O herdeiro da meia-noite


1903



Magnus levou quase vinte minutos para notar o garoto que apagava todas as luzes do recinto a tiros, mas, para ser sincero, ele se distraíra com a decoração.
Fazia quase um quarto de século desde que estivera em Londres. E sentira saudades. Certamente, na virada do século, Nova York tinha uma energia com a qual nenhum lugar no mundo poderia rivalizar.
Magnus adorava sentar em uma carruagem, avançar para as luzes deslumbrantes de Longacre Square e parar em frente à fachada elaborada em estilo francês renascentista do Teatro Olímpia, ou esbarrar em dezenas de pessoas diferentes no festival do cachorro-quente em Greenwich Village. Ele gostava de viajar pelos trilhos elevados, apesar dos freios barulhentos, e mal podia esperar para conhecer o transporte subterrâneo que estavam construindo sob o coração da cidade. Tinha visto a criação da grande estação de Columbus Circle logo antes de deixar Nova York e torcia para encontrá-la finalmente pronta ao regressar.
Mas Londres era Londres e vestia a história em camadas; todas as eras contidas na atual. Magnus também tinha história naquele lugar. Ele amara pessoas e as odiara. Houve uma mulher que ele tanto amara quanto odiara, portanto, fugira para escapar de sua lembrança. Às vezes, pensava se tinha errado ao sair, se deveria ter suportado as memórias ruins em nome das boas; se deveria ter sofrido e ficado.
Magnus se acomodou na cadeira acolchoada de veludo – com os braços surrados, gastos por décadas de mangas esfregando o tecido – e olhou em volta. Havia uma nobreza nos locais ingleses que os Estados Unidos, com toda a sua juventude, não conseguiam atingir. Candelabros brilhantes desciam do teto – eram de vidro lapidado, claro, e não de cristal, mas refletiam a luz de forma bela – e candeeiros elétricos cobriam as paredes. Magnus ainda achava a eletricidade algo emocionante, apesar de a luz elétrica ser mais fraca do que a enfeitiçada.
Grupos de cavalheiros sentavam-se às mesas, jogando cartas. Mulheres de vida dissoluta, cujos vestidos eram excessivamente apertados, coloridos e tudo o que Magnus mais gostava, se encontravam nos bancos de veludo encostados nas paredes. Cavalheiros que se saíam bem nas mesas se aproximavam delas, irradiando vitória e notas de libras; os que não recebiam as bênçãos da Sorte vestiam os respectivos casacos e saíam, silenciosos, noite adentro, sem dinheiro nem companhia.
Era tudo muito dramático, coisa de que Magnus gostava. Ainda não havia se cansado das ostentações da vida cotidiana e das pessoas cotidianas, apesar da passagem do tempo e do fato de que, no fim, as pessoas eram sempre as mesmas.
Uma explosão alta fez com que olhasse para cima. Havia um garoto no meio da sala, com uma pistola de prata na mão. Estava cercado de vidro quebrado, pois tinha acabado de atirar em um dos braços do candelabro.
Magnus foi dominado pela sensação que os franceses chamam de déjà vu, aquela impressão de que já estive aqui. Ele tinha, obviamente, estado em Londres, há 25 anos.
O rosto do garoto remetia ao passado. Este era um rosto do passado, um dos mais belos que Magnus se lembrava de ter visto. Um rosto tão bem moldado que aliviava consideravelmente o mau estado do recinto – uma beleza que ardia tão brilhante que ofuscava as luzes elétricas. A pele dele era tão branca e clara que parecia ter uma luz acesa por trás. As linhas das maçãs do rosto, da mandíbula, da garganta – exposta por uma abertura no colarinho da camisa de linho branca – eram tão perfeitas que o jovem pareceria uma estátua, não fosse pelos cabelos muito desgrenhados e parcialmente ondulados que caíam em seu rosto, tão negros quanto a meia-noite contra a palidez luminosa.
Os anos arrastaram Magnus novamente, e a névoa de uma Londres de mais de 20 anos passados emergiu para buscá-lo. Ele flagrou os próprios lábios moldando um nome: Will. Will Herondale.
Magnus avançou instintivamente, como se o movimento se desse por vontade própria. Os olhos do garoto se voltaram para ele, e um estremecimento percorreu o feiticeiro. Não eram os olhos de Will dos quais se recordava, azuis como o céu noturno do Inferno; olhos que Magnus já vira desesperados e suaves.
O menino tinha olhos dourados e brilhantes, como uma taça de cristal cheia de vinho branco, estendida para captar a luz do sol. Se a pele do rapaz era luminosa, os olhos eram radiantes. Magnus não conseguia imaginar ternura neles. O garoto era muito, muito adorável, mas sua beleza era como a de Helena de Troia talvez, contendo desastre em cada traço. A luz daquela beleza fazia Magnus pensar em cidades em chamas.
A névoa e a luz a gás se recolheram na memória. O lapso momentâneo de nostalgia terminou. Este não era Will. O garoto lindo e perturbado seria um homem agora, e este era um estranho.
Mesmo assim, Magnus não acreditava que tanta semelhança pudesse ser coincidência. Com pouco esforço, foi até o rapaz, pois os outros presentes no antro de jogatina pareciam, talvez compreensivelmente, relutantes em se aproximar. O garoto estava sozinho, como se o vidro quebrado ao seu redor fosse um mar brilhante, e ele, uma ilha.
— Não é exatamente uma arma de Caçador de Sombras — murmurou Magnus. — Certo?
Os olhos dourados se estreitaram como fendas brilhantes, e a mão de dedos longos que não segurava a pistola foi para a manga, onde Magnus presumiu que a lâmina mais próxima estivesse escondida. As mãos não estavam muito firmes.
— Paz — acrescentou Magnus. — Não pretendo machucá-lo. Sou um feiticeiro que os Whitelaw de Nova York garantem ser um tanto... bem, quase sempre... inofensivo.
Fez-se uma longa pausa, que pareceu consideravelmente perigosa. Os olhos do garoto eram como estrelas brilhantes, mas não davam qualquer pista quanto aos seus sentimentos. Magnus normalmente era bom em ler as pessoas, mas achou difícil prever o que aquela à sua frente poderia fazer.
O feiticeiro ficou muito surpreso com o que ouviu em seguida.
— Sei quem você é.
A voz não era como o rosto. Tinha suavidade.
Magnus conseguiu conter a surpresa e ergueu as sobrancelhas, questionando em silêncio. Não tinha vivido 300 anos sem aprender a não morder todas as iscas oferecidas pela vida.
— Você é Magnus Bane.
Magnus hesitou; em seguida, inclinou a cabeça.
— E você é?
— Eu — anunciou o garoto — sou James Herondale.
— Sabe — murmurou o feiticeiro — imaginei que seu nome fosse algo assim. Fico muito feliz em saber que sou famoso.
