele fez sua fortuna com o ópio. Todos eles fizeram. Comprando ópio na Índia, navegando para Cantão, negociando-o por posses.
— Ele não estava violando a lei, James — Charlotte empurrou o jornal sobre a mesa em direção a Jessamine — enquanto isso, Jessie, talvez você e Tessa possam vasculhar o jornal e anotar tudo o que possa dizer respeito ao inquérito, ou que valha a pena uma segunda olhada...
Jessamine recuou do papel como se fosse uma cobra.
— Uma dama não lê o jornal. A coluna social, talvez, ou as notícias do teatro. Não esta sujeira.
— Mas você não é uma dama, Jessamine... — Charlotte começou.
— Meu Deus — disse Will — tão duras verdades no início da manhã não podem ser boas para a digestão.
— O que eu quero dizer — disse Charlotte, corrigindo-se — é que você é uma Caçadora das Sombras em primeiro lugar, e uma dama em segundo.
— Fale por si mesma — Jessamine replicou, empurrando sua cadeira para trás. Suas bochechas tinham virado um tom alarmante de vermelho — sabe, eu não esperava que você percebesse, mas parece claro que a única coisa que Tessa tem para usar é este meu horrível e velho vestido vermelho, e ele não cabe nela. Nem sequer me serve mais, e ela é mais alta do que eu.
— Será que Sophie não pode... — Charlotte começou vagamente.
— Você pode diminuir um vestido. É outra coisa torná-lo duas vezes maior do que ele era no início. Realmente, Charlotte — Jessamine bufou em exasperação — acho que você deveria me deixar levar a pobre Tessa à cidade para pegar algumas roupas novas. Caso contrário, a primeira vez que ela respirar fundo, esse vestido irá rasgar.
Will pareceu interessado.
— Eu acho que ela deveria tentar isso agora e ver o que acontece.
— Oh — disse Tessa, completamente confusa.
Por que Jessamine estava sendo tão gentil com ela de repente, quando ela tinha sido tão desagradável apenas um dia antes?
— Não, realmente não é necessário...
— É sim — Jessamine disse com firmeza.
Charlotte estava sacudindo a cabeça.
— Jessamine, enquanto você viver no Instituto, você é uma de nós, e tem que contribuir...
— Você é quem insiste que temos de admitir os Seres do Submundo que estão em apuros, alimentá-los e protegê-los — Jessamine falou — estou certa que isso inclui vesti-los também. Vê, eu estarei contribuindo – para a manutenção de Tessa.
Henry se inclinou sobre a mesa em direção a sua esposa.
— É melhor deixá-la fazer isso — aconselhou ele — lembra-se da última vez que tentou fazê-la arrumar as adagas na sala de armas, e ela as usou para cortar todos os lençóis?
— Nós precisávamos de novos lençóis — Jessamine rebateu, ousada.
— Ah, tudo bem — Charlotte estourou — honestamente, às vezes eu me desanimo com o conjunto de vocês.
— O que eu fiz? — Jem perguntou. — Acabei de chegar.
Charlotte colocou seu rosto nas mãos. Enquanto Henry começou a bater em seus ombros e fazer barulhos calmantes, Will inclinou-se na frente de Tessa até Jem, ignorando-a completamente enquanto o fazia.
— Devemos sair agora?
— Eu preciso terminar meu chá primeiro — Jem respondeu — de qualquer forma, não vejo por que você está tão excitado. Você não disse que o local tinha sido usado como um bordel por eras?
— Quero estar de volta antes do anoitecer — Will respondeu. Ele estava inclinado quase no colo de Tessa, e ela podia sentir o leve aroma de garoto, de couro e metal que parecia unir-se a seu cabelo e pele — tenho um encontro marcado em Soho esta noite, com um certo alguém atraente.
— Meu Deus — Tessa falou para a nuca dele — se você continuar vendo Nigel Seis Dedos desta forma, ele vai esperar que você declare as suas intenções.
Jem se engasgou com o chá.



