Capitulo 8 - Os Objetivos da Ira
Ó justo, sutil e conquistador ópio! Que, para os corações de ricos e pobres igualmente, para os ferimentos que jamais serão curados, e para os golpes de dor que “tentam o espírito a se rebelar”, trazes um bálsamo aliviador. Eloquente ópio! Que com tua poderosa retórica roubas os propósitos da ira, súplicas eficazmente por piedade leniente, e através do sono celestial de uma noite lembras ao homem culpado as visões de sua infância, e mãos purificadas do sangue.
– Thomas de Quincey, Confissões de um comedor de ópio
De manhã, quando Tessa desceu para o café, ela descobriu, para sua surpresa, que Will não estava lá. Ela não tinha percebido que esperava que ele retornasse durante a noite até se viu parada na porta, vasculhando os lugares ao redor da mesa como se de alguma forma fosse vê-lo. Até que seu olhar pousou sobre Jem, que respondeu com uma expressão triste e preocupada, Tessa soube que era verdade. Will ainda estava desaparecido.
— Ah, ele vai voltar, pelo amor de Deus — disse Jessamine irritada, batendo a xícara no pires — ele sempre rasteja para casa. Olhe só para os dois. Como se tivessem perdido um cachorro favorito.
Tessa olhou para Jem quase culpada, um olhar conspirador enquanto se sentava na frente dele e pegava uma fatia de pão.
Henry estava ausente; Charlotte, na cabeceira da mesa, muito claramente tentando não parecer nervosa e preocupada, e falhando.
— É claro que ele vai voltar — ela concordou — Will pode cuidar de si mesmo.
— Você acha que ele poderia ter voltado para Yorkshire? — Tessa perguntou. — Para avisar a sua família?
— Eu... acho que não — respondeu Charlotte — Will tem evitado sua família por anos. E ele sabe da Lei. Sabe que não pode falar com eles. Sabe o que ele poderia perder.
Seus olhos pousaram brevemente em Jem, que estava brincando com a colher.
— Quando ele viu Cecily, na mansão, ele tentou correr para ela — Jem apontou.
— No calor do momento — Charlotte lembrou — mas ele voltou com você para Londres, e estou confiante de que vai voltar para o Instituto também. Ele sabe que você tem esse botão, Tessa. Quer descobrir o que Starkweather sabe.
— Muito pouco, na verdade — Tessa respondeu.
Ela ainda se sentia culpada e triste, pois não tinha encontrado a informação mais útil nas memórias de Starkweather. Ela tentou explicar o que era a mente de alguém cujo cérebro era decadente, mas foi difícil encontrar as palavras, e ela se focou, principalmente, no olhar de decepção no rosto de Charlotte quando ela disse que não tinha descoberto nada de útil sobre Ravenscar Manor.
Havia dito a eles todas as memórias de Starkweat da família dos Shade, e que de fato, se suas mortes tinham sido o impulso para o desejo de Mortmain de justiça e de vingança, parecia ser poderoso. Tinha mantido o choque de se ver para si mesma: era desconcertante ainda, e parecia de alguma forma privada.
— E se Will escolher deixar a Clave para sempre? — Tessa perguntou. — Será que ele vai voltar para sua família para protegê-los?
— Não — respondeu Charlotte um pouco bruscamente — não. Eu não acho que ele vai fazer isso.
Ela perderia Will se ele fizesse isso, Tessa pensou com surpresa. Will sempre foi tão desagradável de muitas formas, mas, por vezes, Tessa esquecia o amor teimoso. Charlotte parecia senti-lo por todos os seus encargos.
— Mas se eles estão em perigo... — Tessa protestou, então ficou em silêncio quando Sophie entrou na sala carregando um pote de água quente e o baixou.
Charlotte se iluminou com a visão dela.
— Tessa, Sophie, Jessamine. Não quero que vocês se esqueçam, todas vão treinar esta manhã com Gabriel e Gideon Lightwood.
— Eu não posso fazer isso — Jessamine falou imediatamente.
— Por que não? Pensei que você houvesse se recuperado de sua dor de cabeça.
— Sim, mas eu não quero que ela volte — Jessamine levantou-se apressadamente — eu prefiro ajudar, Charlotte.
— Eu não preciso de sua ajuda para escrever para Ragnor Fell, Jessie. Realmente prefiro que você aproveite o treinamento.
— Mas há dezenas de respostas dos feiticeiros que estão questionando sobre o paradeiro do Mortmain se acumulando na biblioteca — Jessamine argumentou — eu poderia ajudá-la a separá-las.
Charlotte suspirou.
— Muito bem — ela virou-se para Tessa e Sophie — nesse meio tempo, vocês poderiam não falar nada para os garotos Lightwood sobre Yorkshire ou sobre Will? Eu poderia deixá-las sem treinamento hoje, mas não há nenhuma ajuda nisto. É uma mostra de boa-fé e confiança continuar o treinamento. Vocês devem se comportar em todos os sentidos como se nada estivesse errado. Podem fazer isso, meninas?
— É claro que podemos, Sra. Branwell — Sophie respondeu imediatamente. Seus olhos estavam brilhantes e ela sorria.
Tessa suspirou interiormente, não sabendo como se sentia. Sophie adorava Charlotte, e faria qualquer coisa para agradá-la. Ela também detestava Will e era improvável que se preocupasse com a sua ausência.