— Você é o amigo feiticeiro do meu pai. Ele sempre falava a seu respeito para mim e para minha irmã quando os outros Caçadores de Sombras se referiam com descaso aos integrantes do Submundo na nossa presença. Dizia que conhecia um feiticeiro que era mais amigo e mais confiável do que muitos guerreiros Nephilim.
Os lábios do garoto se curvaram ao dizer isso, e ele falou com deboche, mais com desprezo do que divertimento, como se o pai tivesse sido um tolo por lhe dizer isso e o próprio James fosse um tolo em repetir.
Magnus não estava com humor para ironias.
Ele e Will despediram-se em bons termos; Magnus, porém, conhecia os Caçadores de Sombras. Os Nephilim eram muito precipitados em condenar um integrante do Submundo por más ações, agindo como se todos os pecados fossem marcados em pedra por toda a eternidade, provando que pessoas como ele eram ruins por natureza. A convicção dos Caçadores de Sombras acerca da própria virtude angelical e integridade possibilitava que esquecessem as boas ações de um feiticeiro como se estivessem escritas em água.
Magnus não esperava ver ou ouvir falar em Will Herondale nesta viagem, mas, se tivesse pensado no assunto, não teria se surpreendido em estar praticamente esquecido, um mero figurante na tragédia de um garoto. Ser lembrado, e com tanta gentileza, emocionou-o mais do que ele imaginava ser possível.
Os olhos brilhantes e ardentes do menino percorreram a face do feiticeiro e viram coisas demais.
— Eu não ficaria tão contente com isso. Meu pai confia em gente demais — disse James Herondale, e riu. De repente, ficou claro que ele estava muito embriagado. Não que Magnus tivesse achado que ele estava sóbrio ao atirar nos candelabros. — Confiança. É como pôr uma lâmina na mão de alguém e colocar a ponta contra o próprio coração.
— Não pedi que confiasse em mim — observou Magnus calmamente. — Acabamos de nos conhecer.
— Ah, confiarei em você — retrucou o garoto, indiferente. — Não tem a menor importância. Todos somos traídos, mais cedo ou mais tarde. Todos, traídos ou traidores.
— Vejo que a vocação para o drama é de família — sussurrou Magnus.
Mas tratava-se de um drama diferente. Will mostrava seu lado errado em âmbito privado, para afastar os mais próximos e queridos. James estava fazendo disso um espetáculo público.
Talvez gostasse do errado pelo errado.
— O quê? — perguntou James.
— Nada — respondeu Magnus. — Só estava imaginando o que o candelabro pode ter feito para ofendê-lo.
James olhou para o candelabro destruído e reduzido a cacos de vidro a seus pés, como se só agora tivesse se dado conta deles.
— Apostaram vinte libras que eu não conseguiria apagar todas as luzes do candelabro a tiros — explicou ele.
— E quem apostou? — perguntou o feiticeiro, sem revelar o que pensava: qualquer um que apostasse com um bêbado de 17 anos sobre ele utilizar uma arma mortal impunemente deveria ser preso.
— Aquele camarada ali — anunciou James, e apontou.
Magnus olhou na direção indicada por ames e identificou um rosto familiar à mesa de jogo.
— O verde? — indagou Magnus.
Fazer Caçadores de Sombras embriagados bancarem os bobos era um dos passatempos favoritos dos membros do Submundo, e essa exibição tinha sido um tremendo sucesso. Ragnor Fell, o Alto Feiticeiro de Londres, deu de ombros, e Magnus suspirou baixinho. Talvez a prisão fosse um exagero, embora o feiticeiro ainda achasse que seu amigo esmeralda poderia se controlar um pouco.
— Ele é realmente verde? — perguntou James, sem parecer se importar muito. — Achei que fosse o absinto.
Então, James Herondale, filho de William Herondale e Theresa Gray, os dois Caçadores de Sombras mais próximos de amigos que Magnus já havia conhecido – apesar de Tessa não ser exatamente uma Caçadora de Sombras ou, pelo menos, não totalmente – deu as costas para Magnus, olhou para uma mulher que servia bebidas a uma mesa cercada de lobisomens, e atirou nela.
Ela caiu no chão com um grito, e todos os jogadores se levantaram das mesas, cartas voando e bebidas entornando.
James riu de forma clara e alegre, e foi nesse momento que Magnus ficou realmente alarmado. A voz de Will teria tremido e revelado que sua crueldade era parte de uma encenação, mas o filho estava aparentemente feliz com o caos ao redor.
A mão de Magnus se ergueu, e ele agarrou o pulso do garoto, o chiado e a luz da magia estalando entre seus dedos como uma promessa.
— Basta.
— Acalme-se — disse James, ainda rindo. — Sou muito bom de tiro, e Peg, a servente da taverna, é famosa por sua perna de pau. Acho que é por isso que a chamam de Peg. Seu verdadeiro nome, acredito, é Ermentrude.
— E suponho que Ragnor Fell tenha apostado 20 libras que você não seria capaz de atirar nela sem derramar sangue? Muito espertos, vocês dois.
James soltou a mão do aperto de Magnus e balançou a cabeça. Seus cabelos negros bateram sobre o rosto, tão parecidos com os do pai que Magnus respirou fundo.
— Meu pai falou que você agia como uma espécie de protetor dele, mas não preciso de proteção, feiticeiro.
— Discordo.
— Fiz um bocado de apostas hoje — informou James Herondale. — Preciso executar todas as más ações que prometi. Afinal, não sou um homem de palavra? Quero preservar minha honra. E mais uma bebida!
— Ótima ideia — comentou Magnus. — Soube que o álcool só melhora a mira de um homem. A noite é uma criança. Imagine em quantas garçonetes pode atirar antes do amanhecer.
— Um feiticeiro tão tedioso quanto um acadêmico — provocou James, cerrando os olhos âmbar. — Quem poderia imaginar que algo assim existia?
— Magnus nem sempre foi tão tedioso — disse Ragnor, aparecendo ao lado de James com uma taça de vinho na mão. Ofereceu-a ao menino, que a aceitou e virou o conteúdo com um gesto perturbadoramente hábil. — Houve uma vez, no Peru, em um barco cheio de piratas...
James limpou a boca com a manga e pousou a taça.
— Eu adoraria sentar e ouvir velhos senhores recordando as próprias vidas, mas tenho que fazer algo de fato interessante. Fica para outra hora, amigos.
Girou nos calcanhares e foi embora. Magnus fez um movimento como se fosse segui-lo.
— Deixe que os Nephilim controlem o moleque, se conseguirem — falou Ragnor, sempre feliz em testemunhar o caos, mas nunca envolvido nele de fato. — Venha tomar um drinque comigo.
— Outra noite — prometeu Magnus.
— Ainda é um ponto sensível em você, Magnus — falou Ragnor, por trás dele. — Não existe nada de que goste mais do que uma alma perdida ou uma má ideia.
