Capítulo 6 - Permita que a Escuridão
Permita que o amor encerre o Pesar para que ambos se afoguem,
Permita que a escuridão conserve seu lustro negro:
Ah, é mais doce se embriagar com a perda,
Do que dançar com a morte e sucumbir ao chão.
– Alfred, Lord Tennyson, In Memoriam AHH
Para: Inquisidor Victor Whitelaw
De: Cônsul Josias Wayland
Victor,
Apesar de sua preocupação ser muito apreciada, não tenho nenhum problema em relação Charlotte Branwell que não coloquei em minha carta ao Conselho.
Que você possa ter no coração a força do Anjo, nestes tempos conturbados,
Josias Wayland
***
O café da manhã estava a princípio muito silencioso. Gideon e Gabriel desceram juntos, ambos desanimados. Gabriel mal falou uma palavra, apenas pediu a Henry para passar a manteiga. Cecily tinha se sentado na extremidade da mesa e estava lendo um livro enquanto comia; Tessa ansiava por ver o título, mas Cecily colocara o livro em tal ângulo que não era visível. Will, em frente a Tessa, tinha sombras escuras abaixo de seus olhos, uma lembrança de sua noite movimentada. Tessa se virou sem entusiasmo para o seu prato de kedgeree, o silêncio dominando até que a porta se abriu e Jem entrou.
Ela olhou com surpresa e uma guinada de prazer. Ele não parecia muito mal, só cansado e pálido. Jem deslizou graciosamente para o assento ao lado dela.
— Bom dia.
— Você parece muito melhor, Jemmy — Charlotte observou com prazer.
Jemmy? Tessa olhou para Jem com divertimento. Ele encolheu os ombros e deu-lhe um sorriso autodepreciativo.
Ela olhou por cima da mesa e encontrou Will observá-los. Varreu o rosto dele, apenas por um momento, uma pergunta em seus olhos. Existia alguma chance de que Will tivesse encontrado um substituto para o yin fen entre a volta deles para casa e hoje de manhã? Mas não, ele parecia tão surpreso quanto ela.
— Estou mesmo — disse Jem — Os Irmãos do Silêncio foram de grande ajuda.
Ele serviu-se de uma xícara de chá, e Tessa viu os ossos e tendões se moverem em seu pulso fino, dolorosamente visíveis. Depois que ele pegou o chá, Tessa alcançou a mão dele sob a mesa, e ele apertou-a. Seus finos dedos sobre ela eram tranquilizadores.
A voz de Bridget flutuou para fora da cozinha.
“Frio é o vento noturno, querido,
Frias as gotas da chuva;
Meu primeiro amor
Foi aniquilado na floresta.
Farei por meu amor
O que qualquer moça faria;
Sentarei de luto ao pé do túmulo
Por doze meses e um dia.”
— Pelo Anjo, ela é deprimente — disse Henry, descendo o jornal diretamente em seu prato, fazendo com que sua borda se manchasse com gema de ovo. Charlotte abriu a boca como se para protestar, e fechou-a novamente — é tudo sobre coração quebrado, morte e amor não correspondido.
— Bem, a maioria das músicas é sobre isso? — Will retrucou. — Amor correspondido é o ideal, mas não fazer muita melodia.
Jem olhou para cima, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, uma grande reverberação soou através do Instituto. Tessa estava familiarizada o suficiente com seu novo lar em Londres para reconhecer o som da campainha. Todos se viraram ao mesmo tempo para Charlotte, como se as suas cabeças estivessem presas em molas.
Charlotte, olhando assustada, largou o garfo.
— Oh. Há algo que eu tencionava dizer a todos vocês, mas...
— Madame? — Era Sophie, na beirada da porta com uma bandeja na mão. Tessa podia não deixar de notar que, apesar de Gideon estar olhando para ela, ela parecia estar deliberadamente evitando seu olhar, as bochechas corando ligeiramente. — Cônsul Wayland está lá embaixo e deseja falar-lhe.
Charlotte retirou o guardanapo de cima da salada, olhou para ele, suspirou e disse:
— Muito bem. Mande-o subir.
Sophie desapareceu em um redemoinho de saias.
— Charlotte? — Henry parecia intrigado. — O que está acontecendo?
— De fato — Will baixou seus talheres para o prato — o Cônsul? Interrompendo nosso café da manhã? Quem será o próximo? Os Inquisidor para o chá? Piquenique com os Irmãos do Silêncio?
— Tortas de pato no parque — Jem murmurou, e ele e Will sorriram um para o outro, apenas um momento antes de a porta se abrir e o Cônsul passar por ela.
O Cônsul Wayland era um homem grande, de peito largo e braços grossos. As vestes do cargo de Cônsul sempre pareciam pairar um pouco sem jeito em seus ombros largos. Ele era loiro e barbudo como um Viking, e por um momento, sua expressão era tempestuosa.
— Charlotte — ele falou sem preâmbulos — estou aqui para falar com você sobre Benedict Lightwood.
Houve um leve farfalhar, os dedos de Gabriel apertaram a toalha de mesa. Gideon colocou a mão levemente sobre o pulso de seu irmão, acalmando-o, mas o Cônsul já estava olhando para eles.
— Gabriel — disse ele — eu havia pensado que você talvez pudesse ir para os Blackthorn com sua irmã.
Os dedos de Gabriel apertaram sua xícara de chá.
— Eles estão muito alterados pela dor da perda de Rupert — respondeu — não achei que agora era o momento de me intrometer.
— Bem, você está sofrendo por seu pai, não está? — o Cônsul disse. — “Dor compartilhada é dor diminuída”, como dizem.
— Cônsul... — Gideon começou, lançando um olhar preocupado para o irmão.
