Capítulo 6 - Terra Estranha

Não devemos contemplar estes duendes
Não devemos comprar os seus artigos:
Ninguém sabe que solo satisfez
Toda a avidez das suas raízes
– Christina Rossetti, Goblin Market

— Sabe — disse Jem — isso aqui não é, de forma alguma, como achei que seria um bordel.
Os dois rapazes se encontravam na entrada do que Tessa chamava de Casa Sombria, ao largo do bairro Whitechapel. Parecia mais suja e sombria do que Will se lembrava, como se alguém tivesse atirado sobre ela uma nova camada de sujeira.
— O que você estava imaginando exatamente, James? Damas da noite acenando das sacadas? Estátuas nuas adornando a entrada?
— Suponho que eu estava esperando algo que parecesse um pouco menos monótono.
Will havia pensado a mesma coisa na primeira vez que esteve lá. A esmagadora sensação que se tinha dentro da Casa Sombria era de que aquele era um lugar em que ninguém jamais havia pensado como um lar. As janelas fechadas pareciam velhas, as cortinas encardidas e sujas.
Will enrolou suas mangas.
— Nós provavelmente teremos que derrubar a porta…
— Ou não — Jem discordou, estendendo a mão e girando a maçaneta.
A porta se abriu em um retângulo de escuridão.
— Agora, isso é simples preguiça — disse Will.
Tirando uma adaga de caça de seu cinto, ele pisou cautelosamente dentro da casa e Jem o seguiu, mantendo um forte aperto em sua bengala com cabo de jade. Eles tendiam a se revezar na hora de ir primeiro em situações perigosas, porém Jem preferia ficar na retaguarda na maior parte do tempo – Will sempre se esquecia de olhar para trás.
A porta se fechou atrás deles, aprisionando-os em uma meia-luz melancólica. O hall estava quase igual à primeira vez que Will esteve lá – a mesma escada de madeira conduzindo para cima, o mesmo piso rachado, mas ainda elegante de mármore, o mesmo ar denso de poeira.
Jem ergueu a mão e sua pedra enfeitiçada iluminou-se com vida, assustando um grupo de besouros negros. Eles correram precipitadamente pelo chão, fazendo com que Will fizesse uma careta.
— Lugar legal para viver, não? Esperemos que eles tenham deixado para trás algo além de sujeira. Endereços de correspondência, alguns membros decepados, uma prostituta ou duas...
— Certamente. Talvez, se formos afortunados, ainda podemos pegar sífilis.
— Ou varíola demoníaca — Will sugeriu alegremente, tentando abrir a porta sob a escada. Esta se abriu, destrancada como a porta da frente — sempre há varíola demoníaca.
— Varíola demoníaca não existe.
— Oh, vós de pouca fé — Will comentou, desaparecendo na escuridão sob as escadas.
Juntos, eles procuraram pelo porão e nos quartos do térreo meticulosamente, achando pouco além de entulho e pó. Tudo havia sido retirado do cômodo onde Tessa e Will lutaram contra as Irmãs Sombrias; após uma longa procura, Will descobrira algo na parede que parecia com uma mancha de sangue, mas parecia não haver nenhuma fonte para aquilo, e Jem salientou que podia ser somente tinta.
Abandonando o porão, eles foram ao andar de cima, e acharam um longo corredor alinhado com portas que era familiar a Will. Ele havia percorrido-o com Tessa às suas costas. Entrou no primeiro quarto à direita, que havia sido o quarto onde ele a havia encontrado. Nenhum sinal restava da garota de olhos selvagens que o havia atingido com um jarro florido. O quarto estava vazio, a mobília tendo sido levada para pesquisa na Cidade do Silêncio. Quatro pontos escuros no chão indicavam o lugar onde uma cama esteve uma vez.
Os outros quartos eram basicamente o mesmo. Will estava tentando abrir a janela de um quando ouviu Jem gritar que ele devia vir rápido; ele estava no último quarto à esquerda. Will apressou-se e achou Jem no centro de um grande cômodo quadrado, sua pedra enfeitiçada brilhando em sua mão. Ele não estava só. Uma peça de mobília restava lá – uma poltrona estofada, e sentada nela estava uma mulher.
Ela era jovem – provavelmente não mais velha que Jessamine – e usava um vestido estampado barato, seu cabelo preso na nuca. Tinha o cabelo de um castanho maçante, e suas mãos estavam nuas e vermelhas. Seus olhos estavam arregalados e com um olhar fixo.
— Argh — disse Will, muito surpreso para dizer qualquer outra coisa — ela está...?
— Está morta.
— Você tem certeza?
Will não conseguia tirar os olhos do rosto da mulher. Ela estava pálida, mas não a palidez de um cadáver, e as mãos jaziam entrelaçadas em seu colo, os dedos suavemente dobrados, não esticados com o rigor da morte. Ele se aproximou e colocou uma mão no braço dela. Estava rígido e frio sob os dedos dele.
— Bem, ela não está respondendo aos meus avanços — ele observou mais vivamente do que se sentia — então deve estar morta.
— Ou ela é uma mulher de bom gosto e juízo — Jem ajoelhou-se e olhou para o rosto da mulher.
Os olhos dela eram de um azul pálido e protuberante; eles olhavam além dele, parecendo tão mortos quanto olhos pintados.
— Senhorita — ele disse, e alcançou o pulso dela, com a intenção de tirar a pulsação.
Ela se moveu, estremecendo sob a mão dele, e deixou escapar um gemido baixo e inumano.
Jem se levantou apressadamente.
— O que em...
A mulher levantou a mão. Seus olhos ainda estavam inexpressivos, sem foco, mas seus lábios se moveram com um rangido.
— Cuidado! — ela exclamou.
Sua voz ecoou pelo quarto, e Will, com um grito, pulou para trás.
A voz da mulher soava como engrenagens movendo-se uma contra a outra.
— Cuidado, Nephilins. Como vocês destroem os outros, serão destruídos. Seu anjo não pode protegê-los contra aquilo que nem Deus nem o diabo fez, um exército nascido nem do Céu nem do Inferno. Cuidado com a mão do homem. Cuidado. — A voz dela cresceu para um guincho alto, afiado, e ela se balançou para frente e para trás na cadeira, como uma marionete sendo puxada por linhas invisíveis. — CUIDADO CUIDADO CUIDADOCUIDADOCUIDADO...