Magnus queria discutir, mas era difícil quando já estava abrindo mão do calor e da promessa de bebida e carteado para correr no frio atrás de um Caçador de Sombras demente.
O referido Caçador de Sombras demente virou-se para ele, como se a rua estreita de pedras fosse uma jaula, e ele, um animal selvagem e faminto, preso há tempo demais.
— Eu não me seguiria — alertou James. — Não estou querendo companhia. Sobretudo a companhia de um mágico que não sabe aproveitar a vida.
— Sei perfeitamente bem como aproveitar a vida — observou Magnus, entretido, e fez um pequeno gesto para que todos os postes de luz que ladeavam a rua derramassem faíscas coloridas.
Por um momento, achou que tinha notado um brilho mais suave e menos ardente nos olhos de James Herondale, o esboço de um sorriso alegre e infantil.
No instante seguinte, isso se apagou. Os olhos de James estavam tão brilhantes quanto as joias de um tesouro protegido por um dragão, e não eram mais vivos, nem alegres. Ele balançou a cabeça, os cachos negros voando pelo ar noturno, onde as luzes mágicas desbotavam.
— Mas você não quer aproveitar a vida, quer, James Herondale? — perguntou Magnus. — Não de verdade. Você quer ir para o inferno.
— Talvez eu ache que vá gostar de ir para o inferno — disse James Herondale, e seus olhos brilharam como os fogos do inferno, sedutores e prometendo um sofrimento inimaginável. — Apesar de não ver necessidade de levar alguém comigo.
Então desapareceu, de modo suave e silencioso, em pleno ar noturno, sem nenhuma testemunha além das estrelas, os postes de luz e Magnus.
Ele reconhecia magia ao vê-la. Girou e, no mesmo instante, ouviu sons de passos determinados contra o paralelepípedo da rua. Um policial caminhava, girando o cassetete e lançando um olhar desconfiado para o rosto do feiticeiro.
Mas não era com Magnus que ele tinha que se preocupar.
O feiticeiro viu que os botões do uniforme do sujeito tinham deixado de brilhar, apesar de ele estar sob um poste de luz, e distinguiu uma sombra descendo de um lugar onde não havia nada que a projetasse. Era uma onda negra na escuridão da noite.
O policial deu um grito de surpresa quando seu capacete foi retirado por mãos invisíveis. Ele cambaleou para a frente, com as mãos apalpando cegamente o ar em busca de algo já perdido.
Magnus lhe lançou um sorriso consolador.
— Alegre-se — disse. — Pode encontrar um chapéu mais bonito em qualquer loja na Bond Street.
O homem desmaiou. Magnus cogitou parar e ajudá-lo, mas uma coisa era sensibilidade, outra era ser ridículo o suficiente para não perseguir um mistério mais interessante. Um Caçador de Sombras capaz de se transformar em sombra? Magnus virou e correu atrás do capacete do policial, guiado apenas pela escuridão provocadora.
Correram rua após rua, Magnus e a escuridão, até o Tâmisa bloquear a passagem. Ele ouviu, mais do que viu, o ruído da rápida correnteza, as águas escuras se misturando à noite.
O que ele avistou foram dedos brancos que, de repente, agarraram a aba do capacete do policial, e a cabeça de James Herondale; a escuridão era substituída pela curva de um sorriso que aparecia subitamente. Magnus viu a sombra mais uma vez virando carne.
Então, o garoto havia herdado algo da mãe, além do que recebeu do pai, afinal. O pai de Tessa fora um anjo caído, um dos reis dos demônios. Os olhos dourados do rapaz de repente ficaram parecidos com os olhos do próprio Magnus, uma lembrança do sangue infernal.
James viu Magnus olhando, e deu uma piscadela antes de jogar o capacete para o alto. Por um instante, o objeto voou como um pássaro estranho, girando suavemente pelo ar até atingir a água. A escuridão foi interrompida por um esguicho prateado.
— Um Caçador de Sombras que sabe fazer truques de mágica — observou Magnus. — Isso é novo.
Um Caçador de Sombras que atacava os mundanos que tinha a missão de proteger; como a Clave adoraria isso.
— Somos pó e sombras, como diz o ditado — respondeu James. — Claro, o ditado não acrescenta que alguns de nós se transformam em sombras ocasionalmente, quando o clima pede. Suponho que ninguém tenha previsto que eu fosse nascer. É verdade que já me disseram que sou um tanto imprevisível.
— Posso perguntar quem apostou que roubaria o capacete de um policial e por quê?
— Pergunta tola. Nunca pergunte sobre a última aposta, Bane — aconselhou James, e alcançou casualmente o cinto, onde a arma estava pendurada, sacando-a com um movimento fluido e simples. — Deveria se preocupar com a próxima.
— Não existe a chance — perguntou Magnus, sem muita esperança — de que você seja um bom garoto que acha que é amaldiçoado e precisa se empenhar em parecer odioso para poupar aqueles ao redor de um terrível destino? Pois soube que isso acontece.
James pareceu divertido com a pergunta. Sorriu, e, ao fazê-lo, os cachos negros se misturaram à noite, e o brilho da pele e dos olhos se tornou tão distante quanto a luz das estrelas, até ficar tão pálido que ficou difuso. Mais uma vez, ele passou a não ser mais que uma sombra entre as sombras. Era como uma irritante mistura de garoto e gato de Cheshire, que sumia sem deixar nada além da impressão do sorriso.
— Meu pai era amaldiçoado — falou James na escuridão. — Já eu? Sou condenado.

***

O Instituto de Londres era exatamente como Magnus recordava, alto, branco e imponente. A torre traçava uma linha alva contra o céu escuro. Institutos de Caçadores de Sombras eram construídos como monumentos feitos para suportar devastações de demônios e do tempo. Quando as portas se abriram, Magnus observou novamente a imensa entrada de pedra e os dois andares de escada.
Uma mulher com cabelos ruivos ondulados, de quem Magnus tinha certeza de que deveria se lembrar, mas não lembrava, abriu a porta, com o rosto marcado pelo sono e pela irritação.
— O que você quer, feiticeiro? — perguntou.
Magnus moveu o fardo que trazia nos braços. O garoto era alto, e Magnus tinha tido uma noite longa. A irritação deixou seu tom ríspido ao responder:
— Quero que avise a Will Herondale que eu trouxe o filhotinho dele para casa.
Os olhos da mulher se arregalaram. Ela soltou uma espécie de assobio impressionado e desapareceu subitamente. Alguns instantes depois, Magnus viu uma figura pálida descer suavemente pela escadaria.
Tessa era como o Instituto: não mudava. Tinha o mesmo rosto jovial de 25 anos atrás. Magnus supunha que ela tivesse parado de envelhecer no máximo três ou quatro anos depois que se viram pela última vez. Os cabelos estavam presos numa trança comprida e castanha que caía por cima de um dos ombros. Ela trazia uma pedra de luz enfeitiçada em uma das mãos e uma pequena esfera de luz na palma da outra.