— Embora talvez fosse estranho se hospedar com sua irmã, considerando-se que ela denunciou-o por assassinato.
Gabriel arquejou como se alguém tivesse derramado água fervente sobre ele. Gideon jogou o guardanapo e levantou-se.
— Tatiana fez o quê? — Ele exigiu.
— Você me ouviu — respondeu o Cônsul.
— Não foi um assassinato — disse Jem.
— É o que você diz — disse o Cônsul — eu fui informado que foi.
— Também foi informado de que Benedict se transformou em um verme gigantesco? — Will que perguntou; e Gabriel olhou para ele com surpresa, como se não esperasse ser defendido por Will.
— Will, por favor — disse Charlotte — Cônsul, eu o notifiquei ontem que descobrimos que Benedict Lightwood estava no último estágio de astriola...
— Você me contou que houve uma batalha e ele foi morto — o Cônsul respondeu — mas o que me foi relatado é que ele estava doente com a varíola, e que, como resultado, ele foi caçado e morto, apesar de não oferecer resistência.
Will, os olhos suspeitosamente brilhantes, abriu sua boca. Jem esticou o braço e colocou a mão sobre ele.
— Eu não consigo entender — Jem disse, falando sobre os protestos abafados de Will — como você pode saber que Benedict Lightwood está morto, mas não as causas morte. Se não havia um corpo para encontrar, foi porque ele se tornou mais demônio do que humano, e desapareceu quando foi morto, como os demônios fazem. Mas os que faltam servos ausente... a morte do próprio marido de Tatiana...
O Cônsul parecia cansado.
— Tatiana Blackthorn diz que um grupo de Caçadores de Sombras do Instituto assassinou seu pai e que Rupert foi morto na briga.
— Ela mencionou que o pai dela devorou o seu marido? — Henry perguntou, finalmente olhando para cima de seu jornal. — Oh, sim. O engoliu. Sobrou somente a bota esquerda sangrenta no jardim para encontrarmos. Havia marcas de dentes. Adoraria saber como isto poderia ter sido um acidente.
— Acho que isso conta como oferecer resistência — Will apontou — comer um genro, isto é. Embora eu suponha que todos tem suas brigas familiares.
— Você não está sugerindo realmente — Charlotte disse — que o verme... que Benedict deveria ter sido subjugado e contido, está, Josias? Ele estava nos últimos estágios da varíola! Tinha enlouquecido e se tornou um verme!
— Ele poderia ter se tornado um verme e, em seguida, enlouquecido — Will disse diplomaticamente — nós não podemos estar totalmente certos.
— Tatiana está realmente perturbada — o Cônsul observou — ela está considerando exigir reparações...
— Então eu vou pagá-las — era Gabriel, depois de ter empurrado sua cadeira para trás e ficado de pé — vou dar a minha ridícula irmã o meu salário para o resto da vida se ela deseja, mas não vou admitir ter feito algo errado – nem para mim, nem para qualquer um de vocês. Sim, eu acertei uma flecha no olho daquela coisa. O olhodaquilo. E eu o faria novamente. Seja lá o que fosse aquela coisa, não era mais meu pai.
Houve um silêncio. Mesmo o Cônsul não pareceu ter uma resposta pronta. Cecily baixara seu livro e estava à procura de um indício que Gabriel e o Cônsul fossem voltar a discutir.
— Peço seu perdão, Cônsul, mas o que quer que Tatiana esteja lhe dizendo, ela não conhece a verdade da situação — Gabriel continuou — só eu que estava lá em casa com meu pai sei como ele estava doente. Eu estava sozinho com ele, assisti enquanto enlouqueceu durante a última quinzena. Finalmente vim até aqui, pedir a ajuda de meu irmão. Charlotte gentilmente me emprestou a assistência de seus Caçadores de Sombras. Uma vez que voltei para casa, descobri que a coisa que tinha sido meu pai devorara o marido da minha irmã distante. Eu lhe asseguro, Cônsul, não havia nenhuma forma pela qual o meu pai poderia ter sido salvo. Estávamos em uma luta pelas nossas vidas.
— Então por que Tatiana...
— Porque ela está humilhada — Tessa respondeu. Eram as primeiras palavras que ela tinha falado uma vez que o Cônsul entrara no salão — ela falou muito comigo. Acreditava que se a varíola demoníaca se tornasse conhecida, seria uma mancha sobre o nome da família. Suponho que ela está tentando apresentar algum tipo de história alternativa com a esperança de que você vá repeti-la ao Conselho. Mas ela não está dizendo a verdade.
— Realmente, Cônsul — disse Gideon — o que faz mais sentido? Que todos nós corremos loucos e matamos o meu pai – e seus filhos estão acobertando o fato – ou que Tatiana está mentindo? Ela nunca pensa sobre as coisas, você sabe disso.
Gabriel estava com a mão no encosto da cadeira do irmão.
— Se acredita que eu cometeria parricídio de uma forma tão leviana, sinta-se livre para me levar até a Cidade do Silêncio para ser interrogado.
— Essa provavelmente seria a ação mais sensata — disse o Cônsul.
Cecily baixou sua xícara de chá causando um estrondo acentuado que fez todos pularem da cadeira.
— Isso não é justo — disse ela — ele está falando a verdade. Todos nós somos. Você deve saber disso.
O Cônsul deu-lhe um longo e medido olhar, em seguida, virou-se para Charlotte.
— Você espera a minha confiança? E ainda oculta suas ações de mim. As ações têm consequências, Charlotte.
— Josias, informei-lhe sobre o que aconteceu na mansão Lightwood no momento em que todos voltaram, e eu estava certa de que eles foram bem...