Tessa olhou através da mesa para Jem. Ela sentiu um vazio no estômago, a dor de não saber onde Will estava, e se perguntou se ele sentia isso também.
Seu rosto normalmente expressivo ainda estava ilegível, embora quando ele pegou seu olhar, tenha sorrido encorajadora e gentilmente. Jem era parabatai de Will, seu irmão de sangue. Certamente, se houvesse realmente algo para se preocupar com o que Will estava envolvido, Jem não seria capaz de esconder... não é?
Na cozinha, a voz de Bridget cantava alta e doce:
“Devo ir obrigada enquanto você fica livre
Devo amar um homem que não me ama
Devo ter nascido com pouco então
Como amar um homem que vai quebrar meu coração?”
Tessa empurrou sua cadeira para trás.
— Acho melhor ir me vestir.
Tendo mudado seu vestido de dia para a roupa de luta, Tessa sentou-se na beira da cama e pegou a cópia de Vathek que Will tinha lhe dado. Ela tentou não trazer o pensamento de Will sorrindo para sua mente, mas outras imagens de Will – Will inclinado sobre ela no Santuário coberto de sangue; olhando-a no sol do telhado do Instituto; Will rolando morro abaixo com Jem em Yorkshire, salpicando-se com lama e se importar; Will caindo da mesa na sala de jantar; Will segurando-a no escuro. Will, Will, Will.
Ela lançou o livro. Ele atingiu a lareira e ricocheteou, acertando no chão. Se houvesse alguma maneira de tirar Will da sua mente, como se raspa a lama fora do sapato...
Se ela soubesse onde ele estava. A preocupação a deixava pior, e ela não pôde evitar se preocupar. Não conseguia esquecer o olhar em seu rosto quando ele viu a irmã.
Ela seguiu distraída para a sala de treinamento. Felizmente, quando chegou, a porta estava aberta e não havia ninguém lá, apenas Sophie, segurando uma longa faca na mão e examinando-a cuidadosamente, como se estivesse examinando um espanador de pó para decidir se ainda havia uso para ele ou se já era tempo de jogá-lo fora. Olhou para Tessa quando ela entrou no cômodo.
— Bem, você parece ter passado um péssimo fim de semana úmido, senhorita — disse ela com um sorriso — está tudo bem? — Ela inclinou a cabeça para o lado quando Tessa assentiu — é o mestre Will? Ele já ficou sumido por um ou dois dias antes. Ele estará de volta, não tenha medo.
— Esse não é o tipo de coisa para se dizer, Sophie, especialmente porque sei que você não está preocupada com ele.
— Eu preferiria que você não ficasse também — disse Sophie — pelo menos não nos mínimos detalhes...
Tessa olhou para ela rapidamente. Ela não tinha tido uma conversa real com Sophie sobre Will desde o incidente do telhado, pensou, e, além disso, Sophie tinha advertido-a sobre ele, comparando-o a uma cobra venenosa. Antes que Tessa pudesse responder, a porta se abriu e Gabriel e Gideon Lightwood entraram, seguidos por Jem. Ele piscou para Tessa antes de desaparecer, fechando a porta atrás de si.
Gideon foi direto para Sophie.
— Uma boa escolha de lâmina — ele elogiou, a surpresa sublinhando suas palavras.
Sophie corou, parecendo satisfeita.
— Então — disse Gabriel, que de alguma forma conseguiu aparecer atrás de Tessa sem que ela percebesse. Depois de examinar as prateleiras de armas ao longo das paredes, ele sacou uma faca e entregou a ela — sinta o peso da lâmina.
Tessa tentou sentir o peso dela, lutando para se lembrar do que ele tinha dito-lhe sobre onde e como se deve equilibrar na palma da mão.
— O que você acha? — Gabriel perguntou.
Ela olhou-o. Dos dois garotos, ele certamente parecia mais com o pai, com seus traços aquilinos a sombra fraca de arrogância em sua expressão, a boca fina enrolada nos cantos.
— Ou você está ocupada demais se preocupando sobre o paradeiro do Herondale para praticar hoje?
Tessa quase deixou cair a faca.
— O quê?
— Ouvi você e Srta. Collins falarem enquanto eu estava subindo as escadas. Ele desapareceu? Não é surpreendente, considerando que penso que Will Herondale tenha um senso de responsabilidade para se falar.
Tessa levantou o queixo.
— A ocorrência é bastante comum, não tem nenhum problema sobre isso — ela respondeu — Will tem um espírito livre. Ele vai voltar em breve.
— Espero que não. Espero que ele esteja morto.
A mão de Tessa apertou a faca.
— Você não quis dizer isso, não é? O que ele fez com sua irmã para que você tenha tanto ódio dele?
— Por que você não pergunta para ele? — A voz de Gabriel era afiada.
Gideon falou:
— Vamos começar a aula, por favor, e deixar de perder tempo?
Gabriel olhou para seu irmão mais velho, que estava completamente em paz com Sophie, mas obedientemente voltou sua atenção ao treinamento do dia.
Eles estavam praticando como segurar lâminas hoje, e como equilibrá-las quando cortavam através do ar com a ponta da lâmina inclinada para frente ou deixando a alça escorregar da mão. Era mais difícil do que parecia, e hoje Gabriel estava sem paciência. Tessa invejava Sophie, que estava sendo ensinada por Gideon, que sempre foi um instrutor cuidadoso e metódico, embora ele tivesse o hábito de escorregar para o espanhol sempre que Sophie fazia algo de errado.