— Você anda estudando magia, Tessa? — perguntou Magnus.
— Magnus! — exclamou Tessa, e seu rosto sério se iluminou com um sorriso receptivo que enviou uma onda de calor por ele. — Mas disseram... Ah, não. Onde encontrou Jamie?
Ela chegou ao pé da escada, foi até Magnus e apoiou a cabeça molhada do garoto na mão, num gesto quase inconsciente de afeto. Naquele gesto, o feiticeiro viu como Tessa mudara, viu o hábito da maternidade impregnado nela, o amor por alguém que havia criado e que amava.
Nenhum outro feiticeiro jamais teria um filho biológico. Somente Tessa passaria por essa experiência. Magnus desviou o olhar ao ouvir mais alguém descendo pelas escadas.
A lembrança do garoto Will era tão fresca que foi um choque vê-lo agora, mais velho, ombros mais largos, mas com os mesmos cabelos negros desgrenhados e olhos azuis risonhos. Estava bonito como sempre – talvez mais, considerando que parecia tão feliz. Magnus viu mais marcas de riso no rosto de Will e se flagrou sorrindo. Era verdade o que ele havia dito, percebeu. Eram amigos.
Will reconheceu-o e sentiu alegria, mas ao ver o fardo que Magnus carregava, a preocupação imediatamente apagou todo o restante.
— Magnus — falou. — O que aconteceu com James?
— O que aconteceu? — perguntou o feiticeiro, pensativo. — Bem, deixe-me ver. Ele roubou uma bicicleta e pedalou, sem usar as mãos, pela Trafalgar Square. Tentou subir a coluna de Nelson e lutar contra ele. Então, o perdi por um breve período de tempo, e, quando o alcancei novamente, ele tinha andado até o Hyde Park, entrado no lago Serpentine, aberto os braços e gritava: “Patos, reconheçam-me como seu rei!”
— Santo Deus — disse Will. — Ele devia estar extremamente bêbado. Tessa, não aguento mais. O garoto anda arriscando a própria vida de maneira assustadora e rejeita todos os princípios que valorizo. Se continuar se exibindo por Londres será chamado a Idris e mantido lá, longe dos mundanos. Será que ele não sabe disso?
Magnus deu de ombros.
— Também fez inadequados avanços amorosos a uma senhora que vendia flores, um cão de caça irlandês, um inocente cabideiro em um estabelecimento que invadiu, e a mim. E acrescento que não acredito que a admiração de James pela minha pessoa, por mais incrível que me considere, seja sincera. Ele me falou que sou uma dama linda e cintilante. Em seguida desmaiou, naturalmente, no trilho de um trem que vinha de Dover, e decidi que já passava da hora de trazê-lo para casa e para a família. Se preferirem que eu o leve a um orfanato, entenderei.
Will estava balançando a cabeça, agora com sombras nos olhos azuis.
— Bridget — gritou, e Magnus pensou Ah, sim, esse era o nome da criada. — Chame os Irmãos do Silêncio — concluiu Will.
— Chame Jem, você quer dizer — disse Tessa, baixando a voz, e ela e Will compartilharam um olhar que Magnus só poderia descrever como um olhar de casado; o olhar de duas pessoas que se entendiam e, no entanto, ainda se achavam adoráveis.
Era nauseante.
Ele limpou a garganta.
— Então ele ainda é um Irmão do Silêncio?
Will lançou um olhar desanimado a Magnus.
— Isso tende a ser um estado permanente. Aqui, dê meu filho.
Magnus permitiu que Will tirasse James de seus braços, que ficaram mais leves, ainda que molhados, e Magnus seguiu Will e Tessa pelas escadas. No interior do Instituto, ficou evidente que eles o haviam redecorado. A escura sala de estar de Charlotte agora tinha vários sofás que pareciam confortáveis, e as paredes tinham uma cor clara de damasco. Havia prateleiras altas cheias de livros, exemplares com as letras douradas apagadas das lombadas e, Magnus tinha certeza, páginas gastas. Aparentemente, tanto Tessa quanto Will continuavam a ser ávidos leitores.
Will colocou o filho em um dos sofás. Tessa correu e pegou um cobertor enquanto Magnus se virava para a porta, justo no momento em que Will agarrava a sua mão.
— Você foi muito generoso em trazer Jamie para casa — disse ele. — Sempre foi muito bom comigo e com os meus. Naquela época, eu era um garoto e não fui tão grato nem gentil quanto deveria.
— Foi o suficiente, Will — respondeu Magnus. — E vejo que cresceu e se tornou ainda melhor. Além disso, não está careca nem gordo. Toda essa correria e esse combate ao mal de vocês pelo menos servem para manter a boa forma na meia-idade.
Will deu uma risada.
— Também acho um prazer revê-lo — hesitou. — Quanto a Jamie...
Magnus ficou tenso. Não queria preocupar muito Will e Tessa. Não havia contado que ele caíra no lago Serpentine e que fizera pouquíssimo esforço para não se afogar. Não pareceu querer ser retirado das profundezas geladas da água: lutara contra Magnus enquanto o feiticeiro o arrastava. Em seguida, encostara a bochecha pálida contra a terra úmida da margem do rio e escondera o rosto nos braços.
Por um instante, Magnus achou que o garoto estivesse chorando, mas ao se abaixar para verificar o estado dele, notou que o jovem estava quase inconsciente. Com aqueles olhos dourados cruéis fechados, mais uma vez lembrava o menino que fora Will. Magnus o tocou gentilmente no cabelo molhado e disse “James” com a voz mais suave que conseguiu.
As mãos pálidas do menino encontravam-se espalhadas sobre a terra escura. O brilho do anel Herondale cintilou contra sua pele, e a ponta de algo metálico também flamejou sob a manga. Estava com os olhos fechados, os cílios negros como luas crescentes contra as linhas das maçãs do rosto. Gotas brilhantes de água se prenderam nas curvas daqueles cílios, o que o deixava com uma aparência triste que ele não tinha quando acordado.
— Grace — sussurrou James durante o sono e ficou em silêncio.
Magnus não se irritou: ele mesmo já tinha se flagrado muitas vezes desejando uma graça benevolente. Abaixou-se e pegou-o nos braços. A cabeça rolou para seu ombro. Enquanto dormia, James parecia inocente e em paz, além de totalmente humano.
— Ele não é assim — dizia Will, enquanto Tessa puxava um cobertor sobre o filho, cobrindo-o firmemente.
Magnus ergueu uma sobrancelha.
— Ele é seu filho.
— O que está tentando insinuar? — perguntou Will, e por um instante Magnus viu seus olhos brilharem, tendo um vislumbre do menino de cabelos negros desgrenhados e olhos azuis na sua sala de estar, furioso com o mundo inteiro e, mais do que tudo, consigo mesmo.
