Epílogo

Digo que o túmulo no qual o morto está fechado
Abre o salão Celestial;
E o que colocamos aqui para o fim de tudo
É o primeiro passo de tudo.
– Victor Hugo, At Villequier

Londres, Ponte Blackfriars, 2008

O vento estava forte, soprando poeira e sujeira – sacos de salgadinho, páginas de jornal, velhas receitas – pela calçada enquanto Tessa olhava rapidamente de um lado para o outro, a fim de verificar o trânsito e atravessar a Ponte Blackfriars.
Para qualquer passante, ela pareceria uma garota normal, no final da adolescência ou com 20 e poucos anos: jeans para dentro das botas, casaco de cashmere que comprou na liquidação de janeiro, e cabelos longos e castanhos, que ondulavam um pouco pelo tempo úmido, batendo em suas costas. Se a pessoa fosse muito ligada em moda, presumiria que seu cachecol fosse uma imitação e não um original Liberty de cem anos, e que a pulseira no braço era uma antiguidade, e não um presente que recebeu do marido ao completar trinta anos de casamento.
Os passos de Tessa desaceleraram ao alcançar um dos intervalos de pedra na parede da ponte. Agora havia bancos de cimento nela, para que fosse possível sentar e olhar para a água verde cinzenta batendo na ponte ou para a catedral de São Paulo ao longe. A cidade estava viva com o barulho – ruídos do trânsito: buzinas, ônibus de dois andares; dezenas de celulares tocando; conversas de pedestres; ruídos fracos de música vazando de fones de iPod.
Tessa se sentou no banco, puxando as pernas para si. A atmosfera estava surpreendentemente limpa e clara – a fumaça e a poluição que deixavam o ar amarelo e preto quando ela era menina desapareceram, e o céu tinha a cor de um mármore azul cinzento. O horror que era a ponte Dover End Chathan também não existia mais; apenas os pilares ainda ficavam na água como um estranho lembrete do que um dia havia sido. Boias amarelas flutuavam na água agora, barcos de turistas passavam, as vozes amplificadas dos guias turísticos vazavam por alto-falantes. Ônibus tão vermelhos quanto balinhas de coração corriam pela ponte levantando folhas mortas que voavam sobre o meio-fio.
Ela olhou para o relógio no pulso. Cinco para meio-dia. Chegou um pouco cedo, mas ela sempre chegava cedo para o encontro anual. Tinha uma chance de pensar – pensar e lembrar, e não havia lugar melhor para isso do que aqui, na Ponte Blackfriars, o primeiro local onde realmente conversaram.
Ao lado do relógio, a pulseira de pérolas que sempre usava. Ela nunca a tirava. Will lhe dera de presente de trinta anos de casados, sorrindo ao colocá-la. Naquela época, ele tinha cabelos grisalhos, ela sabia, apesar de nunca reparar. Como se seu amor tivesse dado a ele sua própria habilidade de alterar a forma, independentemente de quanto tempo passasse, quando olhava para ele, sempre via o menino selvagem de cabelos negros por quem se apaixonou.
Ainda lhe parecia incrível que tivessem conseguido envelhecer juntos, ela e Will Herondale, que Gabriel Lightwood uma vez disse que jamais viveria além dos 19 anos. Foram bons amigos dos Lightwood ao longo de todos os anos.
Claro que Will não podia deixar de ser amigo do homem que casou com sua irmã. Tanto Cecily quanto Gabriel viram Will no dia que ele morreu, assim como Sophie, apesar de Gideon já ter morrido há alguns anos. Tessa se lembrava claramente daquele dia, o dia em que os Irmãos do Silêncio disseram que não teriam mais o que fazer para manter Will vivo. Naquele momento, ele já não conseguia mais sair da cama. Tessa esticou os ombros e foi transmitir a notícia à família e aos amigos, tentando se manter o mais calma possível por eles, apesar da sensação de que seu coração estava sendo arrancado do peito.
Foi em junho, no verão de 1937, e, com as cortinas abertas, o quarto estava cheio de luz do sol, luz do sol e os filhos de Tessa e Will, os netos, sobrinhas e sobrinhos – os meninos de olhos azuis de Cecy, altos e bonitos, as meninas de Gideon e Sophie – e aqueles que eram tão próximos quanto a família: Charlotte, de cabelos brancos e presos, e os filhos e filhas dos Fairchild, com seus cabelos ruivos e cacheados como outrora foram os de Henry.