— Ay Dios mio — diria ele, puxando a lâmina de onde estava presa, aponta para baixo, no chão — vamos tentar de novo?
— Levante-se em linha reta — Gabriel estava dizendo para Tessa um pouco, impaciente — não, em linha reta. Dessa forma.
Ele demonstrou. Tessa queria gritar que ela, ao contrário dele, não teve uma vida sendo ensinada a levantar e se mover; que Caçadores de Sombras eram acrobatas naturais, e ela não era nada do tipo.
— Humf. Eu gostaria de ver você aprender a se mover, sentar e levantar, ficar reto, mas em anáguas e um vestido!
— Eu conseguiria fazer isso! — Disse Gideon no fundo da sala.
— Oh, pelo Anjo — disse Gabriel.
Ele a pegou pelos ombros, virando-a em torno dela, de modo que Tessa ficasse de costas para ele. Ele colocou os braços ao redor dela, endireitando-lhe a espinha, arrumando a faca na mão. Tessa podia sentir sua respiração na parte de trás do seu pescoço, e ele a fez estremecer e ficar muito irritada. Se a estava tocando, era só porque presumia que podia, sem pedir, e porque pensou que iria irritar Will.
— Solte-me — disse ela, em voz baixa.
— Isso é parte de seu treinamento — respondeu Gabriel, em uma voz entediada — além disso, olhe para o meu irmão e Srta. Collins. Ela não está reclamando.
Ela olhou através da sala para Sophie, que parecia sinceramente empenhada em sua lição com Gideon. Ele estava de pé atrás dela, um braço em torno das costas, mostrando-lhe como segurar uma faca de ponta agulha. Sua mão gentilmente a envolvia, e ele parecia estar falando em seu pescoço, onde seu cabelo escuro havia escapado de seu coque apertado e enrolado. Quando ele viu Tessa olhando-os, ele corou. Tessa ficou surpresa. Gideon Lightwood, corando! Ele estava gostando de Sophie?
Além de sua cicatriz, que Tessa mal notava mais, ela era adorável, mas era uma mundana e uma serva, e os Lightwood eram esnobes terríveis. Tessa sentiu de repente seu coração apertar. Sophie tinha sido tratada abominavelmente por seu empregador anterior. A última coisa que ela precisava era de um garoto Caçador de Sombras se aproveitando dela.
Tessa olhou em volta para dizer alguma coisa para o garoto com os braços em volta dela e parou. Esquecera que estava ao lado de Gabriel e não de Jem. Fora tão acostumada à presença de Jem, à facilidade com que podia conversar com ele, o conforto de sua mão em seu braço quando eles andavam, o fato de que ele era a única pessoa no mundo agora que ela sentia que podia dizer absolutamente tudo. Percebeu com surpresa que tinha acabado de vê-lo no café da manhã e sentia falta dele, como se sentisse quase como uma dor por dentro.
Ela estava tão obcecada por essa mistura de sentimentos, pela falta de Jem e um sentimento de protecionismo apaixonado por Sophie, que a faca voou por vários metros, passando por cima da cabeça de Gideon e saltando para fora da janela.
Gideon olhou calmamente quando a faca caiu. Nada parecia incomodá-lo, nem mesmo a sua própria decapitação.
— Gabriel, qual é o problema, exatamente?
Gabriel voltou seu olhar sobre Tessa.
— Ela não me escuta — disse ele com desdém — não posso ensinar alguém que não me escuta.
— Talvez se você fosse um melhor instrutor, ela seria uma melhor ouvinte.
— E talvez você tivesse visto a faca se aproximando — Gabriel rebateu — se prestasse mais atenção ao que está acontecendo ao seu redor e menos no pescoço da Senhorita Collins.
Mesmo que Gabriel tenha notado, Tessa pensou, Sophie corou. Gideon deu um olhar a seu irmão que insinuava que os dois iriam conversar mais tarde, em casa, então se voltou para Sophie e disse algo em voz baixa, muito baixa para Tessa ouvir.
— O que aconteceu com você? — Ela perguntou baixinho para Gabriel, e sentiu-o endurecer.
— O que você quer dizer?
— Você geralmente é paciente. É um bom professor, Gabriel, na maior parte do tempo, mas hoje você está irritado, impaciente e... — Ela olhou para a mão em seu braço. — Inadequado.
Ele teve a boa graça de soltá-la e olhar envergonhado para si mesmo.
— Mil perdões. Eu não deveria ter tocado você assim.
— Não, você não deveria. Ainda mais depois de criticar o jeito de Will.
Ele corou ao longo de suas maçãs do rosto salientes.
— Eu já pedi desculpas, Srta. Gray. O que mais quer de mim?
— Uma mudança de comportamento, talvez. Uma explicação de seu comportamento para com Will.
— Eu te disse! Se quiser saber por que não gosto dele, pode perguntar a ele! — Gabriel girou e saiu da sala.
Tessa olhou para as facas presas na parede e suspirou.
— Assim termina a minha aula.
— Tente colocar muito para fora — aconselhou Gideon, aproximando-se dela com Sophie ao seu lado.
Era muito estranho, Tessa pensou; Sophie normalmente parecia desconfortável em torno dos homens, todos os homens, mesmo com o gentil Henry. Com Will era como um gato escaldado, e com Jem, corando e vigilante, mas ao lado de Gideon ela parecia... Bem, era difícil de definir. Mas era muito peculiar.