— Ele não é assim — concordou Tessa. — Sempre foi tão quieto, tão estudioso. Lucie era a impetuosa, mas ambos são generosos e têm bom coração. Em festas, Jamie normalmente ficava pelos cantos com seu latim, ou rindo de alguma piada interna com seu parabatai. Sempre manteve Matthew longe dos problemas, e ele mesmo sempre se preservou. Era o único que conseguia fazer aquele menino indolente comparecer às aulas — observou ela, com um singelo sorriso no rosto que dizia que ela gostava do parabatai do filho, não importava quais fossem seus defeitos. — Agora ele vive na rua, fazendo coisas terríveis, e não ouve a voz da razão. Não dá ouvidos a ninguém. Entendo o que você diz sobre Will, mas ele estava sozinho e desgastado nos dias que antecederam seu mau comportamento. James foi amado a vida inteira.
— Traição! — murmurou Will. — Cruelmente difamado pelo meu amigo e agora pela minha própria esposa amada. Menosprezado, meu nome sujo...
— Vejo que continua apreciando a arte dramática, Will — disse Magnus. — Assim como continua bonito.
Tinham crescido. Nenhum deles pareceu espantado. Tessa ergueu as sobrancelhas, e Magnus viu nela algo do filho. Ambos tinham o mesmo cenho expressivo e arqueado, que atribuía a seus rostos um olhar inquisitivo e entretido, apesar de, no rosto de James, o entretenimento ser amargo.
— Pare de flertar com meu marido — disse Tessa.
— Não vou parar — declarou Magnus — mas farei uma breve pausa para podermos colocar os assuntos em dia. Não recebo notícias desde que você me mandou uma mensagem sobre a chegada do bebê, e sobre ele e a mãe estarem em ótimo estado.
Will pareceu surpreso.
— Mas mandamos diversas cartas sob os cuidados dos Morgenstern, que visitavam os Whitelaw no Instituto de Nova York. Você é que se provou um péssimo correspondente.
— Ah — disse Magnus. Ele próprio não ficou nada surpreso. Este era um comportamento típico dos Caçadores de Sombras. — Os Morgenstern devem ter se esquecido de entregá-las. Que descuido.
Tessa, ele notou, também não pareceu surpresa. Ela era feiticeira e Caçadora de Sombras, e, ao mesmo tempo, não era uma coisa nem outra. Os Caçadores de Sombras achavam que o sangue deles era mais forte do que tudo, mas Magnus acreditava perfeitamente que muitos Nephilim podiam não ser gentis com uma mulher capaz de fazer mágica e que não sofria os efeitos do tempo.
Mas duvidava que lhe faltassem com a gentileza na frente de Will.
— Teremos mais cuidados com relação a quem confiaremos nossas cartas no futuro — disse Tessa, decidida. — Estamos sem contato há tempo demais. Que sorte estar em Londres, por nós e por Jamie. O que o traz aqui, negócios ou prazer?
— Gostaria que fosse o negócio do prazer — disse Magnus a ela. — Mas não, é muito tedioso. Uma Caçadora de Sombras que acredito ser conhecida de vocês me chamou... Tatiana Blackthorn? A dama que costumava ser Lightwood, não? — Magnus virou-se para Will. — E sua irmã Cecily se casou com o irmão dela. Gilbert. Gaston. Tenho uma péssima memória para os Lightwood.
— Implorei a Cecily que não se jogasse para um Lightverme — murmurou Will.
— Will! — disse Tessa. — Cecily e Gabriel são muito felizes juntos.
O marido se jogou dramaticamente em uma poltrona, tocando o pulso do filho ao passar, com um afago suave e cuidadoso que dizia muito.
— Pelo menos tem que admitir, Tess, que Tatiana é tão louca quanto um rato preso em um bule. Ela se recusa a falar com qualquer um de nós, e isso inclui os irmãos, pois diz que tivemos culpa na morte do pai. Aliás, ela diz que nós o matamos impiedosamente. Todo mundo tenta explicar que, na época de seu assassinato impiedoso, o pai era um verme gigante que havia devorado o marido dela e concluíra a refeição com sorvete de criados, mas ela insiste em vagar pelo solar, sofrendo com todas as cortinas fechadas.
— Ela perdeu muita coisa. Perdeu o filho — respondeu Tessa, e acariciou o cabelo de James, com o rosto perturbado.
Will olhou para a cena e se calou.
— A Sra. Blackthorn veio de Idris para o solar da família na Inglaterra especificamente para me receber, e me mandou uma mensagem pelos canais habituais do Submundo prometendo uma bela quantia se eu viesse e aplicasse alguns feitiços para aumentar os atrativos da filha adotiva — disse Magnus, e tentou concluir num tom mais ameno. — Suponho que queira casá-la com alguém.
Tatiana não seria a primeira Caçadora de Sombras a recorrer à magia de um feiticeiro para tornar a vida mais fácil e agradável. Era, contudo, a Caçadora de Sombras que oferecia o melhor preço.
— É mesmo? — perguntou Will. — A coitada deve parecer um sapo de gorro.
Tessa abafou uma risada com a mão, e Will sorriu, parecendo satisfeito consigo mesmo, como sempre o fazia quando divertia Tessa.
— Suponho que eu não devesse falar sobre o filho dos outros quando o meu é tão esperto. Ele atira em coisas, sabe. Fez uma cena e tanto na corrida de cavalos em Ascot quando viu uma pobre mulher com um chapéu que ele considerou que tinha muitas frutas de cera.
— Sei que ele atira em coisas — respondeu Magnus cautelosamente. — Sei, sim.
Will suspirou.
— Que o Anjo me conceda paciência, para não estrangulá-lo, e sabedoria, para tentar colocar algum juízo na cabeça dele.
— A quem será que puxou? — observou Magnus.
— Não é a mesma coisa — disse Tessa. — Quando Will tinha a idade de Jamie, tentava afastar a todos que amava. Jamie é muito amoroso conosco, com Lucie, com o parabatai. É a si próprio que deseja destruir.
— E sem razão — disse Will, batendo no braço da cadeira com o punho cerrado. — Conheço meu filho, e ele não se comportaria assim a não ser que não tivesse escolha. A não ser que esteja atrás de um objetivo ou de uma punição para si mesmo, por achar que fez algo errado...
Me chamaram? Estou aqui.
Magnus levantou o olhar e viu o Irmão Zacarias na entrada. Era um contorno esguio e tinha o capuz abaixado, exibindo seu rosto. Os Irmãos do Silêncio raramente mostravam o rosto, pois sabiam como a maioria dos Caçadores de Sombras reagia às cicatrizes e desfigurações de suas peles. Aparecer assim para Will e Tessa era uma demonstração da confiança de Jem.