Passar o dia com Jessamine começou tão mal quanto Tessa temia. O trânsito estava terrível. Não importa quão lotada Nova York pudesse ser, Tessa nunca tinha visto nada parecido com a bagunça emaranhada da Rua Strand ao meio-dia. Carruagens rodavam lado a lado com carrinhos de fruteiros empilhados com frutas e legumes; mulheres com xales e carregando cestos rasos cheios de flores mergulhavam loucamente para dentro e fora do trânsito enquanto tentavam mostrar aos ocupantes dos vários veículos as suas mercadorias; e táxis paravam no meio do trânsito para que os motoristas pudessem gritar um com o outro pelas janelas. Esse ruído adicionado ao já impressionante barulho – vendedores ambulantes gritando “sorvete de baunilha, uma moeda a bola,” meninos vendedores de jornal gritando a manchete mais recente do dia, e alguém em algum lugar tocando um realejo. Tessa se perguntou como todos que viviam e trabalhavam em Londres não eram surdos.
Enquanto ela olhava pela janela, uma mulher velha carregando uma grande gaiola de metal cheia de pássaros coloridos esvoaçantes saiu ao lado de sua carruagem. A velha virou a cabeça e Tessa viu que sua pele era verde como as penas de um papagaio, seus olhos arregalados e completamente negros como os de um pássaro, o cabelo dela um choque de penas multicoloridas. Tessa se retraiu, e Jessamine, seguindo o seu olhar, franziu o cenho.
— Feche as cortinas — ela pediu — isto mantém a poeira para fora.
E, esticando a mão na frente de Tessa, Jessamine fez exatamente isso.
Tessa olhou para ela. A pequena boca de Jessamine estava definida em uma linha fina.
— Você viu...? — Tessa começou.
— Não — Jessamine interrompeu, atirando a Tessa, segundo os romances que ela lera, um olhar “de matar”. Tessa olhou rapidamente para longe.
As coisas não melhoraram quando elas finalmente chegaram ao elegante West End. Deixando Thomas pacientemente esperando com os cavalos, Jessamine arrastou Tessa para dentro e para fora de vários salões de costureiras, olhando para croqui após croqui, assistindo enquanto a assistente mais bonita da loja era escolhida para modelar de exemplo. (Nenhuma verdadeira dama iria deixar um vestido que poderia ter sido usado por uma estranha tocar sua pele.) Em cada estabelecimento ela deu um nome falso diferente e uma história diferente; em cada estabelecimento as proprietárias pareciam encantadas com sua beleza e óbvia riqueza e não conseguiam ajudá-la com rapidez suficiente. Tessa, ignorada na maior parte, se escondia nas laterais, meio-morta de tédio.
Em uma loja, posando como uma jovem viúva, Jessamine até mesmo analisou o design de um vestido preto de luto de crepe e renda. Tessa tinha que admitir que ele teria realçado bem sua palidez loira.
— Você ficaria absolutamente linda neste, e não poderia deixar de fazer um novo casamento vantajoso — a costureira piscou de forma conspiratória — na verdade, sabe do que chamamos este desenho? A Armadilha Recolocada.
Jessamine riu, a costureira sorriu claramente e Tessa considerou correr para a rua e acabar com tudo lançando-se embaixo de uma charrete. Como se consciente de seu aborrecimento, Jessamine olhou para ela com um sorriso condescendente.
— Eu também estou procurando alguns vestidos para a minha prima da América. As roupas de lá são simplesmente horríveis. Ela é reta como um alfinete, o que não ajuda, mas eu tenho certeza de que você pode fazer algo com ela.
A costureira piscou como se esta fosse a primeira vez que tinha notado Tessa, e talvez fosse.
— Gostaria de escolher um desenho, minha senhora?