— Bom Deus — murmurou Jem.
— CUIDADO! — a mulher guinchou uma última vez, e cambaleou para frente, estatelando-se no chão, abruptamente silenciada.
Will olhou, boquiaberto.
— Ela está...? — ele começou.
— Sim — Jem respondeu — acho que ela está completamente morta dessa vez.
Mas Will estava balançando sua cabeça.
— Morta. Sabe, eu não acho.
— O que você acha, então?
Ao invés de responder, Will ajoelhou-se ao lado do corpo. Ele pôs dois dedos do lado da bochecha da mulher e virou a cabeça dela gentilmente até que o encarasse. A boca dela estava aberta, o olho direito encarando o teto. O esquerdo estava suspenso no meio de sua bochecha, preso à sua cavidade por uma espiral de fio de cobre.
— Ela não está viva — disse Will — mas não está morta, também. Ela pode ser... como um dos dispositivos de Henry, eu acho — ele tocou o rosto dela — quem poderia ter feito isso?
— Não tenho ideia. Mas ela nos chamou de Nephilins. Ela sabia o que nós somos.
— Ou alguém sabia. Eu não creio que ela saiba alguma coisa. Acho que ela é uma máquina, como um relógio. E ela se quebrou — Will levantou-se — de qualquer forma, é melhor que a levemos ao Instituto. Henry irá querer dar uma olhada nela.
Jem não respondeu; estava olhando para a mulher no chão. Os pés dela estavam nus abaixo da bainha do vestido, e sujos. A boca estava aberta e ele podia ver o cintilar de metal dentro da garganta. O olho dela balançava assustadoramente no fio de cobre enquanto em algum lugar fora das janelas o relógio de uma igreja soava o meio-dia.



Uma vez dentro do parque, Tessa descobriu-se começando a relaxar. Ela não esteve em um lugar verde, silencioso, desde que havia chegara a Londres e se descobrira quase relutantemente encantada pela vista da grama e das árvores, apesar de achar o parque nem de perto tão belo quando o Central Park em Nova York. O ar não era tão enevoado ali quanto no resto da cidade, e o céu era quase azul.
Thomas esperava com a carruagem enquanto as garotas faziam seu passeio. Enquanto Tessa andava ao lado de Jessamine, a outra garota mantinha um constante fluxo de tagarelice. Estavam caminhando por uma ampla via que, Jessamine informou, era inexplicavelmente chamada de Rotten Row, literalmente traduzida como “Ala Podre”.
Apesar do nome nada favorável, aquele era aparentemente lugar para ver e ser visto. No centro da via estavam homens e mulheres montados em cavalos, belamente vestidos, as mulheres com seus véus voando, suas risadas ecoando no ar do verão. Nos lados da avenida andavam outros pedestres. Cadeiras e bancos ficavam abaixo das árvores, e mulheres sentavam-se girando guarda-chuvas coloridos e bebericando água de hortelã. Junto delas homens barbudos fumavam, preenchendo o ar com o cheiro de tabaco misturado com grama cortada e cavalos.
Apesar de ninguém ter parado para falar com elas, Jessamine parecia saber quem todos eram – quem estava se casando, quem estava procurando um marido, quem estava tendo um caso com a esposa deste ou daquele e todos sabiam disso. Era um pouco vertiginoso, e Tessa ficou agradecida quando elas saíram da via principal para um caminho estreito levando ao parque.
Jessamine deslizou seu braço pelo de Tesssa e deu um aperto amigável em sua mão.
— Você não sabe que alívio é finalmente ter outra garota por perto — ela disse alegremente — quero dizer, Charlotte é simpática, mas ela é entediante e casada.
— Tem a Sophie.
Jessamine bufou.
— Sophie é uma empregada.
— Conheci garotas que eram bastante amigáveis com suas damas de companhia — Tessa protestou.
Não era precisamente verdade. Ela havia lido sobre tais garotas, apesar de nunca ter conhecido nenhuma. Ainda assim, de acordo com romances, a principal função de uma dama de companhia era lhe ouvir enquanto você abria seu coração sobre sua trágica vida amorosa, e ocasionalmente vestir suas roupas e fingir ser você para que você pudesse evitar ser capturada por um vilão. Não que Tessa imaginasse Sophie participando de nada disso em nome de Jessamine.
— Você viu como o rosto dela é. Ser medonha a tornou azeda. Uma dama de companhia deve ser bela, e falar francês, e Sophie não pode fazer isso também. Eu disse isso a Charlotte quando ela trouxe a garota pra casa. Charlotte não me escuta. Ela nunca escuta.
— Não posso imaginar por quê — disse Tessa.
Elas haviam entrado em um caminho estreito que se dobrava entre as árvores. O brilho do rio era visível por elas, e os ramos acima se entrelaçavam, formando uma abóbada e bloqueando o brilho do sol.
— Eu sei! Eu também não! — Jessamine ergueu seu rosto, deixando a pouca luz do sol que passava pela abóbada dançar por sua pele. — Charlotte nunca escuta ninguém. Ela está sempre controlando o pobre Henry. Eu não faço ideia de porque ele se casou com ela.
— Assumo que seja porque ele a amava?
Jessamine bufou.
— Ninguém acha isso. Henry queria acesso ao Instituto para que pudesse trabalhar em seus pequenos experimentos no porão e não ter que brigar. E não acho que ele se importava de se casar com Charlotte – não acho que havia alguma outra pessoa com quem ele quisesse se casar – mas se outra pessoa estivesse no comando do Instituto, ele teria se casado com ela ao invés — ela fungou — e então tem os garotos – Will e Jem. Jem é agradável o bastante, mas você sabe como os estrangeiros são. Não realmente dignos de confiança e basicamente egoístas e preguiçosos. Ele está sempre em seu quarto, fingindo estar doente, recusando-se a fazer qualquer coisa para ajudar — Jessamine continuou alegremente, aparentemente se esquecendo do fato de que Jem e Will estavam fora numa busca pela Casa Sombria neste exato momento, enquanto ela passeava no parque com Tessa — e Will. Bonito, mas se comporta como um lunático a metade do tempo; é como se ele tivesse sido criado por selvagens. Ele não tem nenhum respeito por nada e por ninguém, nenhum conceito da maneira que um cavalheiro deve se comportar. Suponho que é porque ele é galês.