Jem continuava sendo Jem – como Tessa, não tinha envelhecido. Os Irmãos do Silêncio não eram imortais, mas envelheciam extremamente devagar. Os símbolos poderosos que lhes davam sabedoria e permitiam que falassem com a mente também desaceleravam o envelhecimento do corpo, transformando os Irmãos em estátuas vivas. As mãos de Jem eram pálidas e esguias sob os punhos da túnica, e continuavam sendo mãos de músico, mesmo depois de tanto tempo. O rosto parecia esculpido em mármore, os olhos eram crescentes fechados, e os símbolos escuros dos Irmãos se destacavam nas maçãs do rosto altas. Os cabelos ondulavam nas têmporas, escuros e prateados.
Uma imensa tristeza tomou conta de Magnus ao vê-lo. Era humano envelhecer e morrer, e Jem não tinha mais essa humanidade; não estava mais sobre a luz que ardia de modo tão forte e breve. Do lado de fora daquela luz e daquele fogo, era muito frio. Ninguém conhecia esse frio tão bem quanto Magnus.
Ao ver o feiticeiro, Jem inclinou a cabeça.
Magnus Bane. Não sabia que estaria aqui.
— Eu... — Magnus começou a falar, mas Will já estava de pé, atravessando a sala em direção a Jem.
Tinha se alegrado ao vê-lo, e o feiticeiro sentiu a atenção de Jem se desviar dele para Will, se fixando ali.
Aqueles meninos haviam sido tão diferentes, mas, algumas vezes, pareciam um só. Isso era tão verdade que agora parecia estranho para Magnus ver Will mudado, como acontecia com os humanos, enquanto Jem fora excluído disso. Era estranho vê-los seguindo rumos que o outro não podia acompanhar. Supôs que para eles mesmos fosse ainda mais estranho.
Ainda assim, restava algo que Magnus associava à lenda da linha vermelha do destino: era um fio escarlate invisível que ligava certas pessoas, e, por mais que se emaranhasse, não podia ser rompido.
Os Irmãos do Silêncio se moviam como uma estátua faria, se pudesse. Jem havia entrado da mesma maneira, mas conforme Will se aproximou, deu um passo em direção ao antigo parabatai, e o passo foi veloz, ansioso e humano, como se a proximidade dos que amou o fizesse sentir o sangue nas veias novamente.
— Você chegou — disse Will, e naquelas palavras ficou implícita a sensação de que sua alegria estava completa. Agora que Jem estava ali, tudo estava certo no mundo.
— Sabia que viria — disse Tessa, saindo do lado do filho para ir atrás do marido até Jem.
Magnus viu o rosto do Irmão Zacarias brilhar ao ouvir a voz dela; símbolos e palidez não faziam mais diferença. Por um instante, voltou a ser um menino, no começo da vida, com o coração cheio de esperança e amor.
Como se amavam, esses três, como sofreram uns pelos outros, e quanta alegria eles evidentemente sentiam apenas por estar juntos no mesmo recinto. Magnus já tinha amado muitas vezes, mas não se lembrava de sentir a paz que irradiava dos três pela simples presença de todos. Às vezes, desejava a paz, como um homem vagando por séculos no deserto faria com a água, sem nunca tê-la visto, mas convivendo com a vontade.
Tessa, Will e seu Jem perdido estavam juntos em um nó firme. Magnus soube que, por um instante, nada além dos três existiu no mundo.
Olhou para o sofá onde James Herondale se encontrava, e viu que o menino estava acordado, os olhos dourados como chamas que ensinavam as velas a brilhar forte. James era o mais jovem do grupo, um menino com toda a vida pela frente, mas não tinha alegria ou esperança no rosto. Ele, Tessa e Will pareciam naturais juntos, mas mesmo nesta sala, com aqueles que o amavam mais que a vida, James parecia muito sozinho. Havia algo de desesperado e desconsolado em seu rosto. Ele tentou se apoiar em um cotovelo, mas sucumbiu novamente sobre as almofadas do sofá, e sua cabeça caiu para trás como se fosse pesada demais para ele aguentar.
Tessa, Will e Jem murmuravam entre si, a mão de Will repousada no braço de Jem. Magnus jamais havia visto alguém tocar um Irmão do Silêncio daquela forma, por pura amizade. Isso o doeu por dentro, e ele viu aquela dor refletida no rosto do garoto no sofá.
Seguindo um impulso impetuoso, Magnus atravessou a sala e se ajoelhou ao lado do sofá, perto do filho de Will, que o fitou com olhos dourados e cansados.
— Olhe para eles — disse James. — A forma como se amam. Eu achava que todos amavam assim. Como nos contos de fada. Achava que o amor era generoso, magnânimo e bom.
— E agora? — perguntou Magnus.
O menino virou o rosto. Magnus se viu fitando a parte de trás da cabeça de James, observando os cabelos negros e bagunçados, tão parecidos com os do pai, e a ponta do símbolo parabatai logo abaixo do colarinho. Devia estar nas costas, Magnus pensou, sobre a omoplata, onde estaria a asa de um anjo.
— James — disse Magnus, com a voz baixa e apressada. — Houve um tempo em que seu pai teve um terrível segredo que acreditava não poder contar a ninguém no mundo, e ele me contou. Vejo que algo o incomoda, que está escondendo algo. Se existe um assunto que queira me revelar, agora ou em qualquer outro momento, tem a minha palavra de que guardarei seus segredos, ou ajudarei como puder.
James se moveu para olhar Magnus. Em seu rosto, o feiticeiro teve a impressão de ter visto uma suavidade, como se estivesse soltando um pouco o que tanto o atormentava.
— Não sou como meu pai — falou. — Não confunda meu desespero com nobreza disfarçada, pois não é isso. Sofro por mim, por mais ninguém.
— Mas por que você sofre? — perguntou Magnus, frustrado. — Sua mãe tem razão quando diz que você foi amado a vida inteira. Se me deixar ajudá-lo...
A expressão do menino se fechou como uma porta. Virou a cara novamente e fechou os olhos, a luz batendo nos cílios.
— Dei minha palavra de que jamais contaria — falou. — E não existe vivalma nesta Terra capaz de me ajudar.
— James — respondeu Magnus, verdadeiramente surpreso com o desespero na voz do menino, e o alarme em seu tom de voz chamou a atenção dos outros presentes.
Tessa e Will desviaram os olhares de Jem para o filho, que fora batizado com o nome do Irmão do Silêncio, e, ao mesmo tempo, Will e Tessa foram para o lado dele, de mãos dadas.
O Irmão Zacarias se curvou pelo encosto do sofá e tocou afetuosamente o cabelo de James com os dedos de músico.
— Oi, tio Irmão Zacarias — falou James, sem abrir os olhos. — Pediria desculpas por incomodá-lo, mas tenho certeza de que esta foi a maior animação que teve no ano. Não acontece muita coisa na Cidade dos Ossos, certo?
— James! — Will se irritou. — Não fale assim com Jem.
Como se eu não estivesse acostumado aos Herondale mal comportados, disse o Irmão Zacarias, com aquele jeito de Jem de tentar promover a paz entre Will e o mundo.