Durante todo o dia, Tessa ficou sentada na cama ao lado de Will, deitado no ombro da esposa. A imagem poderia ter parecido estranha aos outros, uma jovem com um homem que parecia velho o bastante para ser seu avô, de mãos dadas, mas, na família deles, era normal – eram Tessa e Will. E por serem Tessa e Will, pessoas entraram e saíram durante todo o dia, como faziam os Caçadores de Sombras no leito de morte, contando histórias sobre a vida de Will e todas as coisas que ele Tessa fizeram durante seus longos anos juntos.
Os filhos falaram carinhosamente sobre como o pai sempre amou a mãe, feroz e dedicadamente, sobre como ele jamais teve olhos para mais ninguém, e sobre como eles deram o exemplo para o tipo de amor que esperavam encontrar um dia. Falaram sobre livros com grande apreço, e sobre como ele os ensinou a amar as leituras também, a respeitar a página escrita, e a admirar as histórias que contavam. Falaram sobre como ele ainda praguejava em galês quando derrubava alguma coisa, apesar de raramente utilizar a língua, e sobre como tinha excelente prosa – escreveu várias histórias sobre Caçadores de Sombras depois que se aposentou e foi muito respeitado – e como sua poesia sempre foi péssima, embora isso nunca o tenha impedido de recitá-las.
O filho mais velho, James, falou alegremente sobre o medo de patos, e sobre a batalha contínua para mantê-los longe do lago da casa da família em Yorkshire. Os netos se lembraram da música que ele ensinou sobre varíola demoníaca – quando eram jovens demais, Tessa sempre achou – e que todos decoraram. Cantaram juntos e fora de tom, escandalizando Sophie.
Com lágrimas correndo, Cecily lembrou o momento de seu casamento com Gabriel, quando ele fez um belo discurso elogiando o noivo, ao fim do qual anunciou:
— Meu Deus, achei que estivesse se casando com Gideon. Retiro tudo o que disse.
Com isso, envergonhou não apenas Cecily e Gabriel, mas Sophie também – e Will, apesar de cansado demais para rir, sorriu para a irmã e segurou sua mão. Todos riram sobre seu hábito de levar Tessa em “férias” românticas a locais de livros góticos, inclusive aquela terrível montanha onde alguém morreu, um castelo mal-assombrado e, claro, a praça em Paris onde ele concluiu que Sidney Carton tinha sido guilhotinado, e Will chocou um passante ao gritar em francês:
— Estou vendo sangue nas pedras!
Ao fim do dia, o céu havia escurecido, a família se reuniu em torno da cama de Will, e todos o beijaram, um por um, até Will e Tessa ficarem sozinhos.
Tessa deitou ao lado dele e passou o braço por baixo de sua cabeça, apoiando a cabeça em seu peito, escutando os batimentos cada vez mais fracos. E no escuro sussurraram, lembrando as histórias que só eles sabiam. Sobre a menina que jogou um jarro de água na cabeça do rapaz que foi resgatá-la, sobre como ele se apaixonou por ela naquele instante. Sobre um baile e uma varanda, e a lua navegando como um navio pelo céu. Sobre as batidas das asas de um anjo mecânico. Sobre água benta e sangue.
Perto da meia-noite a porta se abriu, e Jem entrou. Tessa supunha que àquela altura já deveria pensar nele como Irmão Zacarias, mas nem Tessa nem Will jamais o chamaram assim. Ele entrou como uma sombra em suas vestes brancas, e Tessa respirou fundo ao vê-lo, pois sabia que era por isso que Will esperava, e que a hora era aquela.
Ele não foi diretamente para Will, mas atravessou o quarto até uma caixa de madeira que ficava no topo da cômoda. Para sempre guardaram o violino de Jem, como Will havia prometido. Era mantido limpo e em perfeito estado, e as dobradiças do estojo não rangeram quando Jem abriu e pegou o instrumento.
Eles olharam enquanto pegava o arco com seus dedos esguios e familiares, os pulsos pálidos desaparecendo sob o tecido ainda mais pálido da túnica dos Irmãos.
Então, ele levou o violino ao ombro e ergueu o arco. E tocou.