— Você deveria ter informado antes — o Cônsul falou categoricamente — no momento em que Gabriel chegou. Esta não era uma missão de rotina. Veja, você se deixa em uma posição em que eu devo defendê-la, apesar do fato de que desobedeceu o protocolo e decidiu sobre esta missão sem a aprovação do Conselho.
— Não houve tempo...
— Chega — disse o Cônsul, em uma voz que não sugeria nada, mas foi o suficiente — Gideon e Gabriel, você virão comigo para a Cidade do Silêncio ser interrogados — Charlotte começou a protestar, mas o Cônsul levantou uma mão — ter Gabriel e Gideon questionados pelos Irmãos é conveniente, vai evitar qualquer confusão e permitirá que o pedido de Tatiana por reparações seja negado rapidamente. Vocês dois — Cônsul Wayland virou-se para os irmãos Lightwood — vão para a minha charrete e esperem por mim. Nós três seguiremos para a Cidade do Silêncio; se os Irmãos não encontrarem nada de interesse, vocês voltarão para cá.
— “Se não encontrarem nada” — Gideon repetiu em um tom revoltado.
Ele pegou seu irmão pelo braço e guiou-o para fora da sala. Quando Gideon fechou a porta atrás deles, Tessa notou algo brilhar em sua mão. Ele estava usando seu anel Lightwood novamente.
— Tudo bem — o Cônsul falou, focando-se em Charlotte — por que você não me contou no momento em que seus Caçadores de Sombras voltaram que Benedict estava morto?
Charlotte fixou os olhos em seu chá. Sua boca estava pressionada em uma linha firme.
— Eu queria proteger os meninos. Queria que eles tivessem alguns momentos de paz e tranquilidade. Um pouco de descanso, depois de ver seu pai morrer diante de seus olhos, antes de começou a fazer perguntas, Josias!
— Isso dificilmente é tudo — o Cônsul prosseguiu, ignorando sua expressão — os arquivos e documentos de Benedict. Tatiana contou-nos deles. Nós procuramos na casa, mas seus diários tinham desaparecido, sua mesa estava vazia. Esta não é a sua investigação, Charlotte, esses papéis pertencem a Clave.
— O que você está procurando neles? — Henry perguntou, movendo o jornal de seu prato. Ele parecia aparentemente desinteressado na resposta, mas havia um brilho duro em seus olhos que desmentia seu aparente desinteresse.
— As informações sobre sua conexão com Mortmain. Informações sobre qualquer outro membro da Clave que poderia ter tido ligações com Mortmain. Pistas sobre o paradeiro de Mortmain...
— E os suas peças? — Disse Henry.
O Cônsul fez uma pausa no meio da frase.
— Suas peças?
— As Peças Infernais. Seu exército de autômatos. É um exército criado com o propósito de destruir os Caçadores de Sombras, e ele pretende nos vencer — Charlotte falou, aparentemente recuperada, enquanto colocava seu guardanapo para baixo — de fato, as cada vez mais incompreensíveis anotações de Benedict nos deixam acreditar que esse tempo virá, mais cedo ou mais tarde.
— Então você pegou as notas e diários. O Inquisidor estava convencido disso — o Cônsul esfregou os olhos com as costas da mão.
— Claro que peguei. E é claro que vou lhe dar. Sempre planejei fazê-lo.
Imediatamente composta, Charlotte pegou o pequeno sino de prata de seu prato e tocou-o. Quando Sophie apareceu, ela sussurrou para a menina por um momento, e Sophie, com uma reverência ao Cônsul, escorregou para fora da sala.
— Você deveria ter deixado os papéis onde estavam, Charlotte. É o procedimento — disse o Cônsul.
— Não havia nenhuma razão para que eu não olhar para eles...
— Você tem que confiar no meu julgamento, e no da Lei. Proteger os meninos Lightwood não é uma prioridade maior do que descobrir a paradeiro de Mortain, Charlotte. Você não está disputando com a Clave. Você faz parte do Enclave, e vai se reportar a mim. Está claro?
— Sim, Cônsul — Charlotte respondeu no momento em que Sophie voltou com um maço de papéis, que ela silenciosamente ofereceu para o Cônsul — da próxima vez que um dos nossos estimados membros se transformar em um verme e comer outro estimado membro, iremos informá-lo imediatamente.
O Cônsul trincou a mandíbula.
— Seu pai era meu amigo. Eu confiava nele, e por isso confiei em você. Não me faça me arrepender da chance que lhe dei, ou por ter te apoiado quando Benedict Lightwood desafiou sua posição.
— Você desafiou, juntamente com Benedict! — Chalotte exclamou. — Quando ele sugeriu dar apenas uma quinzena para completar uma tarefa impossível, você concordou com ele! Não falou uma palavra em minha defesa! Se eu não fosse mulher, você não teria se comportado de tal maneira.
— Se você não fosse mulher — disse o Cônsul — eu não teria feito nada.
E com isso, ele se foi, em um redemoinho de vestes escuras e runas refletindo. Assim que a porta se fechou atrás dele, Will sibilou:
— Como você pôde dar-lhe os papéis? Precisamos deles...
Charlotte, que encostou em sua cadeira com os olhos semicerrados, disse:
— Will, eu já passei noites acordada copiando as partes relevantes. Muito daquilo era...
— Sem sentido? — Jem sugeriu.
— Pornográfico? — Will ofereceu ao mesmo tempo. — Poderia ser ambos ao mesmo tempo. Nunca ouviu falar de pornografia sem sentido antes?
Jem sorriu, e Charlotte colocou o rosto nas mãos.