— Não é culpa sua, ele não está bem hoje — Gideon continuou.
Seus olhos estavam firmes sobre Tessa. Serviu para que ela pudesse ver que eles não eram precisamente da mesma cor de seu irmão. Eram mais de um cinza esverdeado, como o oceano sob um céu nublado.
— As coisas têm sido... difíceis para nós em casa, com o nosso pai, e Gabriel está descontando em você, ou, na verdade, qualquer um que está por perto.
— Fico muito triste em ouvir isso. Espero que seu pai esteja bem — Tessa murmurou, rezando para que ele não tenha notado a falsidade de sua declaração.
— Acho que é melhor eu ir atrás do meu irmão — disse Gideon, sem respondê-la — s eu não fizer isso, ele vai levar a carruagem e me deixar aqui. Espero tê-lo de volta para você em nossa próxima sessão, em um melhor humor — ele curvou-se para Sophie, então para Tessa — Senhorita Collins, Senhorita Gray.
E ele foi embora, deixando as duas meninas olhando-o em um misto de confusão e surpresa.
Com a sessão de treinamento felizmente terminada, Tessa se viu correndo para mudar novamente para suas roupas comuns, e depois foi para o almoço, ansiosa para ver se Will tinha retornado. Ele não tinha. Sua cadeira, entre Jessamine e Henry, ainda estava vazia, mas havia alguém diferente na sala, alguém que fez Tessa ficar parada na entrada da sala, tentando não olhar.
Um homem alto, se sentava perto da cabeceira da mesa, ao lado de Charlotte, e era verde. Não muito verde escuro, sua pele tinha um brilho esverdeado fraco, como a luz refletindo-se no oceano, e seu cabelo era branco neve. Na testa saíam dois pequenos chifres elegantes.
— Srta. Tessa Gray — disse Charlotte, fazendo as apresentações — este é o Alto Bruxo de Londres, Ragnor Fell. Sr. Fell, Srta. Gray.
Após murmurar que ficou encantada em conhecê-lo, Tessa sentou-se à mesa ao lado de Jem, na diagonal de Fell, e tentou não olhar para ele pelo canto do olho. Com os mesmos olhos de gato de Magnus que parecia ser próprio dos bruxos, Fell era diferente pois tinha chifres e outra cor em sua pele. Ela não podia deixar de ficar fascinada por feiticeiros, bruxos em particular. Por que eles tinham marcas e ela não?
— O que está acontecendo, então, Charlotte? — Ragnor estava dizendo. — Você realmente me chamou aqui para discutir feitiços ocorrendo em Yorkshire? Eu tinha a impressão de que nada de grande interesse estaria acontecendo em Yorkshire. Na verdade, acredito que lá não existe nenhum tipo de movimentação, exceto ovelhas e mineração.
— Então, você nunca soube dos Shade? — Charlotte perguntou. — A população bruxa da Grã-Bretanha não é tão grande...
— Eu sabia deles.
Quando ele colocou um pedaço de presunto em seu prato, Tessa viu que ele tinha uma articulação extra para cada dedo. Ela pensou na Sra. Black, com suas alongadas mãos em garras, e reprimiu um estremecimento.
— O Shade estava um pouco louco, com a sua obsessão por máquinas e mecanismos. Sua morte foi um choque para os feiticeiros. Houve rumores de que ele não teria cometido um crime, e até mesmo algumas discussões de vingança, embora nenhuma, acredito, foi tomada.
Charlotte se inclinou para frente.
— Você se lembra de seu filho? Seu filho adotivo.
— Eu sabia dele. Um casal de bruxos é raro. Aquele que adota uma criança humana de um orfanato é mais raro ainda. Mas nunca vi o menino. Os bruxos podem viver para sempre. Um intervalo de 30, até mesmo 50 anos entre as reuniões não é incomum. É claro, agora que eu sei que o menino cresceu, eu gostaria de tê-lo conhecido. Você acha que não há valor na tentativa de descobrir quem eram seus pais verdadeiros?
— Certamente, se puder ser descoberto. Qualquer informação que pudermos recolher sobre Mortmain poderia ser útil.
— Eu posso dizer que ele deu esse nome a si mesmo — disse Fell — soa como um nome de Caçador de Sombras. É o tipo de nome com rancor contra Nephilim, e um senso de humor negro. Mort principalmente.
— Mão da morte — falou Jessamine, que estava orgulhosa de seu francês.
— Faz parecer algo maravilhoso — disse Tessa — se a Clave tivesse simplesmente dado a Mortmain a reparação que ele queria... talvez ele não tivesse se tornado isso. E será que existe mesmo um Clube Pandemônio?
— Tessa... — Charlotte começou, mas Ragnor acenou silenciando-a.
Ele olhou divertidamente para Tessa do outro lado da mesa.
— Você é a transformadora, não é? Magnus Bane me falou de você. Não possui marcas, não é mesmo?
Tessa engoliu em seco e olhou diretamente em seus olhos. Eram diferentes dos olhos humanos, porém comuns em seu rosto extraordinário.
— Não. Nenhuma marca.
Ele sorriu com o garfo na boca.
— Suponho que já olhou em todos os lugares?
— Eu tenho certeza que Will tentou — Jessamine respondeu em um tom aborrecido.
Os talheres de Tessa bateram no prato. Jessamine, que esmagava suas ervilhas com o lado plano da faca, olhou para cima quando Charlotte fez um horrorizado.