O turbilhão de atividade seguinte foi uma espécie de revelação para Tessa. Em Nova York, suas roupas haviam sido compradas por sua tia – peças prontas que tinham que ser alteradas para servir, e sempre material barato em tons monótonos de cinza escuro ou azul marinho. Ela nunca havia aprendido, como estava fazendo agora, que azul era uma cor que combinava com ela e destacava-lhe os olhos azul-acinzentados, ou que ela devia vestir rosa para colocar cor em suas bochechas. Enquanto suas medidas eram tomadas em meio a um borrão de discussão de vestidos princesa, corpetes couraça, e alguém chamado Sr. Charles Worth, Tessa levantou-se e olhou para seu rosto no espelho, meio-esperando suas feições para dar um passo em falso e mudarem, reformando-se. Mas ela permaneceu ela mesma, e ao final de tudo ela tinha quatro vestidos novos para serem entregues no final da semana – um rosa, um amarelo, um listrado azul e branco com botões de marfim e um de seda dourada e preta – bem como dois casacos da moda, um com tule frisado adornando os punhos.
— Suspeito que você pode realmente parecer bonita nessa última roupa — disse Jessamine enquanto elas subiam de volta para dentro da charrete — é incrível o que a moda pode fazer.
Tessa contou silenciosamente até dez antes de responder.
— Estou muito grata por tudo, Jessamine. Vamos voltar para o Instituto agora?
Com isso, o brilho saiu do rosto de Jessamine. Ela realmente odeia o lugar, Tessa pensou, intrigada mais do que com qualquer outra coisa. O que era tão terrível sobre o Instituto? É claro que toda a sua razão de existir era peculiar, certamente, mas Jessamine tinha que estar acostumada a isso agora. Ela era uma Caçadora das Sombras como o resto.
— Está um dia tão bonito — Jessamine falou — e você quase não viu nada de Londres. Acho que um passeio no Hyde Park seria bom. E depois disso, nós poderíamos ir para a Gunter e fazer Thomas pegar alguns sorvetes para nós!
Tessa olhou para fora da janela. O céu estava nublado e cinzento, atravessado por linhas de azul onde as nuvens se afastavam momentaneamente uma da outra. De nenhuma forma aquele seria considerado um dia lindo em Nova York, mas Londres parecia ter diferentes padrões de clima. Além disso, ela devia algo a Jessamine agora, e a última coisa no mundo que a outra menina queria fazer, evidentemente, era ir para casa.
— Eu adoro parques — Tessa concordou.
Jessamine quase sorriu.



— Você não contou a Srta. Gray sobre as engrenagens — disse Henry.
Charlotte retirou o olhar de suas anotações e suspirou. Sempre tinha sido um ponto sensível para ela que, não importasse quantas vezes ela tinha solicitado uma segunda, a Clave permitia ao Instituto somente uma carruagem. Era uma boa carruagem – um coche de cidade – e Thomas era um excelente motorista. Mas significava que quando os Caçadores de Sombras do Instituto seguiam caminhos separados, como eles estavam fazendo hoje, Charlotte era forçada a pedir emprestada uma carruagem de Benedict Lightwood, que estava longe de ser sua pessoa favorita. E a única carruagem que ele estava disposto a lhe emprestar era pequena e desconfortável. Pobre Henry, que era tão alto, que estava batendo a cabeça contra o teto baixo.
— Não. A pobre moça já parecia tão atordoada. Eu não poderia dizer-lhe que os dispositivos mecânicos que encontramos no porão tinham sido fabricados pela empresa que empregou o irmão dela. Ela está tão preocupada com ele. Pareceu-me mais do que ela seria capaz de suportar.
— Pode não significar nada, querida — Henry lembrou — a Companhia Mortmain manufatura a maior parte das ferramentas de maquinário utilizadas na Inglaterra. Mortmain é realmente algo como um gênio. Seu sistema patenteado para a produção de rolamentos de esferas...
— Sim, sim — Charlotte tentou manter a impaciência fora de sua voz — e talvez devêssemos ter dito a ela. Mas achei melhor falarmos com o Sr. Mortmain primeiro e recolher as impressões que pudermos. Você está correto. Ele pode não saber de nada, e pode haver pouca conexão. Mas seria muita coincidência, Henry. E sou muito cautelosa sobre coincidências.