Tessa estava desnorteada.
— Galês?
Essa é uma coisa ruim pra se ser? Ela estava a ponto de acrescentar, mas Jessamine, pensando que Tessa estava duvidando das origens de Will, continuou contentemente.
— Oh, sim. Com aquele cabelo preto dele, você pode absolutamente perceber. A mãe dele era uma mulher galesa. O pai dele se apaixonou por ela, e foi isso. Ele deixou os Nephilins. Talvez ela tenha lançado um feitiço nele — Jessamine riu — eles tem todo tipo de magia estranha em Gales, você sabe.
Tessa não sabia.
— Você sabe o que aconteceu com os pais de Will? Eles estão mortos?
— Suponho que devem estar, não devem, ou eles teriam vindo procurar por ele — Jessamine enrugou a sobrancelha — ugh. De qualquer forma, não quero mais falar do Instituto — ela se virou para encarar Tessa — você deve estar se perguntando por que eu estou sendo tão simpática.
— Er...
Tessa tinha mesmo se perguntado. Nos livros, as garotas como ela, garotas cujas famílias um dia tiveram dinheiro, mas haviam caído em tempos difíceis, eram frequentemente pegas por bons e ricos protetores e eram providas com novas roupas e uma boa educação. (Não, Tessa pensou, que houvesse algo errado com a educação dela. Tia Harriet havia sido tão versada como qualquer governanta.) É claro, Jessamine não lembrava de forma alguma as santas velhas senhoras de tais contos, cujos atos de generosidade eram totalmente altruístas.
— Jessamine, você já leu The Lamplighter?
— Certamente não. Garotas não devem ler romances — Jessamine respondeu, no tom de alguém recitando algo que ela havia ouvido em algum outro lugar — de qualquer forma, Srta. Gray, tenho uma proposta para você.
— Tessa — Tessa corrigiu automaticamente.
— Claro, pois nós já somos melhores amigas, e devemos logo ser ainda mais.
Tessa observou a outra garota com confusão.
— O que você quer dizer?
— Como estou certa de que o horrível Will já lhe disse, meus pais, meus queridos papai e mamãe, estão mortos. Mas eles me deixaram uma considerável quantia de dinheiro. Foi colocado em uma poupança para mim até meu aniversário de dezoito anos, que é em questão de meses. Você vê o problema, é claro.
Tessa, que não via o problema, perguntou:
— Vejo?
— Eu não sou uma Caçadora de Sombras, Tessa. Desprezo tudo sobre os Nephilins. Nunca quis ser uma, e meu maior desejo é deixar o Instituto e nunca mais falar com uma alma que reside lá.
— Mas pensei que seus pais fossem Caçadores de Sombras...
— Uma pessoa não tem que ser um Caçador de Sombras se não quiser — Jessamine estourou — meus parentes não queriam. Eles deixaram a Clave quando eram novos. Mamãe sempre foi perfeitamente enfática. Ela nunca quis os Caçadores de Sombras perto de mim. Dizia que nunca ia desejar uma vida daquelas para uma garota. Queria outras coisas pra mim. Que eu fizesse minha festa de debutante, conhecesse a Rainha, achasse um bom marido, e tivesse encantadores bebezinhos. Uma vida normal— ela disse as palavras com um tipo selvagem de fome — existem outras garotas nessa cidade exatamente agora, Tessa, outras garotas da minha idade, que não são tão bonitas quanto eu, que estão dançando, flertando, rindo e capturando maridos. Elas têm aulas de francês. Eu tenho aulas de horrorosas línguas demoníacas. Não é justo.
— Você ainda pode se casar — Tessa estava confusa — qualquer homem iria...
— Eu poderia me casar com um Caçador de Sombras — Jessamine cuspiu a palavra — e viver como Charlotte, tendo que me vestir como um homem e lutar como um homem. É repugnante. Mulheres não devem se comportar assim. Nós devemos dirigir graciosamente lares amáveis. Decorá-los de uma maneira que seja agradável para nossos maridos. Animá-los e confortá-los com nossa presença gentil e angelical.
Jessamine não soava nem gentil nem angelical, mas Tessa absteve-se de mencionar isso.
— Não vejo como eu...
Jessamine segurou o braço de Tessa ferozmente.
— Você não vê? Eu posso deixar o Instituto, Tessa, mas não posso viver sozinha. Não seria respeitável. Talvez se eu fosse viúva, mas sou só uma garota. Isso apenas não é feito. Mas se eu tivesse uma companhia – uma irmã...
— Você quer que eu finja ser sua irmã? — Tessa guinchou.
— Por que não? — Jessamine indagou, como se essa fosse a sugestão mais razoável do mundo. — Ou poderia ser minha prima da América. Sim, isso iria funcionar. Percebe — ela adicionou, de um modo mais prático — não é como se você tivesse outro lugar para ir, não é? Tenho quase certeza de que capturaríamos maridos em pouquíssimo tempo.
Tessa, cuja cabeça tinha começado a doer, desejou que Jessamine cessasse de falar de “capturar” maridos do jeito que alguém pega uma gripe, ou um gato que fugiu.
— Eu poderia lhe apresentar às melhores pessoas — Jessamine continuou — haveria bailes, e jantares... — Ela parou, olhando ao redor em repentina confusão. — Mas... onde estamos?
Tessa olhou em volta. O caminho havia estreitado. Agora era uma trilha escura passando por entre árvores altas. Tessa não podia mais ver o céu, nem ouvir o som de vozes. Ao lado dela, Jessamine havia parado. Seu rosto se contraiu com medo súbito.
— Nós nos desviamos do caminho — ela murmurou.
— Bem, nós podemos achar o caminho de volta, não podemos? — Tessa girou, procurando por um espaço entre as árvores, um caminho de luz do sol — acho que nós viemos de lá...
Jessamine segurou o braço de Tessa de repente, seus dedos como garras. Algo – não, alguém – havia aparecido diante delas no caminho.
A figura era pequena, tão pequena que por um momento Tessa pensou que estivessem encarando uma criança. Mas quando a forma deu um passo à frente em direção à luz, ela viu que era um homem – um homem arqueado, decaído, vestido como um mercador, em roupas puídas, um chapéu gasto enfiado em sua cabeça. Seu rosto era enrugado e branco, como uma maçã velha coberta de bolor, e seus olhos eram de um preto brilhante entre pesadas dobras de pele.