— Suponho que a diferença seja que meu pai sempre se importou com sua opinião sobre ele — respondeu James. — E eu não. Mas não leve para o lado pessoal, tio Jem. Não ligo para o que ninguém pensa.
No entanto, tinha o hábito de fazer cenas, como Will havia colocado, e Magnus não tinha a menor dúvida de que era de propósito. Devia se importar com a opinião de alguém. Devia estar fazendo isso tudo com um propósito. Mas que propósito poderia ser?, pensou Magnus.
— James, você não é assim — disse Tessa, preocupada. — Sempre se importou. Sempre foi generoso. O que o está incomodando?
— Talvez nada esteja me incomodando. Talvez eu tenha simplesmente percebido que era um chato antes. Não acha que eu era chato? Todo aquele estudo e o latim. — Ele estremeceu. — Um horror.
Não há nada de chato em se importar ou em ter um coração aberto e amoroso,disse Jem.
— Isso é o que vocês dizem — respondeu James. — E é fácil enxergar por que, afinal, vocês três fizeram o possível e o impossível com as próprias vidas para se amarem, um mais do que o outro. E é muita gentileza se importarem comigo. — A respiração falhou um pouco, então James sorriu, mas um sorriso muito triste. — Gostaria de não perturbá-los tanto.
Tessa e Will trocaram olhares de desespero. O cômodo estava carregado de preocupação e temores paternais. Magnus estava começando a se sentir oprimido pelo peso da humanidade.
— Bem — anunciou — por mais educativa e ocasionalmente úmida que tenha sido a noite, não quero me meter em uma reunião de família e não desejo experimentar dramas familiares, pois, tratando-se de Caçadores de Sombras, eles costumam ser extensos. Tenho que ir.
— Mas pode ficar aqui — ofereceu Tessa. — Ser nosso convidado. Ficaríamos muito felizes em recebê-lo.
— Um feiticeiro nos aposentos reverenciados de um Instituto de Caçadores de Sombras? — Magnus estremeceu. — Pense só.
Tessa o fitou com ar severo.
— Magnus...
— Além disso, tenho um compromisso — completou o feiticeiro. — Para o qual não posso me atrasar.
Will o olhou com o rosto franzido.
— A essa hora da noite?
— Tenho uma ocupação peculiar e horários peculiares — explicou Magnus. — Acho que me lembro de você me procurar e pedir ajuda em horários estranhos da noite algumas vezes. — E inclinou a cabeça. — Will. Tessa. Jem. Boa noite.
Tessa foi para perto dele.
— Vou acompanhá-lo até a porta.
— Tchau, quem quer que seja — James se despediu sonolento, fechando os olhos. — Não me lembro do seu nome.
— Não ligue para ele — falou Tessa baixinho ao caminhar com Magnus para a saída.
Parou por um instante na entrada, olhando para o filho e para os dois homens com ele. Will e Jem estavam lado a lado, e, a essa distância, era impossível não notar a forma mais magra de Jem, além do fato de que ele não havia envelhecido, como Will. Contudo, na voz de Will havia toda a ansiedade de um menino quando ele disse, respondendo a uma pergunta que Magnus não escutou:
— Ora, sim, claro que pode tocar antes de ir. Está na sala de música, como sempre, guardado para você.
— O violino? — murmurou Magnus. — Não achei que os Irmãos do Silêncio gostassem de música.
Tessa suspirou suavemente e continuou andando para o corredor.
— Will não enxerga um Irmão do Silêncio quando olha para James — disse ela. — Só vê Jem.
— É difícil? — perguntou.
— O que é difícil?
— Dividir o coração de seu marido com outra pessoa — explicou.
— Se fosse de outra forma, não seria o coração de Will — respondeu Tessa. — Ele sabe que também divide o meu com Jem. Eu não aceitaria que fosse diferente, e ele também não.
Eram tão parte um do outro que não havia como se desvencilharem, mesmo agora, nem desejavam fazê-lo. Magnus quis perguntar se Tessa tinha medo do que lhe aconteceria quando Will partisse, quando o laço finalmente fosse rompido, mas não o fez. Com sorte, a primeira morte de Tessa ainda demoraria; muito tempo se passaria até que ela percebesse por completo o que é o fardo de ser imortal e amar àqueles que não o são.
— Muito bonito. — Foi o que Magnus disse. — Bem, desejo a vocês o melhor com seu pequeno diabinho.
— Nós o veremos novamente antes que deixe Londres, é claro — disse Tessa, naquele tom que tinha desde menina, não permitindo contradições.
— Sim — disse Magnus. Depois hesitou. — E, Tessa, se algum dia precisar de mim... e espero que, caso precise, seja daqui a muitos anos, com todos muito felizes... mande uma mensagem, e venho na hora.
Ambos sabiam o que isso significava.
— Mandarei — disse Tessa, e deu a mão para ele. Era pequena e suave, mas surpreendentemente forte.
— Acredite, querida — falou Magnus, com leveza. Soltou a mão dela e se curvou com um floreio. — Chame, e virei!
Ao se virar para deixar a igreja, Magnus ouviu o som do violino se propagando pelo ar nebuloso de Londres, e se lembrou de outra noite, uma noite de fantasmas, neve e música natalina, com Will nos degraus do Instituto, observando-o ao sair. Agora era Tessa quem estava à porta, com a mão levantada em despedida até Magnus chegar ao portão com a mensagem ameaçadora: SOMOS PÓ E SOMBRAS.
Ele olhou para trás, viu a figura pálida e magra na entrada do Instituto e pensou novamente: sim, talvez eu tenha errado em deixar Londres.

***

Não era a primeira vez que Magnus se deslocava de Londres a Chiswick para visitar a Casa dos Lightwood. A propriedade de Benedict Lightwood muitas vezes foi aberta a integrantes do Submundo que não se incomodavam com suas ideias de divertimento.
Fora uma mansão grandiosa em outros tempos, o mármore branco brilhante, adornada com esculturas gregas e muitos pilares. Os Lightwood eram pessoas orgulhosas e ostentadoras, e a casa, com toda a sua glória neoclássica, refletia isso.
Magnus sabia o que tinha acontecido com todo aquele orgulho. O patriarca, Benedict Lightwood, contraíra uma doença oriunda de suas relações com demônios e se transformara em um monstro assassino que os próprios filhos foram forçados a matar, com a ajuda de outros Caçadores de Sombras. A casa havia sido tomada pela Clave como punição, os fundos foram confiscados, e a família passou a ser vítima de deboche, um símbolo de pecado e traição a tudo que os Caçadores de Sombras prezavam.
Magnus não tinha tempo para a arrogância presunçosa dos Caçadores de Sombras e normalmente gostava de vê-los tomando uma dose de humildade, mas mesmo ele raramente via uma família decair tanto e tão depressa. Gabriel e Gideon, os dois filhos de Benedict, conseguiram recuperar o respeito com bom comportamento e com a bênção da Consulesa, Charlotte Branwell. A irmã, no entanto, era totalmente diferente.