Zhi yin. Certa vez, Jem dissera a Tessa que isso significava entender a música e também um laço mais profundo que a amizade. Jem tocou e tocou os anos da vida de Will como os enxergava. Tocou os dois meninos em uma sala de treinamento, um ensinando ao outro a arremessar facas, tocou o ritual de parabatai: o fogo, os votos e os símbolos ardentes. Tocou dois rapazes correndo pelas ruas de Londres no escuro, parando para se apoiar contra uma parede e rir. Tocou o dia na biblioteca em que ele e Will brincaram com Tessa sobre patos, tocou o trem para Yorkshire no qual Jem falou que parabatai eram feitos para se amar como amavam as próprias almas. Tocou esse amor e tocou o amor de ambos por Tessa, o dela por eles, e tocou Will dizendo, em seus olhos, sempre encontrei a graça. Tocou as pouquíssimas vezes que os viu desde que entrou para a Irmandade – os breves encontros no Instituto; a vez em que Will foi mordido por um demônio Shax e quase morreu, e Jem veio da Cidade do Silêncio para passar a noite ao lado dele, arriscando ser descoberto e punido. Tocou o nascimento do primeiro filho e a cerimônia de proteção aplicada na criança na Cidade do Silêncio. Will não aceitou que nenhum Irmão do Silêncio a executasse, além de Jem. E Jem tocou a maneira por que cobriu o rosto marcado com as mãos e virou as costas ao descobrir que o nome da criança era James. Tocou amor e perda e anos de silêncio, palavras não ditas e votos não pronunciados, e todo o espaço entre seu coração e os deles; e, ao terminar, guardou o violino na caixa.
Os olhos de Will estavam fechados, mas os de Tessa, cheios de lágrimas. Jem pousou o arco e foi para perto da cama, tirando o capuz, de modo que ela viu seus olhos fechados e o rosto com cicatrizes. Ele se sentou ao lado deles na cama, pegou a mão de Will, a que Tessa não estava segurando, e tanto Will quanto Tessa ouviram a voz de Jem em suas mentes.
Pego sua mão, irmão, para que possa ir em paz.
Will abriu os olhos azuis que nunca perderam a cor ao longo dos anos e olhou para Jem, depois para Tessa. Em seguida sorriu e morreu, com a cabeça de Tessa em seu ombro e a mão na mão de Jem.
Lembrar-se da morte de Will nunca deixava de doer. Depois que ele se foi, Tessa fugiu. Seus filhos eram crescidos e tinham os próprios filhos; ela disse a si mesma que não precisavam dela e escondeu no fundo da mente o pensamento que a assombrava: não suportaria ficar e vê-los envelhecer mais do que ela. Uma coisa era sobreviver à morte do marido. Sobreviver à morte dos filhos – não podia ficar ali e assistir. Aconteceria, tinha de acontecer, mas não estaria presente.
Além disso, tinha algo que Will havia lhe pedido.
A estrada que levava de Shrewsbury a Welshpool não ficava no mesmo lugar de outrora quando Will a percorreu em uma busca insana para salvá-la de Mortmain. Will deixara instruções, detalhes, descrições de cidades, de um certo grande carvalho. Ela subiu e desceu a estrada diversas vezes em seu carro antes de encontrá-la: a árvore, exatamente como ele havia desenhado no diário que lhe deu. A mão tremia um pouco, mas a memória era perfeita.
A adaga estava ali, entre as raízes das árvores que cresceram ao redor do cabo. Ela precisou cortar algumas, cavar a terra e as pedras com uma espátula antes de conseguir libertá-la. A lâmina de Jem agora estava manchada pelo clima e pela passagem do tempo. Entregou-a a Jem naquele ano, na ponte. Era 1937 e ainda não tinha ocorrido o bombardeio dos nazistas que destruiu os prédios ao redor da catedral de São Paulo, enchendo o céu com fogo e queimando os muros da cidade que Tessa amava. Mesmo assim, havia uma sombra sobre o mundo, o indício de que a escuridão se aproximava.
— Eles se matam e se matam, e não podemos fazer nada — dissera Tessa, com as mãos sobre a pedra do parapeito da ponte.
Estava pensando na Grande Guerra e no desperdício de vidas. Não era uma guerra de Caçadores de Sombras, mas de sangue e guerra nasciam demônios, e era responsabilidade dos Nephilim impedir que os demônios causassem ainda mais destruição.
Não podemos salvá-los deles próprios, Jem havia respondido. Estava com o capuz levantado, mas o vento soprou, mostrando a Tessa o lado da bochecha com a cicatriz.