— Foi mais o primeiro do que o segundo, se você quer saber — disse ela — copiei tudo o que pude, com a inestimável assistência de Sophie — ela olhou para cima então — Will... você precisa se lembrar. Este já não é o nosso dever. Mortmain é um problema da Clave, ou pelo menos é assim que vejo. Houve momento em que fomos singularmente responsáveis por Mortmain, mas...
— Nós somos responsáveis por proteger Tessa! — Will rebateu com uma força que assustou mesmo Tessa. Will que empalideceu ligeiramente quando percebeu que todo mundo olhou para ele com surpresa, mas continuou de qualquer maneira: — Mortmain ainda quer Tessa. Não podemos imaginar que ele desistiu. Ele pode vir com autômatos, com bruxaria, fogo e traição, mas ele virá.
— É claro que vamos protegê-la — Charlotte respondeu — não precisamos de lembretes, Will. Ela é uma de nós. E por falar em uma de nós... — Ela olhou para seu prato. — Jessamine retorna amanhã.
— O quê? — Will derrubou sua xícara de chá, encharcando a toalha da mesa com a borra.
Houve murmúrios em torno da mesa, embora Cecily apenas olhasse com espanto, e Tessa, após uma respiração aguda, permaneceu em silêncio. Ela estava se lembrando da última vez que vira Jessamine, na Cidade Silenciosa, pálida e com olhos vermelhos, chorando e com medo...
— Ela tentou nos trair, Charlotte. E você simplesmente a chama de volta?
— Ela não tem outra família, seus bens foram confiscados pela Clave, e ela não está apta para viver por conta própria. Dois meses de interrogatório na Cidade dos Ossos quase a deixou louca. Não acho que ela vá ser um perigo para qualquer um de nós.
— Nem pensamos que ela seria um perigo antes, — Jem apontou, com um tom mais forte do que Tessa teria esperado dele — e ainda houve o curso de ação que quase colocou Tessa nas mãos de Mortmain, e o resto de nós em desgraça.
Charlotte balançou a cabeça.
— Há uma necessidade aqui por misericórdia e compaixão. Jessamine não é mais o que era antes – como qualquer um de vocês saberia se tivessem visitado-a na Cidade do Silêncio.
— Eu não tenho nenhum desejo de visitar traidores — Will falou friamente — ela ainda está balbuciando sobre Mortmain estar em Idris?
— Sim, é por isso que os Irmãos do Silêncio finalmente desistiram, não poderiam ter tirado nada de importante dela. Ela não tem segredos, não conhece nada de valor. E Jessamine entende isso. Se sente inútil. Se você pudesse se colocar no lugar dela...
— Oh, não duvido que ela está dando um show para você, Charlotte, chorando e rasgando suas roupas...
— Bem, se ela está mesmo rasgando suas roupas... — disse Jem, com um sorriso em direção ao seu parabatai — você sabe o quanto Jessamine gosta de suas vestes.
Will sorriu relutante, mas verdadeiramente. Charlotte viu sua abertura e aproveitou a vantagem.
— Vocês não vão mesmo reconhecê-la quando a virem, prometo — ela disse — deem-lhe uma semana, apenas uma semana, e se nenhum de vocês puderem suportar tê-la aqui, providenciarei sua mudança para Idris — ela empurrou o prato para longe — e agora, irei para as minhas cópias dos documentos de Benedict. Quem vai me ajudar?
***
Para: Cônsul Josias Wayland
De: O Conselho
Caro senhor,
Até o recebimento da última carta, pensamos que a nossa diferença de pensamento sobre o tema Charlotte Branwell era uma questão de simples opinião. Embora você não tenha dado a expressa permissão para a volta de Jessamine Lovelace para o Instituto, a aprovação foi concedida pela Irmandade, que são responsáveis por tais coisas. Pareceu-nos a ação de um coração generoso permitir que a menina voltasse para a única casa que ela conheceu, apesar de sua traição. Quanto à Woolsey Scott, ele dirige o Praetor Lupus, uma organização que consideramos aliada.
Sua sugestão de que a Sra. Branwell pode ter dado ouvidos a aqueles que não são simpáticos à Clave é profundamente perturbador. Sem a prova, no entanto, ficamos relutantes em avançar com isto como base de informação.
Em nome de Raziel,
Os membros do Conselho Nephilim
***
A carruagem do Cônsul era um landó com os vidros de um vermelho brilhante com os quatro Cs da Clave na lateral, puxada por um par de impecáveis garanhões cinza. Era um dia de chuva, garoa fraca; seu condutor estava encolhido no banco na frente, quase totalmente escondido sob um chapéu oleado e capa.
Com uma carranca, o Cônsul, que tinha não falara uma palavra desde que haviam deixado a sala do café da manhã no Instituto, conduziu Gideon e Gabriel para dentro da carruagem, subiu depois deles e trancou a porta.
Quando o transporte passou ao lado da igreja, Gabriel virou-se para olhar pela janela. Havia uma leve queimação no fundo de seus olhos e em seu estômago. Tinha ido e vindo desde o dia anterior, às vezes chegando com tanta força que ele pensou que poderia estar doente.
Um verme gigantesco... os últimos estágios da astriola... A varíola demônio.
Quando Charlotte e o resto deles fizeram as acusações contra seu pai, ele não queria acreditar. A deserção de Gideon parecia ser loucura, uma deslealdade tão monstruosa que poderia ser explicada apenas pela insanidade. Seu pai havia prometido que Gideon iria repensar suas ações, que ele voltaria para ajudar com o funcionamento da casa e do negócio Lightwood. Mas ele não tinha voltado, e os dias tinham se tornado cada vez mais curtos e escuros. Gabriel via seu pai cada vez menos, então começou a acreditar e, em seguida, ter medo.
Benedict foi caçado e morto.