Ele riu, mostrando dentes tão afiados quanto lâminas.
— Garotas bonitas.
Tessa olhou de relance para Jessamine; a outra garota estava rígida e encarando, sua boca uma linha branca.
— Nós devemos ir — Tessa murmurou, e puxou o braço de Jessamine.
Vagarosamente, como se ela estivesse sonhando, Jessamine permitiu que Tessa a virasse de forma que elas encarassem de novo o caminho pelo qual tinham vindo... E o homem estava na frente delas novamente, bloqueando o caminho de volta ao parque. Longe, longe na distância, Tessa pensou que podia ver o parque, um tipo de clareira, cheia de luz. Parecia impossivelmente longe.
— Vocês saíram do caminho — disse o estranho. A voz dele era monótona, rítmica — garotas bonitas, saíram do caminho. Sabem o que acontece com garotas como vocês.
Ele deu um passo à frente.
Jessamine, ainda rígida, estava agarrando seu guarda-sol como se ele fosse uma corda de salvamento.
— Goblin — ela disse — duende, o que quer que você seja... nós não temos nenhuma rixa com ninguém do Povo Justo. Mas se você nos tocar...
— Vocês saíram do caminho — cantou o homenzinho, chegando mais perto. Enquanto o fazia, Tessa viu que seus sapatos brilhantes não eram sapatos no fim das contas, mas cascos resplandecentes — Nephilim tola, vir a esse lugar sem estar marcada. Essa terra é mais antiga que qualquer Acordo. Aqui há terra estranha. Se seu sangue de anjo cair sobre ela, videiras douradas irão crescer imediatamente no lugar, com diamantes em suas extremidades. E eu o reivindico. Reivindico seu sangue.
Tessa puxou o braço de Jessamine.
— Jessamine, nós deveríamos...
— Tessa, fique quieta — liberando seu braço com uma sacudida, Jessamine apontou seu guarda-sol para o duende — você não quer fazer isso. Você não quer...
A criatura saltou. Enquanto ele se jogava em direção a elas, a boca dele pareceu descascar-se aberta, sua pele partindo-se, e Tessa viu a face por baixo – cheia de presas e malícia. Ela gritou e tropeçou para trás, seu sapato prendendo numa raiz de uma árvore. Caiu no chão enquanto Jessamine levantou seu guarda-sol, e com leve toque do pulso de Jessamine, o guarda-sol se abriu como uma flor.
O duende gritou. Ele gritou e caiu para trás e rolou no chão, ainda gritando. Sangue escorreu de uma ferida em sua bochecha, manchando a áspera jaqueta cinza dele.
— Eu lhe disse — Jessamine falou. Ela estava se esforçando para respirar, seu tórax subindo e descendo como se ela tivesse corrido pelo parque — eu lhe disse pra nos deixar em paz, sua criatura imunda...
Ela golpeou o duende novamente, e agora Tessa podia ver que as beiras do guarda-sol de Jessamine brilhavam em um estranho dourado esbranquiçado, e eram tão afiadas quanto lâminas. Sangue havia respingado sobre o material florido.
O duende uivou, levantando seus braços para se proteger. Ele se parecia com um velho homenzinho arqueado agora, e apesar de Tessa saber que era uma ilusão, ela não podia evitar sentir certa pena.
— Piedade, senhora, piedade...
— Piedade? — Jessamine cuspiu. — Você queria fazer flores do meu sangue! Duende imundo! Criatura nojenta!
Ela o cortou novamente com o guarda-sol, e de novo o duende gritou e se debateu. Tessa se levantou, sacudindo a sujeira para fora de seu cabelo, e se equilibrou sobre os próprios pés. Jessamine ainda estava gritando, o guarda-sol voando, a criatura no chão tendo espasmos a cada pancada.
— Eu te odeio! — Jessamine gritou, sua voz fina e tremendo. — Odeio você e todos como você... Seres do Submundo... nojentos, nojentos...
— Jessamine!
Tessa correu até a outra garota e a envolveu, imobilizando os braços de Jessamine contra seu corpo. Por um momento, Jessamine lutou e Tessa notou que não havia maneira de segurá-la. Ela era forte, os músculos sob a pele macia e feminina dela enrolados e mais tensos que um chicote. E, de repente, Jessamine ficou mole, caindo contra o corpo de Tessa, sua respiração se normalizando enquanto o guarda-sol caía em sua mão.
— Não — ela choramingou — não. Eu não queria. Eu não pretendia. Não...
Tessa olhou pra baixo. O corpo do duende estava dobrado e imóvel aos pés delas. Sangue se espalhava pelo chão do lugar onde ele estava deitado, correndo pela terra como vinhas negras. Segurando Jessamine enquanto ela chorava, Tessa não conseguia deixar de se perguntar o que cresceria ali agora.



Foi, sem surpresa, Charlotte quem se recuperou da surpresa primeiro.
— Sr. Mortmain, eu não estou certa do que o senhor quer dizer...
— É claro que está — ele estava sorrindo, seu rosto magro partindo-se de orelha a orelha em um sorriso travesso — Caçadores de Sombras. Os Nephilins. É assim que vocês chamam a si mesmos, não é? Os filhos ilegítimos de homens e anjos. Estranho, já que os Nephilins na Bíblia eram monstros repugnantes, não eram?
— Sabe, isso não é necessariamente verdade — Henry disse, incapaz de conter seu pedante interior — existe um caso na tradução do original aramaico...
— Henry — Charlotte disse, em tom de aviso.
— Vocês realmente prendem as almas dos demônios que matam em um cristal gigante? — Mortmain continuou, de olhos amplamente abertos. — Que magnífico!
— Você quer dizer o Pyxis? — Henry parecia perplexo. — Não é um cristal, é mais como uma caixa de madeira. E não são exatamente almas, demônios não têm almas. Eles têm energia...
— Fique quieto, Henry — Charlotte repreendeu.