Ela olhou de volta para as notas que tinha feito sobre Axel Mortmain. Ele era filho único (e provavelmente, apesar de as notas não especificarem, ilegítimo) do Dr. Hollingworth Mortmain, que em poucos anos havia subido de humilde cirurgião naval em um navio mercante com destino à China para um rico negociante, comprando e vendendo especiarias e açúcar, seda e chá, e – isso não foi declarado, mas Charlotte estava de acordo com Jem sobre a questão – provavelmente ópio. Quando o Dr. Mortmain morreu, seu filho, Axel, de apenas 20 anos de idade, herdou sua fortuna, que ele prontamente investiu na construção de uma frota de navios mais rápidos e menores do que quaisquer outros que operam no mar. Dentro de uma década, o jovem Mortmain dobrou, e então quadruplicou, as riquezas de seu pai.
Em anos mais recentes, ele se retirara de Xangai para Londres, vendera seus navios comerciais e usara o dinheiro para comprar uma grande empresa que produzia os dispositivos mecânicos necessários para fazer relógios, tudo desde relógios de bolso até relógios antigos. Ele era um homem muito rico.
A carruagem estacionou na frente de uma das muitas casas brancas enfileiradas com terraços, cada uma com amplas janelas com vista para a praça. Henry se inclinou para fora da carruagem e leu o número de uma placa de bronze afixada à coluna do portão da frente.
— Deve ser esta.
Ele alcançou a porta da carruagem.
— Henry — Charlotte chamou, colocando a mão em seu braço — Henry, mantenha em mente o que falamos esta manhã, tudo bem?
Ele sorriu com tristeza.
— Farei o meu melhor para não envergonhá-la ou atrapalhar nas investigações. Sinceramente, às vezes me pergunto por que você me traz junto para essas coisas. Sabe que eu sou um trapalhão quando se trata de pessoas.
— Você não é um trapalhão, Henry — Charlotte disse gentilmente.
Ela ansiava por estender a mão e afagar seu rosto, empurrar seu cabelo para trás e tranquilizá-lo. Mas se segurou. Ela sabia – tinha sido avisada vezes o suficiente – que não devia forçar em Henry a afeição que ele provavelmente não queria.
Deixando a charrete com o motorista dos Lightwoods, eles subiram as escadas e tocaram a campainha. A porta foi aberta por um criado vestindo um uniforme azul escuro e uma expressão severa.
— Bom dia — ele cumprimentou bruscamente — posso perguntar-lhes quanto aos seus negócios aqui?
Charlotte olhou de soslaio para Henry, que estava olhando para além do criado com uma espécie de expressão sonhadora. Deus sabia em que sua mente estava – engrenagens, mecanismos e engenhocas, sem dúvida – mas certamente não na situação atual deles. Com um suspiro interno, ela disse:
— Sou a Sra. Gray, e este é meu marido, Sr. Henry Gray. Estamos em busca de um primo nosso – um jovem chamado Nathaniel Gray. Nós não temos notícias dele há quase seis semanas. Ele é, ou era, um dos empregados do Sr. Mortmain...
Por um momento – que poderia ter sido sua imaginação – ela pensou ter visto algo, uma centelha de inquietação nos olhos do criado.
— O Sr. Mortmain possui uma empresa bastante grande. Você não pode esperar que ele saiba o paradeiro de todos os que trabalham para ele. Seria impossível. Talvez você devesse perguntar à polícia.
Charlotte estreitou os olhos. Antes de deixarem o Instituto, ela havia traçado o interior dos seus braços com as runas da persuasão. Era raro um mundano que fosse totalmente insensível à sua influência.
— Nós fomos, mas eles não parecem ter progredido nada com o caso. É tão terrível, e nós estamos tão preocupados com Nate, você vê. Se pudéssemos ver o Sr. Mortmain por um momento...
Ela relaxou assim que o criado balançou a cabeça lentamente.
— Informarei o Sr. Mortmain de sua visita — ele falou, recuando para permitir que eles entrassem — por favor, aguardem na saleta.
Ele parecia assustado, como se surpreendido com sua própria aquiescência. Abriu a porta e Charlotte seguiu-o, Henry atrás dela.
Embora o criado tenha falhado em oferecer a Charlotte um assento – uma falha de polidez que ela atribuiu a confusão provocada pelas runas da persuasão – ele havia pegado o casaco e chapéu de Henry, e o xale de Charlotte, antes de deixar os dois a olhar com curiosidade em torno da porta de entrada.