Caçado e morto. Gabriel rolou a palavras em torno de sua mente, mas não fizeram nenhum sentido. Ele havia matado um monstro, como crescera sendo treinado para fazer, mas o monstro não era seu pai. Seu pai ainda estava vivo em algum lugar, e a qualquer momento, Gabriel olharia pela janela e o veria caminhando pela calçada, seu longo casaco cinza balançando ao vento, os traços fortes de seu perfil delineado contra o céu.
— Gabriel — era a voz de seu irmão, cortando a névoa da memória e devaneio — Gabriel, o Cônsul fez-lhe uma pergunta.
Gabriel olhou para cima. O Cônsul estava virado para ele, seus olhos escuros de expectativa. A carruagem estava seguindo através da Rua Fleet, jornalistas, advogados e vendedores ambulantes correndo para lá e para cá no trânsito.
— Eu te perguntei — o Cônsul disse — como você estava desfrutando da hospitalidade do Instituto.
Gabriel piscou. Pouco se destacou por entre o nevoeiro dos últimos dias. Charlotte colocando os braços ao redor dele. Gideon lavando o sangue de suas mãos. O rosto de Cecily como uma brilhante flor com raiva.
— Estava tudo bem, eu acho — ele respondeu em uma voz rouca — mas não é a minha casa.
— Bem, a mansão Lightwood é magnífica — o Cônsul comentou — construída sobre sangue e despojos, é claro.
Gabriel fitou-o, sem entender. Gideon estava olhando para fora da janela, sua expressão levemente enjoada.
— Pensei que quisesse falar conosco sobre Tatiana — disse ele.
— Eu conheço Tatiana — o Cônsul falou — nenhum do senso de seu pai e nada da bondade da sua mãe. Um mau negócio para ela, temo. Seu pedido de reparações será recusado, é claro.
Gideon girou em seu assento e olhou para o Cônsul, incrédulo.
— Se dá tão pouco crédito a ela, porque estamos aqui?
— Para eu poder falar com vocês sozinhos — o Cônsul revelou — entendam, quando entreguei o Instituto a Charlotte, pensei que o toque de uma mulher seria ser bom para o lugar. Granville Fairchild era um dos homens mais rigorosos que conheci, e embora seguisse com o Instituto dentro da Lei, era um lugar frio, pouco acolhedor. Londres, a maior cidade do mundo, e um Caçador de Sombras não podia se sentir em casa — ele encolheu os ombros — pensei que dar a administração do local para Charlotte poderia melhorar.
— Charlotte e Henry — Gideon corrigiu.
— Henry é um zero a esquerda — disse o Cônsul — nós todos sabemos que, como diz aquele ditado, a égua é melhor que o cavalo no casamento. Henry nunca teve a intenção de interferir, e ele não o faz. Mas não é assim com Charlotte. Era para ela ser dócil e obedecer meus desejos, algo que tem me desapontado profundamente.
— Você a apoiou contra o nosso pai — Gabriel deixou escapar, e imediatamente se arrependeu.
Gideon lhe lançou um olhar penetrante, e Gabriel cruzou as mãos enluvadas firmemente em seu colo, apertando os lábios. As sobrancelhas do Cônsul subiram.
— Por que seu pai teria sido dócil? Havia dois finais ruins, e escolhi o melhor deles. Eu ainda tinha esperança de controlá-la. Mas agora...
— Senhor — Gideon interrompeu, em sua melhor voz educada — por que está dizendo isso?
— Ah — disse o Cônsul, olhando os riscos de chuva na janela — aqui estamos — ele bateu na janela da carruagem — Richard! Pare no Argent Rooms.
Gabriel desviou os olhos para o seu irmão, que deu de ombros em perplexidade. O Argent Rooms era um notório salão de música de cavalheiros em Piccadilly Circus. Senhoras de má reputação frequentavam o lugar, e havia rumores de que o negócio era de propriedade de Seres do Submundo, e que em algumas noites os “shows de mágica” apresentavam magia real.
— Eu costumava vir aqui com seu pai — o Cônsul falou, uma vez que os três estavam na calçada.
Gideon e Gabriel observaram através da garoa a entrada bastante sem gosto do teatro italiano que claramente fora enxertada entre os edifícios mais modestos que estiveram ali antes. Era uma galeria de três andares pintada de azul e sem adornos.
— Uma vez a polícia revogou a licença do Alhambra porque a gerência tinha permitido que o cancan fosse dançado no palco. Desde então, o Alhambra é dirigido por mundanos. Isto é muito mais satisfatório. Vamos entrar? — Seu tom não deixou espaço para discordância.
Gabriel seguiu o Cônsul através da arcada de entrada, onde o dinheiro mudou mãos e um bilhete foi comprado para cada deles. Gabriel olhou para o bilhete com alguma perplexidade. Era na forma de uma propaganda, prometendo “o melhor entretenimento de Londres!”
— Atos de força — ele leu para Gideon enquanto fizeram o seu caminho por um longo corredor — animais treinados, mulheres halterofilistas, acrobatas, números circenses e cantores cômicos.
Gideon estava murmurando sob a respiração.
— E contorcionistas — Gabriel acrescentou brilhantemente — parece que aqui há uma mulher que pode colocar o pé em cima da cabeça...
— Pelo Anjo, este lugar é apenas um bicheiro de tostões melhorado — disse Gideon — Gabriel, não olhe para nada a menos que eu diga que está tudo bem.
Gabriel revirou os olhos enquanto seu irmão pegou seu cotovelo e empurrou-o para dentro do que era claramente o grande salão – uma enorme sala cujo teto foi pintado com reproduções de grandes mestres italianos, incluindo O nascimento de Vênus, de Botticelli, porém agora manchado de fumo e desgastada. Lustres dourados pendiam do teto de gesso, enchendo a sala com uma luz de cor amarelada.