— Sra. Branwell — Mortmain disse. Ele soou extremamente animado — por favor, não se preocupe. Eu já sei tudo sobre seu tipo. Você é Charlotte Branwell, não é? E esse é seu marido, Henry Branwell. Você comanda o Instituto de Londres do local onde um dia foi a Igreja de Todos os Santos, a Menor. Honestamente pensou que eu não saberia quem são vocês? Especialmente quando vocês tentaram usar encantamentos em meu lacaio? Ele não tolera ser encantado, sabe. Faz com que ele tenha brotoejas.
Charlotte estreitou seus olhos.
— E como você conseguiu toda essa informação?
Mortmain se inclinou para frente avidamente, juntando as mãos como se fosse orar.
— Sou um estudioso do oculto. Desde meu tempo na Índia, quando jovem, aprendi sobre eles, eu estive fascinado pelos reinos das sombras. Para um homem em minha posição, com fundos suficientes e tempo mais que suficiente, muitas portas se abrem. Existem livros que podem ser comprados, informação que pode ser paga. Seu conhecimento não é tão secreto como você pode pensar.
— Talvez — disse Henry, parecendo profundamente infeliz — mas é perigoso, você sabe. Matar demônios... não é como atirar em tigres. Eles podem caçá-lo de volta.
Mortmain riu.
— Meu garoto, eu não tenho nenhuma intenção de correr para lutar com demônios de mãos vazias. É claro que este tipo de informação é perigosa nas mãos dos excêntricos e cabeças quentes, mas a minha é uma mente cuidadosa e consciente. Eu busco apenas uma expansão do meu conhecimento do mundo, nada mais — ele olhou ao redor do aposento — devo dizer, nunca tive a honra de falar com Nephilins antes. Claro, menções a vocês são frequentes na literatura, mas ler sobre algo e experimentar verdadeiramente são duas coisas muito diferentes, tenho certeza de que vão concordar. Há tanto que vocês poderiam me ensinar...
— Isso — Charlotte disse em um tom gelado — já é o suficiente.
Mortmain olhou para ele, confuso.
— Perdão?
— Já que você parece saber tanto sobre os Nephilins, Sr. Mortmain, posso perguntá-lo se sabe qual é nossa função?
Mortmain pareceu orgulhoso.
— Destruir demônios. Proteger humanos... mundanos, como eu entendo que vocês nos chamam.
— Sim, e em grande parte do tempo nós protegemos os humanos de suas próprias idiotices. Vejo que você não é uma exceção a essa regra.
Com isso, Mortmain pareceu verdadeiramente estupefato. Seu olhar foi para Henry. Charlotte conhecia aquele olhar. Era um olhar somente trocado entre homens, um olhar que dizia, você não pode controlar sua mulher, senhor? Um olhar, ela sabia, que era totalmente desperdiçado em Henry, que parecia estar tentando ler os diagramas de cabeça para baixo na mesa de Mortmain e prestava bem pouca atenção à conversa.
— Você pensa que o conhecimento oculto que adquiriu o faz muito esperto — Charlotte continuou — mas já vi minha porção de mundanos mortos, Sr. Mortmain. Não posso contar as vezes em que cuidamos dos restos de algum humano que se achava expert em práticas mágicas. Eu lembro, quando era garota, de ser convocada ao lar de um advogado. Ele pertencia a algum círculo bobo de homens que acreditavam que eram mágicos. Passavam seu tempo cantando, vestindo túnicas e desenhando pentagramas no chão. Uma noite ele determinou que suas habilidades eram suficientes para tentar invocar um demônio.
— E eram?
— Eram. Ele invocou o demônio Marax. O demônio o assassinou, e a toda sua família — seu tom era prosaico — achamos a maioria deles pendendo sem cabeça, presos no alto pelos pés. O mais novo de seus filhos estava assando em um espeto sobre o fogo. Nós nunca achamos Marax.
Mortmain estava pálido, mas manteve sua compostura.
— Existem sempre aqueles que vão muito longe com suas habilidades — ele disse — mas eu...
— Mas você nunca seria tão tolo — Charlotte completou — salvo que você está, neste exato momento, sendo tão tolo. Olha para Henry e para mim e não tem medo de nós. Você está divertido! Um conto de fadas que ganhou vida! — Ela deu um tapa forte com a mão na beira da mesa dele, fazendo-o pular. — O poder da Clave nos apoia — ela disse, tão friamente quanto pôde — nossa função é proteger humanos. Como Nathaniel Gray. Ele desapareceu, e algo oculto está claramente por trás desse desaparecimento. E aqui nós encontramos este antigo empregador, claramente envolvido nos assuntos do oculto. É difícil acreditar que os fatos não estejam conectados.
— Eu... Ele... Sr. Gray desapareceu? — Mortmain gaguejou.
— Sim. A irmã dele veio até nós, procurando por ele; ela foi informada por um par de feiticeiras de que ele estava em grave perigo. Enquanto você, senhor, está se divertindo, ele pode estar morrendo. E a Clave não olha bondosamente para aqueles que ficam no caminho de sua tarefa.
Mortmain passou a mão no rosto. Quando a tirou, ele estava pálido, quase cinza.
— Eu devo, é claro, dizer-lhes tudo o que queiram saber.
— Excelente — o coração de Charlotte batia forte, mas sua voz não traía nenhuma ansiedade.
— Eu conhecia o pai dele. O pai de Nathaniel. O empreguei quase vinte anos atrás quando a companhia Mortmain era principalmente uma empresa de transporte marítimo. Eu tinha escritórios em Hong Kong, Xangai, Tianjin... — Ele parou assim que Charlotte tamborilou os dedos impacientemente sobre a mesa. — Richard Gray trabalhava para mim aqui em Londres. Ele era meu secretário chefe, um homem bom e inteligente. Fiquei triste de perdê-lo quando ele se mudou com sua família para a América. Quando Nathaniel me escreveu e me disse quem era, ofereci-lhe um emprego a ele imediatamente.
— Sr. Mortmain — voz de Charlotte era dura — isso não é relevante...
— Oh, mas é — o homenzinho insistiu — você vê, meu conhecimento do oculto sempre me ajudou em assuntos de negócio. Alguns anos atrás, por exemplo, um conhecido banco da Lombard Street entrou em colapso – destruiu dúzias de grandes companhias. Minha relação com um feiticeiro me ajudou a evitar o desastre. Pude retirar meus fundos antes do banco se dissolver, e isso salvou minha companhia. Mas levantou as suspeitas de Richard. Ele deve ter investigado, pois eventualmente me confrontou com seu conhecimento do Clube Pandemônio.