— Jessamine!
Jessamine encolheu os ombros.
— Bem, ele é assim.
Fell voltou-se para o prato com um leve sorriso no rosto.
— Eu me lembro do pai de Will. As mulheres o adoravam. Elas não podiam resistir a ele. Até ele conhecer a mãe de Will, é claro. Então ele jogou tudo fora e foi viver no País de Gales só para estar com ela. Um caso peculiar.
— Ele se caiu de amor — disse Jem — não é peculiar.
— E como caiu — respondeu o bruxo, ainda com o mesmo sorriso fraco — precipitou-se no caso dele é mais parecido. Todos se colocaram contra ele. Ainda assim, há sempre alguns homens que gostam de apenas uma mulher, é só ela ou nada.
Charlotte olhou para Henry, mas ele parecia completamente perdido em pensamentos, contando algo em seus dedos que só Deus sabia o quê. Ele estava usando um colete rosa e violeta, hoje, e tinha molho em sua manga. Os ombros de Charlotte caíram visivelmente, e ela suspirou.
— Bem, pelo o que sei, eles estavam muito felizes juntos.
— Até que perdeu dois de seus três filhos e Edmund Herondale jogou fora tudo o que tinham — concordou Fell — mas imagino que você nunca contou nada ao jovem Will sobre isso.
Tessa trocou um olhar com Jem. Minha irmã está morta, Will dissera.
— Eles tiveram três crianças, então? — ela perguntou — Will tinha duas irmãs?
— Tessa. Por favor — Charlotte parecia desconfortável — Ragnor... Eu nunca o contratei para invadir a privacidade dos Herondale, ou Will. Fiz isso porque eu tinha prometido que lhe diria se algum mal acontecesse à sua família.
Tessa pensou em Will com 12 anos de idade, agarrado a mão de Charlotte, implorando para ser informado sobre quando sua família morresse. Por que fugir?, pensou pela centésima vez. Por que deixá-los para trás? Ela pensou que talvez ele não se importasse, mas claramente ele se importava. Ainda cuidava. Ela não podia parar o aperto em seu coração, quando se lembrava dele chamando por sua irmã. Se ele amava Cecily como ela ainda amava Nate... Mortmain fez mal à família dele, pensou. Como tinha feito à dela. Estavam unidos de uma forma peculiar, ela e Will. Ele soubesse ou não.
— Seja o que for que Mortmain vem planejando — ouviu-se dizer — ele vem planejando isso há muito tempo. Desde antes de eu nascer, quando ele enganou ou coagiu meus pais a me “fazerem”. E agora sabemos que há anos envolveu-se com a família de Will e os levou para Ravenscar Manor. Temo que somos como peças de xadrez, deslizamos sobre o tabuleiro e o resultado do jogo já é conhecido por ele.
— Isso é o que ele quer que pensamos, Tessa — Jem apontou — mas ele é apenas um homem. E cada descoberta que fazemos sobre ele o torna mais vulnerável. Se não houvesse ameaça, ele não teria enviado autômato para nos avisar lá fora.
— Ele sabia exatamente onde estaríamos.
— Não há nada mais perigoso do que um homem deitado em vingança — disse Ragnor — um homem que baseou sua vida nela por quase três anos, que tem se alimentado a partir de uma semente, pequena e venenosa para a vida, matando assim a flor. Ele vai tentar ganhar, a menos que você acabe com ele primeiro.
— Então nós vamos acabar com ele — Jem disse brevemente.
Foi tão forte sua ameaça que Tessa nunca o tinha escutado falar assim antes.
Tessa olhou para suas mãos. Elas estavam mais pálidas do que eram quando ela morava em Nova York, mas eram suas mãos, familiares, o dedo indicador um pouco mais longo do que o do meio, as meias-luas das unhas se pronunciando. Eu poderia mudá-los, ela pensou. Eu poderia ser nada, ninguém. Ela nunca tinha se sentido mais mutável, mais fluida, ou mais perdida.
— De fato — o tom de Charlotte era firme — Ragnor, quero saber por que a família Herondale está nessa casa que pertencia a Mortmain – e eu os quero seguros. Quero fazer isso sem Benedict Lightwood ou o resto da Clave ficar sabendo.
— Eu entendo. Quer que eu olhe por eles o mais silenciosamente possível, ao mesmo tempo fazendo perguntas sobre Mortmain na área. Se ele é o responsável pela mudança deles para lá, e se tem algum propósito.
Charlotte exalou.
— Sim.
Ragnor girou o garfo.
— Isso vai sair caro.
— Sim... — concordou Charlotte. — Eu estou preparada para pagar.
Fell sorriu.
— Então, estou preparado para suportar as ovelhas.
O resto do almoço foi uma conversa estranha, com Jessamine destruindo sua comida sem comer, Jem muito calmo, Henry murmurando equações para si, Charlotte e Fell finalizando os seus planos para a proteção da família de Will. Tessa aprovava a ideia, mas havia algo sobre o bruxo que a incomodava de uma forma que Magnus nunca incomodou, e ela ficou feliz quando o longo almoço terminou para que ela pudesse escapar para o quarto com uma cópia de A inquilina de Wildfell Hall.