As paredes estavam alinhadas com bancos de veludo, onde figuras escuras amontoadas – cavalheiros, cercados por mulheres cujos vestidos eram muito brilhantes e o riso era alto demais.
Música vertia a partir da frente do salão. O Cônsul se dirigiu para lá, sorrindo. Uma mulher usando cartola e casaca se movia cima e para baixo do palco, cantando uma canção intitulada “É malcriado, mas é bom.” Quando ela se virou, seus olhos brilharam verdes com a luz do lustre.
Lobisomem, Gabriel pensou.
— Esperem por mim aqui um momento, meninos — pediu o Cônsul, e ele desapareceu na multidão.
— Que encantador — Gideon murmurou, e puxou Gabriel quando uma mulher em um vestido de cetim justo passou por eles. Ela cheirava a gim e outra coisa, algo escuro e doce, um pouco como o cheiro de açúcar queimado de James Carstairs.
— Quem diria que o Cônsul era um festeiro? — Gabriel comentou. — Ele não podia esperar até depois de nos levar para a Cidade do Silêncio?
— Ele não está nos levando para a Cidade do Silêncio — a boca de Gideon estava apertada.
— Não?
— Não seja bobo, Gabriel. Claro não. Ele quer algo de nós. Não sei o que ainda. Ele nos trouxe aqui para nos perturbar – e não teria feito isso se não tivesse bastante certeza de que tem algo sobre nós que vai nos impedir de contar a Charlotte ou alguém onde estivemos.
— Talvez ele costumasse vir aqui com o pai.
— Talvez, mas não é por isso que estamos aqui agora — Gideon disse com determinação. Ele apertou o braço do irmão quando o Cônsul reapareceu, carregando consigo uma pequena garrafa do que parecia ser água gaseificada, mas o que Gabriel adivinhou que provavelmente tinha algo misturado.
— O que, nada para nós? — Gabriel perguntou, e foi recebido com um olhar atravessado de seu irmão e um sorriso amargo do Cônsul. Gabriel percebeu que não tinha ideia se o Cônsul tinha uma família, ou filhos. Ele era apenas o Cônsul.
— Vocês tem alguma ideia, meninos, de que tipo de perigo estão correndo?
— Perigo? De quem, Charlotte? — Gideon parecia incrédulo.
— Não de Charlotte — o Cônsul voltou seu olhar para eles — seu pai não só infringiu a Lei, ele blasfemou. Não apenas lidou com demônios, deitou-se com eles. Vocês são os Lightwoods – são tudo o que resta dos Lightwoods. Não têm primos, nem tios ou tias. Eu poderia tirar a sua família dos registros Nephilim e deixar vocês e sua irmã na rua para morrer de fome ou implorar a vida entre os mundanos, e estaria dentro dos direitos da Clave e do Conselho fazê-lo. E quem acham que iria se levantar por vocês? Quem poderia falar em sua defesa?
Gideon tinha ficado muito pálido, e seus nós dos dedos, onde ele agarrara o braço de Gabriel, estavam brancos.
— Isso não é justo. Nós não sabíamos. Meu irmão confiou em meu pai. Ele não pode ser responsabilizado...
— Confiou nele? Ele deu o golpe mortal, não foi? — o Cônsul indagou. — Oh, todos contribuíram, mas foi o golpe dele que matou seu pai, o que indica que ele sabia exatamente o que o seu pai era.
Gabriel estava ciente de Gideon olhando-o com preocupação. O ar na Argent Rooms estava quente e abafado, roubando sua respiração. A mulher no palco estava agora cantando uma canção chamada “All through obliging a lady” e caminhando para cima e para baixo, batendo a bengala no chão ao final de cada verso, fazendo o chão estremecer.
— Os pecados dos pais, crianças. Vocês podem e serão punidos pelos crimes dele, se eu decidir assim. O que você vai fazer, Gideon, enquanto seu irmão e Tatiana têm suas runas retiradas? Você vai cruzar os braços e assistir?
A mão direita de Gabriel estremeceu, tinha certeza de que estenderia o braço e agarraria o Cônsul pela garganta se Gideon não tivesse segurado seu pulso primeiro.
— O que quer de nós? — perguntou Gideon, sua voz controlada. — Não nos trouxe aqui apenas para nos ameaçar, a menos que queira algo em troca. E se fosse algo pudesse perguntar fácil ou legalmente, teria feito isso na Cidade do Silêncio.
— Garoto inteligente. Quero que façam uma coisa para mim. Façam isso, e verei para que, embora tenham a mansão Lightwood confiscada, manterão sua honra e nome, as terras em Idris, e seu lugar como Caçadores de Sombras.
— O que quer que façamos?
— Eu gostaria que observassem Charlotte. Especificamente sua correspondência. Diga-me que cartas que recebe e envia, especialmente para Idris.
— Quer que nós a espionemos — a voz de Gideon era controlada.
— Eu não quero mais surpresas como a de seu pai — disse o Cônsul — ela nunca deveria ter mantido a doença em segredo, tinha que ter me contado.
— Ela tinha que manter segredo — Gideon respondeu — era uma condição do acordo que eles fizeram...
Os lábios do Cônsul estavam apertados.