— Você é um membro, então — Charlotte murmurou — é claro.
— Ofereci a Richard filiação ao clube – até mesmo o levei a uma reunião ou duas – mas ele não estava interessado. Pouco depois ele se mudou com sua família para a América — Mortmain abriu suas mãos amplamente — o Clube Pandemônio não é para todos. Viajando tanto quanto viajei, ouvi histórias sobre organizações similares em várias cidades, grupos de homens que sabem do Mundo das Sombras e desejam dividir seus conhecimentos e vantagens, mas se paga o peso do segredo pela filiação.
— Se paga um preço mais pesado que esse.
— Não é uma sociedade do mal — Mortmain disse. Ele soava quase ferido — houveram grandes avanços, várias grandes invenções. Vi um feiticeiro criar um anel de prata que podia transportar quem o usava para outro local sempre que ele colocasse um em seu dedo. Ou uma porta de entrada que podia levá-lo a qualquer lugar do mundo que quisesse ir. Eu já vi homens serem trazidos de volta da beira da morte...
— Estou ciente da magia e do que ela pode fazer, Sr. Mortmain — Charlotte olhou para Henry, que estava examinando um diagrama para algum tipo de equipamento mecânico, enquadrado em uma parede — há uma questão que me preocupa. As feiticeiras que parecem ter raptado o Sr. Gray estão de alguma forma associadas ao clube. Sempre ouvi falar que este era um clube para mundanos. Porque haveriam Seres do Submundo nele?
A testa de Mortmain enrugou-se.
— Seres do Submundo? Você quer dizer povo sobrenatural – feiticeiros, licantropos e esse tipo? Existem níveis e níveis de afiliação, Sra. Branwell. Um mundano como eu pode se tornar um membro do clube. Mas os diretores – aqueles que controlam o negócio – eles são Seres do Submundo. Feiticeiros, licantropos e vampiros. O Povo Justo nos evita, no entanto. Chefes de indústria – vias férreas, fábricas, coisas assim – são demais para eles. Eles odeiam tais coisas — ele balançou a cabeça — amáveis criaturas, as fadas, mas realmente temo que o progresso vá ser a morte para eles.
Charlotte não tinha interesse nos pensamentos de Mortmain sobre fadas; a mente dela girava.
— Deixe-me adivinhar. Você apresentou Nathaniel Gray ao clube, exatamente como havia apresentado o pai dele.
Mortmain, que parecia estar começando a recuperar um pouco de sua velha confiança, murchou novamente.
— Nathaniel havia trabalhado em meu escritório em Londres por somente alguns dias antes de me confrontar. Entendi que ele havia descoberto sobre a experiência de seu pai no clube, e isso lhe deu um forte desejo de saber mais. Eu não podia recusar. Levei-o a uma reunião e pensei que seria o fim disso. Mas não foi — ele balançou a cabeça — Nathaniel agarrou-se ao clube como um pato à água. Algumas semanas depois daquele primeiro encontro, ele havia desaparecido de seu alojamento. Me mandou uma carta, demitindo-se de seu emprego e dizendo que iria trabalhar para outro membro do Clube Pandemônio, alguém que aparentemente estava disposto a lhe pagar o suficiente para sustentar seus hábitos de aposta — ele suspirou — não há necessidade de dizer, ele não deixou nenhum endereço.
— E isso é tudo? — A voz de Charlotte aumentou em descrença. — Você não tentou procurar por ele? Descobrir aonde ele havia ido? Quem era seu novo empregador?
— Um homem pode trabalhar onde desejar — Mortmain disse, com raiva — não havia motivo para pensar...
— E você não o viu desde então?
— Não. Eu lhe disse...
Charlotte o interrompeu.
— Você disse que ele agarrou-se ao Clube Pandemônio como um pato à água, e ainda assim não o viu em uma reunião sequer desde que ele deixou sua empresa?
Um olhar de pânico tremulou nos olhos de Mortmain.
— Eu... Eu não estive em uma reunião desde então. O trabalho me manteve extremamente ocupado.
Charlotte olhou duramente para Axel Mortmain por cima de sua sólida mesa. Sempre havia acreditado ser uma boa juíza de caráter. Não era como se não tivesse conhecido homens como Mortmain antes. Homens francos, geniais, confiantes, homens que acreditavam que seu sucesso nos negócios ou outra ocupação mundana significava que teriam o mesmo sucesso se decidissem perseguir as artes mágicas. Ela pensou no advogado novamente, as paredes de sua casa em Knightsbridge pintadas de escarlate com o sangue de sua família. Pensou em quão aterrorizado ele devia ter ficado naqueles momentos finais de sua vida. Podia ver o começo de um medo similar nos olhos de Axel Mortmain.
— Sr. Mortmain, não sou tola. Sei que há algo que o senhor está escondendo do mim.
Ela tirou de sua bolsa uma das rodas dentadas que Will havia resgatado da casa das Irmãs Sombrias, e colocou-a sobre a mesa.
— Isso parece com algo que suas fábricas poderiam produzir.
Com um olhar distraído, Mortmain olhou para baixo até o pequeno pedaço de metal em sua mesa.
— Sim, sim, esta é uma de minhas rodas dentadas. O que tem isso?
— Duas feiticeiras chamando a si mesmas de Irmãs Sombrias – ambas membros do Clube Pandemônio – elas têm matado humanos. Garotas jovens. Pouco mais que crianças. E achamos isso no porão da casa delas.
— Eu não tenho nada a ver com nenhum assassinato! — Mortmain exclamou. — Eu nunca... pensei....
Ele havia começado a suar.
— O que você pensou? — A voz de Charlotte era gentil.
Mortmain pegou a roda dentada em seus dedos estremecidos.
— Você não pode imaginar... — a voz dele quebrou — alguns meses atrás, um dos membros do conselho administrativo do clube – um Ser do Submundo, muito velho e poderoso – veio a mim e me pediu para vender-lhe alguns equipamentos mecânicos por um preço mais barato. Rodas dentadas, roldanas e coisas do tipo. Eu não perguntei para que, por que iria? Não parecia haver nada extraordinário sobre o pedido.
— Por acaso — Charlotte perguntou — esse foi o homem que empregou Nathaniel depois que ele deixou sua empresa?