— Algo se aproxima. Um horror que Mortmain só poderia imaginar. Sinto nos meus ossos.
Ninguém pode livrar o mundo de todo o mal, Tessa.
E quando ela pegou sua adaga do bolso do casaco, embrulhada em seda, apesar de ainda suja e manchada pela terra e pelo sangue de Will, e a entregou a ele, ele abaixou a cabeça, curvando os ombros sobre o objeto como se protegesse um ferimento no coração.
— Will queria que visse — disse ela — sei que não pode levá-la com você.
Guarde-a para mim. Pode chegar o dia.
Ela não perguntou a ele o que aquilo queria dizer, mas guardou. Guardou quando foi embora da Inglaterra, dos penhascos de Dover, deixando as nuvens para trás ao cruzar o Canal. Em Paris, encontrou Magnus, que agora vivia em um apartamento e pintava, uma ocupação para a qual não tinha a menor aptidão. Ele permitiu que ela dormisse em um colchão perto da janela, e, à noite, quando acordava gritando o nome de Will, ele vinha e a abraçava, cheirando a turpentina.
— O primeiro é sempre o mais difícil — falou ele.
— O primeiro?
— O primeiro dos seus amores a morrer — disse ele. — Depois fica mais fácil.
Quando a guerra chegou a Paris, foram juntos para Nova York, e Magnus a reapresentou a cidade onde ela nasceu – uma metrópole ocupada, agitada e brilhante que ela mal reconheceu, onde carros lotavam as ruas como formigas e trens corriam por plataformas elevadas. Ela não viu Jem naquele ano, porque a Luftwaffe estava bombardeando Londres e eles concordaram que seria muito perigoso se encontrarem, mas nos anos seguintes...
— Tessa?
O coração dela parou.
Uma grande onda de tontura passou por ela, e, por um instante, ficou imaginando se estaria enlouquecendo, se depois de tantos anos o passado e o presente se misturaram em suas lembranças até não conhecer mais a diferença.
Pois a voz que ouviu não era a voz suave, silenciosa e mental do Irmão Zacarias. A voz que ecoava em sua mente uma vez por ano há 130 anos. Esta foi uma voz que trouxe lembranças espalhadas por anos de recordações, como papel dobrado e desdobrado muitas vezes. Uma voz que trouxe de volta, como uma onda, a lembrança de outro tempo na ponte, uma noite há tantos anos, tudo preto e prata, e o rio correndo sob seus pés...
Seu coração batia tão forte que ela teve a sensação de que fosse romper suas costelas. Lentamente virou para longe do corrimão. E encarou.
Ele estava no asfalto em frente a ela, sorrindo timidamente, as mãos nos bolsos de um jeans moderno. Vestia um casaco azul de algodão, as mangas puxadas até os cotovelos. Marcas brancas desbotadas como bordados decoravam os antebraços. Viu a forma do símbolo da Quietude que outrora fora tão negra e forte contra sua pele e agora não passava de uma marca prateada.
— Jem? — sussurrou ela, percebendo por que não o viu ao procurá-lo na multidão.
Estava procurando o Irmão Zacarias, com a túnica clara, movendo-se de forma invisível pelo bando de londrinos. Mas este não era o Irmão Zacarias.
Era Jem.
Não conseguiu desgrudar o olhar dele. Sempre achou Jem lindo. E não era menos bonito agora. Houve um tempo em que teve cabelos branco-prateados e olhos como céus cinzentos. Este Jem tinha cabelos negros, que ondulavam singelamente no ar úmido, e olhos castanho-escuros com faíscas douradas nas íris. Houve um tempo em que teve a pele pálida; agora ela tinha cor. Onde tivera o rosto marcado ao se tornar um Irmão do Silêncio, havia duas cicatrizes escuras, os primeiros símbolos da Irmandade, destacando-se sombrias e escuras no arco de cada bochecha. Onde o colarinho do casaco mergulhava singelamente, ela viu a forma delicada do símboloparabatai que um dia o ligou a Will. Que talvez ainda ligasse, se a pessoa imaginasse que almas poderiam ser ligadas mesmo após a morte.
— Jem — suspirou ela novamente.