Não era o seu livro favorito das irmãs Brontë, essa honra era de Jane Eyre, e depois O morro dos ventos uivantes, com A inquilina de Wildfell Hall em terceiro lugar. Mas ela tinha lido os outros dois tantas vezes que não havia mais surpresas entre as páginas, apenas frases tão familiares a ela que tinham se tornado como velhos amigos. O que ela realmente queria ler era Um conto de duas cidades, mas Will tinha citado Sydney Carton tantas vezes que temia que pegá-lo a faria pensar nele, deixando o seu nervosismo maior. Afinal, ele nunca foi Darnay, apenas Sydney, bêbado e destruído que se dissipou. Sydney, que morreu por amor.
La fora já estava escuro, e o vento estava soprando rajadas de chuva contra as vidraças quando bateram em sua porta. Era Sophie, carregando uma carta em uma bandeja de prata.
— Uma carta para você, senhorita.
Tessa guardou o livro, espantada.
— Carta para mim?
Sophie assentiu e se aproximou, segurando a bandeja.
— Sim, mas não diz de quem é. A Senhorita Lovelace quase leu, mas consegui mantê-la longe dela, a curiosa.
Tessa pegou o envelope. Era dirigido a ela, de fato, em uma letra desconhecida, impressa em papel de cor creme. Ela virou-se e começou a abri-la, e viu o rosto de Sophia com olhos arregalados e curiosos refletidos no vidro da janela. Ela se virou e sorriu para ela.
— Isso é tudo, Sophie.
Era o jeito que ela tinha lido as heroínas dispensarem os criados nos romances, e parecia ser correto. Com um desapontamento no olhar, Sophie retirou-se do quarto.
Tessa desdobrou a carta e estendeu-a no colo.
Querida e sensível Senhorita Gray,
Escrevo-lhe em nome de um amigo em comum, William Herondale. Sei que ele tem seu hábito de ir e vir do Instituto com frequência quando lhe agrada, e que, portanto, pode levar algum tempo antes que qualquer alarme seja levantado com a sua ausência. Mas eu lhe digo, como alguém que gosta e a estima, para não assumir que essa ausência seja do tipo comum. Eu o vi ontem à noite, e ele estava, para dizer no mínimo, perturbado quando deixou minha residência. Tenho motivos para me preocupar e acreditar que ele poderia se machucar e, portanto, sugiro que seu paradeiro seja localizado e sua segurança verificada. Ele é um jovem difícil de gostar, mas acredito que a senhorita veja o bem nele, como eu, Srta. Gray, e é por isso que eu humildemente lhe escrevo esta carta.
Seu servo,
Magnus Bane
P.S.: Se eu fosse você, não compartilharia o conteúdo desta carta com a Sra. Branwell. É só uma sugestão.
M.B.
Após ler a carta de Magnus, ela sentiu como se suas veias estivessem cheias de fogo. De alguma forma, Tessa sobreviveu ao resto da tarde e do jantar sem demonstrar qualquer sinal externo de sua angústia.
Sophie levou um longo tempo agonizantemente para ajudá-la a tirar o vestido, escovar seus cabelos, atiçar o fogo e contar-lhe as fofocas do dia. (O primo de Cyril trabalha na casa dos Lightwood e contou que Tatiana, a irmã de Gabriel e Gideon, poderia retornar de sua lua de mel do continente com seu novo marido a qualquer momento. A família está em um alvoroço, desde que foram espalhados boatos de que ela estaria com uma indisposição desagradável.)
Tessa murmurou algo sobre como ela deve se sentir mal tendo um pai daquele jeito. A impaciência fazia da voz dela um coaxar, e Sophie quase saiu correndo para buscar uma xícara de chá de hortelã para Tessa, que insistiu que estava apenas exausta e precisava dormir mais do que precisava de chá.
No momento em que a porta se fechou atrás de Sophie, Tessa estava de pé, saindo de suas roupas de dormir e colocando um vestido, arrumando-se da melhor forma que poderia com uma jaqueta curta em cima do corpo. Depois de um olhar cauteloso para o corredor, ela saiu de seu quarto em direção ao hall que levava até a porta do quarto de Jem, onde ela bateu tão silenciosamente quanto podia.
Por um momento, nada aconteceu, e ela teve uma preocupação fugaz que ele já tivesse ido dormir, mas depois a porta se abriu e Jem estava ali.
Ela o tinha pego se preparando para ir dormir, ele tinha tirado os sapatos e o casaco, sua camisa estava aberta no colarinho, o cabelo uma bagunça amarrotada e a adorável cor prata. Ela queria chegar perto e alisá-lo para baixo. Ele piscou.
— Tessa?
Sem uma palavra, ela lhe entregou a nota. Jem olhou para cima e para baixo no corredor, então fez um gesto para dentro do quarto. Tessa fechou a porta atrás dele enquanto ele lia o bilhete de Magnus, e, novamente, antes de baixar sua mão, o papel crepitou alto na sala.
— Eu sabia.
Foi a vez de Tessa piscar.
— Sabia o quê?
— Esse não é um tipo comum de ausência — ele sentou-se no baú, ao pé de sua cama e enfiou os pés nos sapatos — eu senti. Aqui — ele colocou a mão sobre o peito — eu sabia que havia algo estranho. Senti como uma sombra em minha alma.
— Você não acha que ele realmente se machucou, não é?
— Machucar a si mesmo, eu não sei. Agora, colocar-se em uma situação em que ele poderia se machucar... — Jem levantou-se — eu devo ir.
— Você não quer dizer “nós”? Você não estava pensando em ir à procura de Will sem mim, não é? — Ela perguntou maliciosamente, e quando ele não disse nada, ela continuou: — Essa carta foi dirigida a mim, James. Eu não tinha que mostrá-la a você.