— Charlotte Branwell não tem o direito de fazer acordos de tal âmbito sem me consultar. Eu sou seu superior. Ela não deve e não pode passar por cima de mim dessa maneira. Ela e o grupo do Instituto se comportam como se estivessem em seu próprio país e tivessem suas próprias leis. Olha o que aconteceu com Jessamine Lovelace. Ela traiu a todos nós, quase até nossa destruição. James Carstairs é um viciado em drogas que está morrendo. Aquela garota Gray é uma Transformadora ou uma feiticeira e não tem lugar no Instituto, o noivado ridículo que se dane. E Will Herondale... Will Herondale é um mentiroso e uma criança mimada que vai crescer e se tornar um criminoso, isso se crescer — o Cônsul fez uma pausa, respirando com dificuldade — Charlotte pode ter dirigido aquele lugar como um feudo, mas não é. É um Instituto e deve fazer relatórios para o Cônsul. E assim será.
— Charlotte não fez nada para merecer tal traição de mim — disse Gideon.
O Cônsul apontou um dedo para ele.
— Isso é exatamente o que eu digo. Sua lealdade não é para com ela, não pode ser para ela. Trata-se de mim. Deve ser para mim. Entendeu?
— E se eu disser que não?
— Então, você perde tudo. Casa, terras, nome, linhagem, propósito.
— Nós vamos fazer isso — Gabriel respondeu, antes de Gideon pudesse falar novamente — vamos observá-la para você.
— Gabriel... — Gideon começou.
Gabriel virou-se para o irmão.
— Não. É demais. Você não quer ser um mentiroso, eu entendo isso. Mas a nossa lealdade vem em primeiro lugar com a família. Os Blackthorn jogariam Tati nas ruas, e ela não iria durar um momento, ela e a criança...
Gideon empalideceu.
— Tatiana vai ter um filho?
Apesar do horror da situação, Gabriel sentiu um lampejo de satisfação por saber algo que seu irmão não tinha conhecimento.
— Sim. Você poderia saber, se ainda fizesse parte da nossa família.
Gideon olhou ao redor da sala como se à procura de um rosto familiar, em seguida, olhou irremediavelmente de volta, para seu irmão e o Cônsul.
— Eu...
Cônsul Wayland sorriu friamente para Gabriel, e, em seguida, para seu irmão.
— Já temos um acordo, senhores?
Depois de um longo momento, Gideon assentiu.
— Nós vamos fazê-lo.
Gabriel não iria esquecer tão cedo do olhar que se espalhou sobre o rosto do Cônsul à declaração. Havia satisfação nele, mas não surpresa. Ficou claro que ele não esperava nada mais dos garotos Lightwood.
***
— Scones? — Tessa perguntou, incrédula.
A boca de Sophie se contorceu em um sorriso. Ela estava de joelhos diante da grade com um pano e um balde de água com sabão.
— Você poderia ter me acertado com a cabeça erguida, eu não ficaria mais surpreendida — ela confirmou — dezenas de scones. Sob a cama, tudo duro como pedra.
— Meu Deus — Tessa disse, deslizando para a borda da cama e inclinando-se para trás em suas mãos.
Toda vez que Sophie estava em seu quarto para fazer a limpeza, Tessa tinha que se segurar para não correr e ajudar a outra menina com o barril de pólvora ou o pó. Tentou fazê-lo em algumas ocasiões, mas depois de Sophie recusar Tessa suavemente, mas com firmeza, pela quarta vez, ela tinha desistido.
— E você ficou com raiva? — Tessa perguntou.
— Claro que fiquei! Inventando trabalho adicional para mim, eu levando os scones e descendo as escadas, e depois ele escondendo como se... eu não deveria ficar surpresa se o outono terminar com a aparição de camundongos.
Tessa assentiu com a cabeça, reconhecendo a gravidade da questão do roedor em potencial.
— Mas não é um pouco... lisonjeiro que ele fez tudo só para te ver?
Sophie sentou-se ereta.
— Não é lisonjeiro. Ele não está pensando. Ele é um Caçador de Sombras, e eu uma mundana. Não posso esperar nada dele. Na melhor das ideias possíveis, ele pode oferecer para eu ser uma amante enquanto ele se casa com uma Caçadora de Sombras.
A garganta de Tessa apertou-se, ela se lembrou de Will no telhado, oferecendo-lhe apenas vergonha e desgraça, e quão pequeno ela sentiu, quão inútil. Fora uma mentira, mas a memória ainda trazia dor.
— Não — Sophie continuou, olhando para as mãos vermelhas, ásperas com o trabalho — é melhor que não pensar nisso. Dessa forma, não haverá desapontamento.
— Acho que os Lightwood são homens melhores do que isso — Tessa ofereceu.
Sophie escovou o cabelo para trás de seu rosto, os dedos tocando levemente a cicatriz que dividia seu rosto.
— Às vezes acho que não há homens melhores do que isso.
***
Nem Gideon nem Gabriel falaram enquanto a carruagem sacudia de volta pelas ruas de West End ao Instituto. A chuva estava caindo ruidosamente agora, assim Gabriel duvidava que alguém o ouviria se ele falasse. Gideon estava estudando seus sapatos, e não olhou para cima à medida que a carruagem fazia seu caminho para o Instituto. Quando chegaram, o Cônsul abriu a porta para eles saírem.
— Eu confio em vocês, meninos. Agora vão fazer Charlotte confiar também. E não contem a ninguém de nossa discussão. No que diz respeito, vocês passaram a tarde com os Irmãos.
Gideon desceu da carruagem sem dizer uma palavra, e Gabriel o seguiu. O landó deu a volta e sacudiu para fora na tarde cinzenta Londres. O céu era preto e amarelo, a garoa tão pesada quanto bolinhas de chumbo, a neblina tão densa que Gabriel mal podia ver os portões do Instituto se fechando atrás da carruagem. Ele certamente não viu quando as mãos de seu irmão dispararam para a frente, agarraram-no pelo colarinho da jaqueta e arrastaram-no até o outro lado do lado do Instituto.