À primeira vista, ele parecia ter 19, ou 20 anos, um pouco mais velho do que quando se tornou Irmão do Silêncio. Quando olhou com mais cuidado, viu um homem, os longos anos de dor e sabedoria por trás de seus olhos; até a forma como se mexia transmitia cuidado e sacrifício silencioso.
— Você... — A voz de Tessa subiu um tom, com esperança. — Isto é permanente? Não está mais ligado aos Irmãos do Silêncio?
— Não — respondeu ele, e arfou singelamente; ele olhava para ela como se não fizesse ideia de como ela iria reagir à sua súbita aparição. — Não estou.
— A cura... você encontrou?
— Não encontrei pessoalmente — respondeu devagar — mas... foi encontrada.
— Encontrei Magnus em Alicante há apenas alguns meses. Falamos de você. Ele não disse...
— Ele não sabia — disse Jem — foi um ano difícil, um ano sombrio para os Caçadores de Sombras. Mas, do sangue e do fogo, da perda e da tristeza, nasceram algumas grandes mudanças — ele estendeu os braços e, com um pouco de assombro na própria voz, disse: — eu mesmo mudei.
— Como...
— Vou contar a história. Outra história envolvendo Lightwood, Herondale e Fairchild. Mas vou levar mais de uma hora nisso, e você deve estar com frio.
Ele avançou, como se pretendesse tocá-la no ombro, depois pareceu se lembrar e abaixou a mão.
— Eu... — Tessa ficou sem palavras.
Ainda estava chocada por vê-lo assim, em carne e osso. Sim, ela o via todos os anos, neste mesmo lugar, nesta ponte. Mas só agora percebeu que vinha encontrando um Jem transmutado. Agora, isto era como cair no próprio passado, como se o último século tivesse sido apagado, e ela ficou tonta, alegre e apavorada.
— Mas... depois de hoje? Para onde vai? Para Idris?
Por um instante, ele pareceu verdadeiramente espantado – e, apesar da idade que ela sabia que ele tinha, pareceu tão jovem.
— Não sei — disse ele. — Nunca tive um plano antes.
— Então... para outro Instituto? — Não vá, queria dizer TessaFique. Por favor.
— Acho que não vou para Idris nem para Instituto algum — falou, depois de uma pausa tão longa, na qual parecia que os joelhos de Tessa iam sucumbir se ele não falasse. — Não sei como viver em um mundo sendo Caçador de Sombras sem Will. E acho que nem quero. Ainda sou um parabatai, mas minha outra metade se foi. Se eu fosse para algum Instituto pedir abrigo, jamais me esqueceria disso. Jamais me sentiria inteiro.
— Então o que...
— Depende de você.
— De mim? — Uma espécie de pânico a dominou.
Ela sabia o que queria dizer para ele, mas parecia impossível. Durante todo o tempo em que o viu, desde que se tornou um Irmão do Silêncio, ele pareceu distante. Não era ruim nem insensível, mas parecia haver uma camada de vidro entre ele e o mundo. Ela se lembrava do menino que conhecera, que distribuía amor tão livremente quanto respirava, mas aquele não era o homem com quem se encontrou uma vez por ano por mais de um século. Sabia quanto tempo havia se passado e como ela havia mudado. Quanto ele teria mudado? Não sabia o que ele queria desta nova vida ou, mais imediatamente, dela. Tessa queria falar o que ele quisesse ouvir, queria pegá-lo e abraçá-lo, segurá-lo pelas mãos e se lembrar de sua forma, mas não ousou. Não sem saber o que ele queria dela. Fazia tanto tempo. Como poderia presumir que ele se sentia como outrora?
— Eu... — Ele olhou para baixo, para as próprias mãos esguias, agarrando o concreto da ponte. — Há 130 anos, todas as horas da minha vida foram programadas. Pensava tanto no que faria se fosse livre, se algum dia uma cura fosse encontrada. Achei que fosse voar imediatamente, como um pássaro solto de uma gaiola. Não imaginava que fosse emergir em um mundo tão mudado, tão desesperado. Subordinado a fogo e sangue. Quis sobreviver a ele, mas por apenas um motivo. Queria...
— O que você queria?
Ele não respondeu. Em vez disso, esticou o braço e tocou sua pulseira de pérola.
— Este é o seu presente do aniversário de trinta anos de casamento — disse ele. — Ainda o usa.
Tessa engoliu em seco. Sua pele estava coçando, e o pulso acelerando. Percebeu que não sentia isso, esta agitação, há tantos anos que quase se esquecera.