Ele semicerrou os olhos por um momento, e quando os abriu, estava sorrindo torto.
— James — ele repetiu — normalmente só Will me chama assim.
— Eu sinto muito.
— Não. Não sinta. Gosto do som dele em seus lábios.
Lábios. Havia algo estranho, delicadamente indelicado nesta palavra, como um beijo em si. Ela parecia pairar no ar entre eles, enquanto ambos hesitavam. Mas este é Jem, Tessa pensou em confusão. Jem, não Will, que poderia fazê-la sentir como se estivesse correndo os dedos ao longo de sua pele nua só de olhar para ela.
— Você está certa — Jem disse, limpando a garganta — Magnus não teria te enviado a carta se não tivesse a intenção de que você fosse parte da busca de Will. Talvez ele ache que o seu poder seja útil. Em todo caso... — ele se virou para ela, indo para o seu guarda-roupa e abrindo-o — espere por mim em seu quarto. Eu estarei lá em um momento.
Tessa não tinha certeza se acenara com a cabeça – imaginou que tivesse – e momentos depois se encontrou de volta em seu quarto, encostada na porta.
Seu rosto estava quente, como se ela tivesse estado muito perto de um fogo. Ela olhou em volta. Quando começou a pensar naquele cômodo como o quarto dela? O grande espaço com suas janelas gradeadas e iluminação de pedra enfeitiçada brilhando suavemente era tão diferente do pequeno quarto onde ela tinha dormido em seu apartamento em Nova York, com suas marcas de cera em cima da mesa-de-cabeceira, causadas pelas noites acordada envolvida na leitura à luz de velas, e a cama de madeira com moldura barata e seus cobertores finos. No inverno, as janelas mal fechadas balançavam os quadros quando o vento soprava.
Uma batida suave na porta chamou-a para fora de seu devaneio, e ela se virou, abrindo-a para encontrar Jem na porta. Ele estava completamente vestido em suas roupas de couro para a luta, com casaco e calças pretas, as botas pesadas. Ele colocou um dedo sobre os lábios e fez um gesto para que ela o seguisse.
Eram, provavelmente, dez horas da noite, Tessa adivinhou, e a pedra enfeitiçada estava queimando baixo. Eles tomaram um caminho diferente que serpenteava através dos corredores, não era o que Tessa estava acostumada a tomar para chegar às portas da frente. Sua confusão foi respondida quando eles chegaram a um conjunto de portas no final de um longo corredor. Era um espaço arredondado, e Tessa adivinhou que provavelmente estavam dentro de uma das torres góticas que ficavam em cada um dos cantos do Instituto.
Jem empurrou a porta e ela o seguiu, ele fechou a porta firmemente atrás deles, deslizando a chave que tinha usado de volta para o bolso.
— Este — ele disse — é o quarto de Will.
— Gracioso. Eu nunca estive aqui. Estava começando a imaginar que ele dormia pendurado de cabeça para baixo, como um morcego.
Jem riu e passou por ela, chegando a uma escrivaninha de madeira onde começou a vasculhar seu conteúdo enquanto Tessa olhava ao redor.
Seu coração estava batendo rápido, como se estivesse vendo algo que não era para ela ver, como um segredo oculto de Will. Ela disse a si mesma para não ser estúpida, que era apenas um quarto, com os mesmos móveis pesados escuros como todas as outras salas do Instituto.
Estava uma bagunça, o cobertor estava chutado para baixo ao pé da cama, roupas jogadas sobre as costas das cadeiras, um recipiente cheio de líquidos equilibrado precariamente no criado-mudo. E em todos os lugares havia livros – livros sobre as mesas, na cama, em pilhas no chão, livros alinhados em prateleiras ao longo das paredes.
Jem vasculhou, enquanto Tessa vagou pelas prateleiras e olhou com curiosidade para os títulos. Não estava surpresa ao descobrir que eram quase todos de ficção e poesia. Alguns eram títulos em idiomas que não podia ler. Ela reconheceu latim e alfabeto grego. Havia também livros de contos de fadas; As mil e uma noites; o trabalho de James Payn; The vicar of Bullhampton, de Anthony Trollope; Remédios desesperados, de Thomas Hardy, uma pilha de Wilkie Collins – Dois destinos, The new Magdalen, The law and the lady; e um novo romance de Júlio Verne intitulado The child of the cavern que ela se coçava para pegá-lo em suas mãos. E então, lá estava ele, Um conto de duas cidades.
Com um sorriso triste, ela ergueu o braço para tirá-lo da prateleira. Quando puxou o livro, vários papéis rabiscados que tinham sido pressionados entre as capas caíram no chão. Ela ajoelhou-se para pegá-los e congelou. Ela reconheceu a letra instantaneamente. Era dela própria.
Sua garganta apertou quando ela folheou as páginas. Caro Nate, ela leu. Tentei mudar hoje, e falhei. Foi uma moeda que me deram, e eu não consegui nada com isso. Ou ela nunca foi propriedade de uma pessoa, ou o meu poder se enfraqueceu. Eu não me importaria, mas eles me chicotearam – você já foi chicoteado antes? Não, uma pergunta boba. Claro que você não foi. Parece que estão colocando linhas de fogo sob toda a sua pele. Eu tenho vergonha de dizer que chorei, e você sabe como eu odeio chorar... E outra: Querido Nate, eu pensei tanto em você hoje, pensei que eu fosse morrer. Se você se foi, não há ninguém no mundo que se importa se estou viva ou morta. Sinto-me dissolvendo, desaparecendo no nada, pois se não há no mundo alguém que cuide de você, você realmente existe?