Mortmain soltou a roda dentada. Enquanto ela rolava pela mesa, ele bateu sua mão no topo dela, parando-a. Mesmo que não tenha dito nada, Charlotte podia ver pelo brilho de medo em seus olhos que seu palpite estava correto. Uma sensação de triunfo correu pelos nervos dela.
— O nome dele. Diga-me o nome dele.
Mortmain encarava a mesa.
— Custaria-me a minha vida lhe dizer.
— E a vida de Nathaniel Gray? — Charlotte perguntou.
Sem encontrar os olhos dela, Mortmain balançou a cabeça.
— Você não tem ideia do quão poderoso este homem é. Quão perigoso.
Charlotte ajeitou-se.
— Henry. Henry, me traga o Convocador.
Henry virou-se da parede e piscou em confusão.
— Mas, querida...
— Traga-me o dispositivo! — Charlotte repreendeu.
Ela odiava repreender Henry; era como chutar um filhote. Mas às vezes precisava ser feito.
O olhar de confusão não deixou o rosto de Henry enquanto ele se juntava a sua esposa em frente a mesa de Mortmain e tirava algo do bolso de sua jaqueta. Era um paralelogramo de metal escuro, com uma sequência de mostradores de relógio de aparência peculiar sobre sua superfície. Charlotte pegou-o e o brandiu em direção a Mortmain.
— Isto é um Convocador — ela explicou-lhe — irá me permitir convocar a Clave. Dentro de três minutos eles irão cercar sua casa. Nephilins irão arrastá-lo desta sala, gritando e chutando. Irão empregar as torturas mais intensas até que você seja forçado a falar. Sabe o que acontece com um homem quando sangue de demônio é pingado em seus olhos?
Mortmain deu a ela um olhar pavoroso, mas não disse nada.
— Por favor, não me teste, Sr. Mortmain — o dispositivo na mão de Charlotte estava escorregadio de suor, mas sua voz estava calma — eu odiaria vê-lo morrer.
— Homem, diga a ela! — Henry explodiu. — Sinceramente, não há necessidade disso, Sr. Mortmain. Só está tornando mais difícil para si mesmo.
Mortmain cobriu seu rosto com as mãos. Ele sempre quis conhecer Caçadores de Sombras reais, Charlotte pensou, olhando-o. E agora ele tinha.
— De Quincey — ele falou — não sei o primeiro nome dele. Só de Quincey.
Pelo Anjo. Charlotte exalou vagarosamente, abaixando o dispositivo para seu lado.
— De Quincey? Não pode ser…
— Você sabe quem é? — A voz de Mortmain estava entorpecida. — Bem, suponho que sim.
— Ele é o chefe de um poderoso clã vampiro de Londres — Charlotte disse quase relutantemente — um Ser do Submundo muito influente, e um aliado da Clave. Não posso imaginar que ele iria...
— Ele é o cabeça do clube — Mortmain contou. Ele parecia exausto, e um pouco cinza — todos os outros respondem a ele.
— O cabeça do clube. Ele tem um título?
Mortmain pareceu fracamente surpreso pela pergunta.
— O Magistrado.
Com uma mão que tremia apenas levemente, Charlotte escorregou o dispositivo que estava segurando para dentro da manga.
— Obrigada, Sr. Mortmain. Foi-nos de muita utilidade.
Mortmain olhou para ela com uma espécie de ressentimento exaurido.
— De Quincey irá descobrir que eu lhe contei. Ele irá me matar.
— A Clave irá tomar providências para que ele não o faça. E manteremos seu nome fora disso. Ele nunca saberá que você falou conosco.
— Você faria isso? — Mortmain perguntou suavemente. — Por um, como era... um mundano tolo?
— Tenho esperanças para você, Sr. Mortmain. Parece ter notado sua própria estupidez. A Clave estará lhe observando – não somente para sua proteção, mas para ter certeza de que você permaneça longe do Clube Pandemônio e organizações como esta. Para o seu próprio bem, espero que considere nosso encontro como um aviso.
Mortmain assentiu. Charlotte moveu-se para a porta, Henry atrás dela. Já havia aberto a porta e estava na soleira quando Mortmain falou novamente.
— Elas eram somente rodas dentadas — ele disse suavemente — somente mecanismos. Inofensivos.
Foi Henry, para a surpresa de Charlotte, quem respondeu, sem se virar:
— Objetos inanimados são realmente inofensivos, Sr. Mortmain. Mas não se pode sempre dizer o mesmo dos homens que o usam.
Mortmain estava silencioso enquanto os dois Caçadores de Sombras deixavam o cômodo.
Alguns momentos depois, estavam fora na praça, respirando ar fresco – tão fresco quanto o ar de Londres sempre era. Pode ser pesado de fumaça de carvão e poeira, Charlotte pensou, mas ao menos era livre do medo e desespero que pendiam como neblina no escritório de Mortmain.
Tirando o dispositivo de sua manga, Charlotte ofereceu-o a seu marido.
— Suponho que deva lhe perguntar — ela disse enquanto ele o recebia com uma expressão grave — o que é este objeto, Henry?
— Algo em que eu venho trabalhando — Henry olhou para ele carinhosamente — um dispositivo que pode detectar energias demoníacas. Eu ia chamá-lo de sensor. Ainda não consegui que funcionasse, mas quando eu conseguir...!
— Tenho certeza de que será esplêndido.
Henry transferiu sua expressão amorosa do dispositivo para sua esposa, uma ocorrência rara.
— Que puro gênio, Charlotte. Fingir que podia convocar a Clave imediatamente, apenas para apavorar aquele homem! Mas como você sabia que eu tinha um dispositivo que você poderia usar?
— Bem, você tinha, querido — Charlotte falou — não tinha?
Henry parecia encabulado.
— Você é tão aterradora quanto maravilhosa, minha querida.
— Obrigada, Henry.



O caminho de volta ao Instituto foi silencioso; Jessamine olhava pela janela do cabriolé para o raivoso trânsito londrino e recusava-se a dizer uma palavra. Ela segurava seu guarda-sol sobre o colo, aparentemente indiferente ao fato de que o sangue em suas bordas estava manchando sua blusa de tafetá. Quando pararam, ela deixou que Thomas a ajudasse a descer da carruagem antes de segurar a mão de Tessa.