— Sim.
— Desde Will, nunca mais amou ninguém?
— Não sabe a resposta?
— Não falo da forma como ama seus filhos ou seus amigos. Tessa, você sabe o que estou perguntando.
— Não sei — disse ela. — Acho que preciso que me responda.
— Íamos nos casar — falou ele. — E eu a amei por todo esse tempo, um século e meio. E sei que amava Will. Eu os vi juntos ao longo dos anos. E sei que aquele amor era tão forte que deve ter transformado outros amores, mesmo o nosso, em pequenos e insignificantes. Você teve uma vida de amor com ele, Tessa. Tantos anos. Filhos. Lembranças que não posso querer...
Ele se interrompeu com um susto violento.
— Não — falou, e soltou o pulso de Tessa — não posso. Fui um tolo em pensar... Tessa, me perdoe — disse Jem, e se afastou dela, misturando-se ao bando de pessoas na ponte.
Tessa ficou parada em choque por um momento; foi apenas um momento, mas o suficiente para que ele sumisse na multidão. Ela esticou a mão para se equilibrar. A pedra da ponte era fria sob seus dedos – fria, exatamente como na primeira noite que vieram aqui, na primeira vez em que conversaram. Ele foi a primeira pessoa para quem Tessa revelou seu maior medo: de que seu poder a tornasse algo não humano. Você é humana, dissera ele. De todas as formas que importam.
Ela se lembrou dele, do adorável menino moribundo que se dispôs a confortar uma menina assustada que sequer conhecia, e não falou nenhuma palavra sobre o próprio medo. Claro que ele havia deixado as digitais no coração dela. Como não?
Ela se lembrou da vez em que ele lhe ofereceu o pingente de jade de sua mãe, entregue por uma mão trêmula. Lembrou-se de beijos em uma carruagem. Lembrou-se de entrar no quarto dele, banhado pela luz do luar, o menino prateado diante da janela tocando uma música mais linda que o desejo com o violino.
Will, ele havia dito. É você, Will?
Will. Por um instante, o coração de Tessa hesitou. Lembrou-se da morte de Will, da própria agonia, das longas noites sozinha, apalpando o outro lado da cama todas as manhãs ao acordar, durante anos esperando encontrá-lo ali, e somente aos poucos se acostumando ao fato de que aquele lado da cama ficaria eternamente vazio. Quando achava alguma coisa engraçada olhava para compartilhar com ele, apenas para se surpreender novamente com sua ausência. Os piores momentos eram quando, no café da manhã sozinha, percebia que havia se esquecido do exato tom de azul dos seus olhos ou da profundidade de sua risada; que, assim como a música do violino de Jem, tinham se desbotado ao longe onde as lembranças são silenciosas.
Jem era mortal agora. Envelheceria como Will e, como Will, morreria, e ela não sabia se poderia suportar outra vez.
Mesmo assim.
A maioria das pessoas tem sorte se encontra um grande amor na vida. Você encontrou dois.
De repente, seus pés estavam se movendo, quase automaticamente. Ela estava correndo em meio à multidão, passando por estranhos, pedindo desculpas ao quase tropeçar em um passante ou atingi-lo com os cotovelos. Não se importava. Estava correndo pela ponte, parando ao fim, onde diversos degraus estreitos de pedra levavam à água do Tâmisa.
Desceu dois de cada vez, quase escorregando na pedra. No último degrau, havia uma pequena doca de cimento, com uma grade de metal. O rio estava alto e batia entre as aberturas do metal, preenchendo o pequeno espaço com cheiro de lodo e água do rio.
Jem estava na grade, olhando para a água. Mantinha com as mãos nos bolsos, os ombros curvados como se estivesse se protegendo de um vento forte. Olhava para a frente quase cegamente e com uma atenção tão fixa que não pareceu ouvi-la se aproximar por trás. Ela o pegou pela manga, virando-o para encará-la.
— O quê? — perguntou ela sem ar. — O que está tentando me perguntar, Jem?
Os olhos dele se arregalaram. Suas bochechas estavam ruborizadas, mas ela não sabia ao certo se era pela corrida ou pelo ar frio. Ele olhou para ela como se Tessa fosse alguma planta bizarra que cresceu subitamente, espantando-o.
— Tessa... você me seguiu?
— Claro que segui. Você correu no meio de uma frase!