Estas eram as cartas que ela havia escrito ao seu irmão na Casa Sombria, sem esperar que Nate fosse lê-las, sem esperar que alguém fosse lê-las. Eram mais um diário do que bilhetes, o único lugar onde ela poderia derramar seu horror, sua tristeza e seu medo. Sabia que tinham sido encontradas, que Charlotte tinha lido, mas o que estavam fazendo aqui no quarto de Will, de todos os lugares, escondida entre as páginas de um livro?
— Tessa.
Era Jem. Ela virou-se rapidamente, deslizando as cartas no bolso de seu casaco. Jem estava junto à mesa, segurando uma faca de prata na mão.
— Pelo Anjo, este lugar é uma bagunça, eu não tinha certeza se seria capaz de encontrá-lo — ele virou-o em suas mãos — Will não trouxe muita coisa de casa quando veio para cá, mas temos isso aqui. É um punhal que seu pai lhe deu. Ele tem as marcas das aves Herondale sobre a lâmina. Deve ter um significado muito forte para ele ter guardado.
Apesar das palavras de incentivo, ele estava franzindo a testa.
— O que há de errado? — Tessa perguntou, cruzando o quarto.
— Eu encontrei outra coisa. Will sempre foi o único a comprar meu... meu remédio. Ele sabia que eu desprezava toda a transação, encontrar os feiticeiros dispostos a vendê-lo, pagar pelo material... — Seu peito subia e descia rapidamente, como se apenas falar sobre isso o enojasse. — Eu lhe dava dinheiro, e ele ia. Eu encontrei uma nota, porém, da última transação. Parece que a droga não custa o que eu pensei que custasse.
— Você quer dizer que Will te enganou para ganhar dinheiro? — Tessa ficou surpreendida.
Will podia ser terrível e cruel, ela sabia, mas pensou que fosse uma crueldade de ordem mais refinada do que isso. Menos mesquinho. E fazer isso a Jem, de todas as pessoas...
— Muito pelo contrário. Os medicamentos custam muito mais do que ele disse que custavam. Ele deve ter completado a diferença de alguma forma — ainda carrancudo, ele deslizou o punhal no cinto — eu o conheço melhor do que ninguém no mundo — disse com sua naturalidade — e ainda assim, acho que Will tem segredos que me surpreendem.
Tessa pensou no poema na capa do livro de Dickens, e o que ela pretendia dizer a Will quando o visse novamente.
— Na verdade. Esse não é nenhum mistério, é? Will faria qualquer coisa por você .
— Não tenho certeza se eu faria isso também — o tom de Jem foi irônico.
— Claro que faria. Qualquer um faria. Você é tão gentil e tão bom...
Ela se interrompeu, mas os olhos de Jem já tinham se arregalado. Ele pareceu surpreso, como se nunca tivesse escutado tal elogio, mas com certeza deve ter escutado, Tessa pensou em confusão. Certamente todos que o conheciam sabiam da sorte que tinham. Ela sentiu o rosto começar a esquentar novamente, e se amaldiçoou. O que estava acontecendo?
Um chocalhar fraco veio da janela; Jem olhou depois de um momento de pausa.
— Isso deve ser Cyril — Jem falou, e havia um tom, levemente áspero em sua voz — e-eu pedi-lhe para trazer a carruagem para nós. É melhor irmos.
Tessa assentiu, sem palavras, e seguiu-o para fora.
***
Quando Jem e Tessa saíram do Instituto, as rajadas de vento ainda continuavam, enviando folhas secas em círculos como fadas dançando. O céu estava pesado, com um nevoeiro amarelo, a lua era um dourado por trás dele. As palavras em latim nas portas do Instituto pareciam brilhar na luz da lua: somos pó e sombras.
Cyril estava esperando com a charrete, e os dois cavalos, Balios e Xanthos, pareciam aliviados ao vê-los. Ele ajudou Tessa a subir na carruagem e Jem a seguiu, então foi para o banco do motorista.
Tessa sentou do lado oposto ao de Jem, e assistiu com fascinação quando ele tirou a adaga e a estela do cinto. Segurando o punhal na mão direita, ele desenhou uma runa na parte de trás da mão com a ponta de sua estela. Tessa olhou todas aquelas marcas, uma onda de linhas ondulantes ilegíveis, circulando ao redor para se conectar com outro em um padrão negro.
Jem olhou para sua mão por um longo momento, então fechou os olhos, o rosto ainda com intensa concentração. Assim os nervos de Tessa começaram a gritar com impaciência, seus olhos se abriram.
— Brick Lane, perto da Avenida Whitechapel — ele falou meio que para si mesmo, retornando o punhal e a estela ao cinto.
Ele se inclinou para fora da janela, e ela ouviu-o repetir as palavras para Cyril. Um momento depois Jem estava de volta para dentro, fechando a janela contra o ar frio, e eles estavam andando nas ruas de paralelepípedos.
Tessa respirou fundo. Ela esteve ansiosa para procurar Will durante todo o dia, preocupada com ele, perguntando-se onde ele estava, mas agora que eles estavam indo para o coração negro de Londres, tudo o que sentia era medo.
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