Ele quase caiu quando Gideon empurrou-o para cima contra a parede de pedra da antiga igreja. Eles estavam perto dos estábulos, meio escondidos da vista de um dos contrafortes, mas não da chuva. Frias gotas caíam na cabeça e pelo pescoço de Gabriel e deslizaram em sua camisa.
— Gideon... — ele protestou, deslizando nas lajes lamacentas.
— Fique quieto.
Os olhos de Gideon estavam enormes e cinzentos na luz fraca, mal tingidos com verde.
— Você está certo — Gabriel baixou a voz — devemos combinar nossa história. Quando eles nos perguntarem sobre o que fizemos esta tarde, devemos estar em perfeita harmonia em nossa resposta, ou vai não ser crível...
— Eu disse para você ficar quieto — Gideon bateu os ombros do irmão de volta contra a parede, forte o suficiente para Gabriel soltar um arquejo de dor — nós não vamos contar a Charlotte da nossa conversa com o Cônsul. Mas nem vamos espioná-la.Gabriel, você é meu irmão, e eu te amo. Eu faria qualquer coisa para protegê-lo. Mas não vou vender sua alma ou a minha.
Gabriel olhou para o irmão. Chuva embebia o cabelo de Gideon, pingava na gola de seu casaco.
— Nós poderíamos morrer na rua se nos recusarmos a fazer o que o Cônsul mandou.
— Eu não vou mentir para Charlotte — disse Gideon.
— Gideon...
— Você viu o olhar no rosto do Cônsul? — Gideon interrompeu. — Quando concordamos em espiar por ele, trair a generosidade da casa que nos acolhe? Ele não estava ao menos surpreso. Nunca por um momento duvidou de nós. Ele não espera nada, apenas traição dos Lightwood. Essa é a nossa herança — suas mãos apertaram os braços de Gabriel — há mais na vida além de sobreviver. Nós temos honra, somos Nephilim. Se não temos isso, nós realmente não temos nada.
— Por que — perguntou Gabriel — por que você tem tanta certeza de que o lado de Charlotte é a certo?
— Porque o do nosso pai não era. Porque conheço Charlotte. Porque vivi entre essas pessoas há meses e elas são boas. Porque Charlotte Branwell foi boa para mim. E Sophie a ama.
— E você ama Sophie.
A boca de Gideon ficou apertada.
— Ela é uma mundana e uma servo — disse Gabriel — não sei o que você espera conseguir com isso, Gideon.
— Nada — Gideon respondeu asperamente — não espero nada. Mas o fato de você acreditar que eu deveria conseguir algo, mostra que nosso pai nos fez acreditar que devemos fazer o bem somente se alguma recompensa for oferecida. Eu não vou trair a palavra que dei a Charlotte; essa é a situação, Gabriel. Se você não quer ser parte disso, vou mandá-lo para morar com Tatiana e os Blackthorn. Tenho certeza de que eles irão te aceitar. Mas eu não vou mentir para Charlotte.
— Sim, você vai — Gabriel discordou — nós dois vamos mentir para Charlotte. Mas vamos mentir para o Cônsul, também.
Gideon estreitou os olhos. Água de chuva pingava dos seus cílios.
— O que você quer dizer?
— Vamos fazer como diz o Cônsul e ler a correspondência de Charlotte. Então, vamos reportar para ele, mas os relatórios serão falsos.
— Se nós vamos dar-lhe relatórios falsos de qualquer maneira, por que ler a correspondência?
— Para saber o que não quer dizer — Gabriel explicou, água da chuva pingando em sua boca. Ela caía do teto do Instituto, amarga e suja — para evitar dizer-lhe a verdade acidentalmente.
— Se formos descobertos, podemos enfrentar consequências de extrema gravidade.
Gabriel cuspiu a água da chuva.
— Então me diga: você arriscaria essas consequências pelos habitantes do Instituto, ou não? Porque eu... eu estou fazendo isso por você, e porque...
— Por que...?
— Porque cometi um erro. Eu estava errado sobre o nosso pai. Acreditei nele, e eu não deveria ter feito isso — Gabriel tomou uma profunda respiração — eu estava errado, e quero desfazer isso. Se existe um preço a pagar, então irei pagá-lo.
Gideon olhou para ele por um longo tempo.
— Era este o seu plano o tempo todo? Quando você concordou com as exigências do Cônsul, no Argent Rooms, era esse o seu plano?
Gabriel olhou além de seu irmão, em direção ao pátio molhado de chuva. Em sua mente, ele podia ver os dois, muito mais jovens, onde o Tâmisa cruzava o limite da propriedade da casa, e Gideon mostrando-lhe os caminhos seguros através do terreno pantanoso. Seu irmão sempre fora o único a mostrar-lhe os caminhos seguros. Houve uma época em que eles tinham confiado um no outro implicitamente, e ele não soube quando terminara, mas o seu coração doeu mais por isso do que com a perda de seu pai.
— Você acreditaria em mim — ele falou amargamente — se eu lhe disse que sim? Porque é a verdade.
Gideon ficou imóvel por um longo momento. Em seguida, Gabriel viu-se arrastado para a frente, seu rosto pressionado na lã molhada do casaco de Gideon enquanto seu irmão o segurou com força, murmurando:
— Tudo bem, irmãozinho. Vai ficar tudo bem — enquanto balançava a ambos frente e para trás na chuva.
Para: Membros do Conselho
De: Cônsul Josias Wayland
Muito bem, senhores. Nesse caso, só peço pela sua paciência e que não ajam com pressa. Se é uma prova que querem, lhe darei uma. Escreverei novamente sobre este assunto em breve.
Em nome de Raziel e em defesa de sua honra,
Cônsul Josias Wayland
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