— Não era uma boa frase. — Ele olhou para o chão, depois novamente para Tessa, com um sorriso tão familiar quanto as lembranças que Tessa tinha se formando nos cantos da boca. Então, voltou à memória uma lembrança perdida, porém não esquecida: o sorriso de Jem sempre foi como o sol. — Nunca fui bom com palavras — disse ele. — Se tivesse meu violino, poderia tocar o que quero dizer.
— Tente.
— Não... não sei se consigo. Tinha seis ou sete discursos preparados e estava passando por todos eles, eu acho.
Estava com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Tessa esticou os braços e o pegou gentilmente pelos pulsos.
— Bem, eu sou boa com palavras — falou ela. — Então deixe-me perguntar.
Ele tirou as mãos dos bolsos e permitiu que ela envolvesse os dedos sobre seus pulsos. Ficaram parados, Jem olhando para ela sob os cabelos negros – o vento os soprara para o rosto. Ainda tinha uma mecha prateada contra o preto, o que chamava a atenção.
— Você me perguntou se amei alguém além de Will — disse Tessa — e a resposta é sim. Eu te amei. Sempre amei e sempre vou amar.
Ela o ouviu respirar fundo. A garganta de Jem pulsava de modo visível sob a pele pálida que ainda tinha marcas brancas dos símbolos da Irmandade.
— Dizem que não é possível amar duas pessoas igualmente ao mesmo tempo — ela continuou — e talvez para os outros isso seja verdade. Mas você e Will... não são pessoas comuns, duas pessoas que teriam ciúme uma da outra ou que imaginariam meu amor por um diminuído pelo amor pelo outro. Fundiram suas almas quando eram crianças. Eu não teria amado Will tanto quanto amei se não te amasse também. E não poderia amar você se não tivesse amado Will como amei.
Seus dedos circularam levemente os pulsos de Jem, abaixo dos punhos do casaco. Tocá-lo assim – era tão estranho; no entanto, isso a fez querer tocá-lo mais. Tinha quase se esquecido da falta que fazia o toque de alguém que amava.
Tessa se forçou a soltá-lo, no entanto, e alcançou o colarinho da própria blusa. Cuidadosamente pegou a corrente que usava no pescoço e a levantou para que ele pudesse ver, pendurado, o pingente de jade que lhe dera há tanto tempo. A inscrição no verso ainda brilhava como se fosse nova: Quando duas pessoas são uma em seus corações, destroem até mesmo a força do ferro ou do bronze.
— Você se lembra de que deixou isso comigo? — perguntou ela. — Nunca tirei.
Ele fechou os olhos. Os cílios se apoiaram nas maçãs do rosto, longos e finos.
— Todos esses anos — disse ele, e sua voz soou baixa como um sussurro, e não era a voz do menino que ele outrora havia sido. Mas ainda era uma voz que Tessa amava. — Por todos esses anos, você usou? Eu nunca soube.
— Eu achava que só seria um fardo para você enquanto era um Irmão do Silêncio. Temi que pensasse que usá-lo queria dizer que eu tinha alguma espécie de expectativa em relação a você. Uma expectativa que você não pudesse atender.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo. Tessa ouviu a corrente do rio, o trânsito ao longe. Tinha a impressão de poder escutar as nuvens se movendo no céu. Cada fibra do seu corpo gritava para que ele falasse, mas Tessa esperou: esperou enquanto as expressões se debatiam no rosto de Jem até que ele finalmente falou.
— Ser um Irmão do Silêncio — começou — é, ao mesmo tempo, ver tudo e não ver nada. Eu enxergava o grande mapa da vida, espalhado diante dos meus olhos. Via as correntes do mundo. E a vida humana começou a parecer uma espécie de encenação, interpretada ao longe. Quando tiraram meus símbolos, quando o manto da Irmandade foi removido, foi como se eu tivesse acordado de um longo sonho, ou como se um escudo de vidro que me cercava tivesse se estilhaçado. Senti tudo de uma vez, correndo sobre mim. Toda a humanidade que os feitiços da Irmandade me tiraram. Se tanta humanidade voltou a mim... é por sua causa. Se eu não tivesse você, Tessa, se não tivesse guiado meus anos a partir desses encontros anuais, não sei se teria conseguido voltar.
Havia uma luz nos olhos escuros de Jem agora, e o coração de Tessa voou no peito. Ela só amou dois homens na vida, e nunca achou que fosse voltar a vê-los.