Surpresa pelo contato, Tessa só podia encarar. Os dedos de Jessamine estavam gelados.
— Venha comigo — Jessamine estourou impacientemente, e puxou sua companheira em direção às portas do Instituto, deixando Thomas encarando suas costas.
Tessa deixou que a outra garota a levasse para cima pelas escadas, para a propriedade do Instituto, e por um longo corredor, este quase idêntico àquele em que se encontrava o quarto de Tessa. Jessamine localizou uma porta, empurrou Tessa por ela e seguiu-a, fechando as portas atrás delas.
— Quero lhe mostrar uma coisa.
Tessa olhou em volta. Era outro dos grandes quartos dos quais o Instituto parecia ter um número infinito. O de Jessamine, porém, havia sido decorado a seu gosto. Acima dos painéis de madeira, as paredes eram cobertas por papel de parede de seda rosa, e a colcha da cama era estampada com flores. Havia uma penteadeira branca também, sua superfície coberta com um conjunto de arrumar de aparência cara: um sustentador de anéis, um vidro de água de cheiro, uma escova de cabelo e espelho de prata.
— Seu quarto é amável — Tessa disse, mais na esperança de acalmar a histeria evidente de Jessamine do que porque ela realmente achasse isso.
— É pequeno demais — Jessamine respondeu — mas venha... bem aqui.
E atirando o guarda-sol ensanguentado em sua cama, ela marchou pelo quarto até o canto próximo à janela. Tessa seguiu-a com alguma perplexidade. Não havia nada ali além de uma mesa alta, e na mesa havia uma casa de bonecas. Não o tipo de Casinha de Brincar da Dolly de dois quartos de papelão que Tessa tinha quando criança. Essa era uma bela reprodução em miniatura de uma casa real em Londres, e quando Jessamine a tocou, Tessa viu que a porta dela se abria em pequenas dobradiças.
Tessa prendeu a respiração. Havia pequenos belos quartos perfeitamente decorados com mobília em miniatura, tudo construído em escala, das pequenas cadeiras de madeira com almofadas bordadas até o fogão de aço fundido na cozinha. Havia pequenos bonecos, também, com cabeças de porcelana, e pinturas a óleo nas paredes.
— Essa era minha casa.
Jessamine se ajoelhou, ficando com os olhos na altura dos cômodos da casa, e gesticulou para que Tessa fizesse o mesmo. Sem jeito, Tessa o fez, tentando não ajoelhar-se nas saias de Jessamine.
— Você quer dizer que essa era a casa de bonecas que você tinha quando pequena?
— Não — Jessamine soou irritada — essa era minha casa. Meu pai mandou fazer esta casinha para mim quando eu tinha seis anos. É modelada exatamente como a casa em que vivíamos, na Curzon Street. Esse era o papel de parede que tínhamos no salão de jantar — ela apontou — e essas são exatamente as cadeiras no escritório de meu pai. Você vê?
Ela olhou para Tessa intensamente, tão intensamente que Tessa teve certeza de que deveria estar vendo algo ali, algo que estava além de um brinquedo extremamente caro que Jessamine deveria ter abandonado há muito tempo. Ela simplesmente não sabia o que poderia ser.
— É bastante bonita — falou finalmente.
— Veja, aqui no salão de visitar está mamãe — Jessamine apontou, tocando uma das pequenas bonecas com seu dedo. A boneca vacilou em sua poltrona de veludo — e aqui no escritório, lendo um livro, está papai — a mão dela deslizou sobre a pequena figura de porcelana — e no andar de cima, no berço, está a bebê Jessie — dentro do pequeno berço realmente havia outra boneca, apenas sua cabeça visível acima dos pequenos cobertores — mais tarde eles jantarão aqui, na sala de jantar. E então mamãe e papai se sentarão na sala de estar em frente à lareira. Em algumas noites eles irão ao teatro, ou a um baile, ou um jantar — a voz dela havia se acalmado, como se ela estivesse recitado uma bem decorada oração — e então mamãe irá dar um beijo de boa noite em papai, e eles irão para seus quartos, e irão dormir durante toda a noite. Não haverá ligações da Clave para fazê-los sair no meio da noite para caçar demônios no escuro. Não haverá traços de sangue pela casa. Ninguém irá perder um braço ou um olho para um lobisomem, ou ter que se afogar em água benta porque um vampiro os atacou.
Meu Deus, Tessa pensou.
Como se Jessamine pudesse ler os pensamentos de Tessa, seu rosto se virou.
— Quando nossa casa queimou, eu não tinha mais nenhum lugar pra ir. Não era como se houvessem parentes que pudessem me acolher; todos os parentes de mamãe e papai eram Caçadores de Sombras e não haviam falado com eles desde que eles haviam rompido com a Clave. Henry foi quem me fez o guarda-sol. Você sabia disso? Eu achei bastante bonito até que ele me disse que o tecido é margeado com electrum, afiado como uma lâmina. Sempre foi feito para ser uma arma.
— Você nos salvou — Tessa lembrou — no parque hoje. Eu não posso lutar. Se você não tivesse feito o que fez…
— Eu não deveria ter feito aquilo — Jessamine olhou para a casa de bonecas com os olhos vazios — eu não terei essa vida, Tessa. Eu não terei. Não me importo com o que tenha que fazer. Não viverei assim. Eu preferiria morrer.
Alarmada, Tessa estava pronta a dizer a ela para não falar assim, quando a porta se abriu atrás delas. Era Sophie, em seu gorro branco e arrumado vestido preto. Os olhos dela, quando descansaram em Jessamine, eram cautelosos.
— Srta. Tessa, o Sr. Branwell gostaria muito de vê-la em seu escritório. Ele diz que é importante.
Tessa virou-se para perguntar a Jessamine se ela ficaria bem, mas a expressão de Jessamine havia se fechado como uma porta. A vulnerabilidade e raiva haviam ido; a máscara fria estava de volta.
— Vá, então, se Henry a quer — ela disse — eu já estou bastante cansada de você, e acho que estou tendo uma dor de cabeça. Sophie, quando você retornar, precisarei que massageie minhas têmporas com eau de cologne.
Os olhos de Sophie encontraram os de Tessa através do quarto com algum divertimento.
— Como quiser, Srta. Jessamine.

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