A sala tinha teto alto, mas não ornamentado. Também estavam ausentes as paisagens pastorais e retratos de família esperados. Em vez disso, penduradas no teto estavam longas faixas de seda pintadas com os caracteres chineses para boa sorte, um prato indiano de prata apoiado em um canto, e esboços de papel e tinta de marcos famosos revestiam as paredes. Charlotte reconheceu o Monte Kilimanjaro, as pirâmides do Egito, o Taj Mahal, e uma seção da Grande Muralha da China. Mortmain era claramente um homem que viajava muito e estava orgulhoso do fato.
Charlotte virou para olhar Henry e ver se ele estava observando o mesmo que ela, mas seu marido estava olhando vagamente em direção as escadas, perdido em sua própria mente novamente. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, o criado se materializou novamente, um sorriso agradável no rosto.
— Por favor, venham por aqui.
Henry e Charlotte seguiram o criado para o final do corredor, onde ele abriu uma porta de carvalho polido e conduziu-os a sua frente.
Eles se encontraram em um grande escritório de amplas janelas com vista para a praça. Cortinas verde-escuras estavam abertas para deixar entrar a luz, e pelas vidraças Charlotte podia ver sua carruagem emprestada esperando por eles na calçada, o cavalo com sua cabeça mergulhada em um saco de aveia, o condutor lendo um jornal em seu assento.
Os ramos verdes de árvores moviam-se no outro lado na rua, uma copa esmeralda, mas era silencioso. As janelas bloqueavam todos os sons, e não havia nada audível nesta sala, exceto o fraco tique-taque de um relógio de parede com Companhia Mortmain gravado na face em ouro.
A mobília era escura, uma madeira pesada de fibras escuras, e as paredes eram forradas com cabeças de animais – um tigre, um antílope e um leopardo – e mais paisagens estrangeiras. Havia uma grande escrivaninha de mogno no centro da sala, organizada com pilhas de papel, cada pilha sobrecarregada com uma engrenagem de cobre pesada.
Um globo de bronze carregando a legenda GLOBO TERRESTRE WYLDE, COM AS ÚLTIMAS DESCOBERTAS! ancorava um canto da mesa, as terras sob o domínio do Império Britânico destacadas em um vermelho rosado. Charlotte sempre achou a experiência de examinar os globos mundanos uma experiência estranha. O mundo deles não era da mesma forma que o que ela conhecia.
Atrás da escrivaninha estava sentado um homem, que se pôs de pé quando eles entraram. Era uma figura pequena de aparência enérgica, um homem de meia-idade com cabelos tornando-se adequadamente grisalhos nas costeletas. Sua pele parecia queimada pelo vento, como se ele tivesse estado fora muitas vezes no mau tempo. Seus olhos eram de um cinza muito, muito claro, sua expressão agradável; apesar de suas roupas elegantes e aparentemente caras, era fácil imaginá-lo no convés de um navio, olhando atentamente à distância.
— Boa tarde — ele cumprimentou — Walker me deu a entender que estão procurando pelo Sr. Nathaniel Gray?
— Sim — Henry respondeu, para surpresa de Charlotte.
Henry raramente, se alguma vez, assumira a liderança nas conversas com estranhos. Ela se perguntou se isso tinha alguma coisa a ver com o diagrama aparentemente intrigante sobre a mesa. Henry estava olhando para ele com um desejo tão ardente como se fosse comida.
— Nós somos os primos dele, sabe.
— Apreciamos que tenha tomado esse tempo para conversar conosco, Sr. Mortmain — Charlotte acrescentou apressadamente — sabemos que ele era apenas um empregado seu, um de dezenas...
— Centenas — corrigiu Mortmain. Ele tinha uma voz de barítono agradável, que no momento pareceu muito divertida — é verdade que não posso acompanhar a todos eles. Mas me lembro do Sr. Gray. Embora eu deva dizer que, se ele alguma vez mencionou que tinha primos que eram Caçadores de Sombras, não posso dizer que me lembro

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