— Mas voltou — sussurrou ela — e é um milagre. E você se lembra do que lhe disse certa vez sobre milagres.
Ele sorriu novamente.
— “E milagres não se questionam, nem reclamamos quando não são exatamente como gostaríamos.” Suponho que seja verdade. Gostaria de ter voltado mais cedo. Gostaria de ser o mesmo menino que você amou um dia. Temo que esses anos tenham me transformado em outra pessoa.
Tessa examinou o rosto de Jem. Ao longe, ouvia os ruídos do trânsito, mas aqui, à beira do rio, quase conseguia imaginar que era uma garota outra vez, e o ar cheio de névoa e fumaça, o barulho das ferrovias...
— Os anos também me mudaram — disse ela. — Fui mãe e avó, e vi a morte daqueles que amo, e outros nascendo. Você fala das correntes do mundo. Eu também as vi. Se ainda fosse a mesma menina que você conheceu, não teria conseguido falar tão abertamente com você como acabei de fazer. Não seria capaz de pedir o que vou pedir.
Ele levantou a mão e a acariciou na bochecha. Tessa viu a esperança no rosto de Jem, surgindo lentamente.
— O quê?
— Venha comigo — disse ela. — Fique comigo. Esteja comigo. Veja tudo comigo. Viajei o mundo e vi tanta coisa, mas há tantas outras, e não poderia escolher melhor companhia. Eu iria a todos os lugares e a qualquer lugar com você, Jem Carstairs.
O polegar dele deslizou pelo arco da maçã do rosto de Tessa. Ela estremeceu. Há tanto tempo ninguém a olhava daquele jeito, como se ela fosse a maior maravilha do mundo, e ela sabia que estava olhando para ele da mesma forma.
— Parece irreal — disse Jem, com voz rouca. — Faz tanto tempo que a amo. Como isso pode ser verdade?
— É uma das grandes verdades da minha vida. Vem comigo? Mal posso esperar para dividir o mundo com você, Jem. Temos muita coisa para ver.
Ela não sabia ao certo quem alcançou quem primeiro. Apenas que um instante depois ela estava em seus braços, e ele sussurrava:
— Sim, claro, sim — falou em seu cabelo.
Procurou sua boca timidamente, e ela pôde sentir a tensão suave, o peso de tantos anos entre o último beijo e este. Ela esticou o braço, colocando a mão na nuca de Jem, puxando-o para baixo, sussurrando.
— Bie zhao ji. — Não se preocupe, não se preocupe.
Ela o beijou na bochecha, no canto da boca e, finalmente, na boca, e a pressão dos lábios de Jem nos dela foi intensa e gloriosa, e ah, a batida do seu coração, o gosto de sua boca, o ritmo da respiração. Os sentidos de Tessa borraram com a lembrança: como ele era magro, as omoplatas afiadas como facas sob o tecido fino das camisas que outrora vestia. Agora ela sentia músculos fortes e firmes no abraço, a vibração da vida por seu corpo pressionando o dela, o algodão suave do casaco agarrado entre seus dedos.
Tessa tinha consciência de que, acima de seu pequeno aterro, as pessoas continuavam andando pela Blackfriars Bridge, que o trânsito continuava passando, e que os pedestres provavelmente estavam encarando, mas não ligou; depois de tantos anos, a pessoa aprende o que é importante e o que não é. E isto era importante: Jem, a velocidade de seu coração, a graciosidade de suas mãos deslizando para acariciar seu rosto, os lábios suaves nos dela ao traçar a forma de sua boca com a dele. A realidade morna e sólida dele.
Pela primeira vez em muitos anos, sentiu seu coração abrir, e soube que o amor era mais que uma lembrança.
Não, a última coisa com a qual se importava era se havia pessoas olhando para o menino e a menina que se beijavam ao lado do rio enquanto Londres, suas cidades, torres, igrejas, pontes e ruas os circulavam como a lembrança de um sonho. E se o Tâmisa que corria ao lado deles, firme e prateado sob a luz da tarde, lembrava uma noite muitos anos atrás, quando a lua brilhou luminosa como um xelim sobre este mesmo menino e esta mesma menina, ou se as pedras de Blackfriars conheciam seus passos e pensaram finalmente, a roda completou o círculo, eles ficaram em silêncio.

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Nada de spoilers! :)

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