Como tinha conseguido colocar as mãos na Casa dos Lightwood, Magnus não sabia. Tão louca quanto um rato preso em um bule, falara Will a respeito dela, e sabendo do estado desgraçado da família, Magnus não esperava a ostentação dos tempos de Benedict. Sem dúvida, o local estaria arruinado agora, empoeirado pelo tempo, com poucos criados para manter a ordem...
A carruagem contratada por Magnus parou.
— O local parece abandonado — opinou o cocheiro, olhando desconfiado para os portões de ferro, que pareciam fechados com ferrugem e amarrados com vinhas.
— Ou mal-assombrado — sugeriu Magnus alegremente.
— Bem, não posso entrar. Os portões não abrem — disse o cocheiro asperamente. — Você terá que saltar e caminhar, se está tão disposto.
E Magnus estava. Sua curiosidade agora fora aguçada, e ele se aproximou dos portões como um gato, pronto para escalar, se fosse necessário.
Com um toque de mágica, um pouquinho de feitiço de abertura, os portões escancararam com uma chuva de fragmentos de metal enferrujado, levando a uma entrada cheia de mato que conduzia a um solar fantasmagórico ao longe, brilhando como uma tumba sob a lua cheia.
Magnus fechou o portão e seguiu, ouvindo o som de pássaros noturnos nas árvores acima e o chiado de folhas ao vento. Uma floresta de galhos escurecidos se erguia sobre ele, os restos dos famosos jardins Lightwood. Aqueles jardins outrora haviam sido adoráveis. Magnus lembrava-se vagamente de ter ouvido Benedict Lightwood falar, embriagado, que eram a alegria da esposa falecida.
Agora, as cercas altas do jardim italiano formavam um labirinto contorcido do qual não havia como fugir. Mataram o monstro em que Benedict Lightwood se transformou naquele jardim, Magnus se lembrava de ter ouvido falar, e o icor negro do monstro vazou das veias da criatura para a terra em uma enxurrada incontrolável.
Magnus sentiu um arranhão em uma das mãos e olhou para baixo, avistando uma roseira que havia sobrevivido, porém se tornara selvagem. Levou um instante para identificar a planta, pois, apesar da forma dos botões ser familiar, a cor não era. As rosas eram negras como o sangue da serpente morta.
Ele arrancou uma. A flor se desfez em sua palma como se fosse feita de cinzas, como se já estivesse morta.
Magnus continuou em direção à casa.
A corrupção que se apoderou das rosas não poupou a casa. O que outrora fora uma fachada branca e lisa agora estava cinza, marcada por poeira negra e mofo verde. Os pilares brilhantes estavam cercados por vinhas moribundas, e as varandas, das quais Magnus se lembrava como aberturas de cálices de alabastro, agora estavam cheias de emaranhados de espinhos escuros e dos escombros dos anos.
A aldrava antes fora a imagem de um leão dourado e brilhante com um anel na boca. Agora o anel estava apodrecido nos degraus, e a boca do leão cinzento estava aberta e vazia em um rosnado faminto.
Magnus bateu rapidamente à porta. Ouviu o som ecoar pelo interior como se tudo ali fosse o silêncio pesado de um caixão, como se qualquer ruído fosse uma perturbação.
A convicção de que todos nesta casa deviam estar mortos se apoderou de Magnus de tal forma que foi um choque quando a mulher que o chamou abriu.
Era, claro, muito estranho uma dama abrir a própria porta da frente, mas, a julgar pela aparência do local, Magnus presumiu que todos os criados tivessem recebido a década de folga.
Magnus teve uma vaga lembrança de ter visto Tatiana Lightwood em uma das festas do pai: a visão de uma menina perfeitamente normal, com olhos verdes arregalados, atrás de uma porta que se fechava rapidamente.
Mesmo após ter visto a casa em ruínas, não estava preparado para Tatiana Blackthorn.
Ainda tinha olhos muito verdes. A boca teimosa trazia marcas de amargas decepções e muita dor. Ela parecia uma mulher na faixa dos 60, e não dos 40. Trajava um vestido fora de moda há décadas, que descia pelos ombros frágeis e esvoaçava ao redor do corpo como uma mortalha. O tecido tinha manchas marrom-escuras, mas, em alguns pontos, via-se um tom pastel quase branco, enquanto outros permaneciam com a cor que Magnus imaginava ser a original: fúcsia.
Ela deveria parecer patética. Usava um vestido rosa choque e ridículo feito para uma moça mais jovem, quase uma menina, apaixonada pelo marido e prestes a visitar o pai. Mas não estava patética. Seu rosto severo proibia qualquer pena. Ela, assim como a casa, inspirava respeito em sua ruína.
— Bane — disse Tatiana, e abriu a porta o suficiente para que Magnus pudesse passar.
Não disse qualquer palavra de boas-vindas.
Fechou a porta atrás dele, produzindo um som tão derradeiro quanto o do fechamento de um caixão. Magnus parou no corredor e, enquanto esperava a mulher atrás dele, ouviu passos acima de sua cabeça, sinal de que havia mais alguém vivo na casa.
Da escadaria ampla em curva, veio uma menina. Magnus sempre achou os mortais lindos e já havia visto muitos que qualquer pessoa descreveria como belos. Mas esta era uma beleza extraordinária, diferente da de quase todos os mortais.
Na ruína manchada e suja que a casa havia se tornado, ela brilhava como uma pérola. Seus cabelos também tinham cor de pérola, marfim-claro com um brilho dourado, e a pele tinha o branco e cor-de-rosa luminosos de uma concha. Os cílios eram espessos e escuros, cobrindo olhos de um cinza sublime.
Magnus respirou fundo. Tatiana o ouviu, olhou para ele e deu um sorriso triunfante.
— Ela é gloriosa, não? Minha pupila. Minha Grace.
Grace.
A descoberta atingiu Magnus como um golpe. Claro que James Herondale não estava falando “graça”, pedindo algo tão rudimentar e distante quanto uma bênção, o desespero da alma pela misericórdia e compreensão divina. O desespero era em função de algo mais terreno do que isso.
Mas por que segredo? Por que ninguém pode ajudá-lo? Magnus se esforçou para manter o rosto neutro enquanto a menina vinha até ele e lhe oferecia a mão.
— Como vai? — sussurrou ela.
Magnus a encarou. Seu rosto era um cálice de porcelana, e seus olhos carregavam promessas. A combinação de beleza, inocência e a promessa de pecado era atordoante.
— Magnus Bane — disse ela, com voz suave e ofegante.
Magnus não pôde deixar de encará-la. Tudo nela era perfeitamente construído para atrair. Era linda, sim, porém mais do que isso. Parecia tímida; no entanto, toda a sua atenção estava voltada para Magnus, como se ele fosse a coisa mais fascinante que ela já tinha visto. Não havia homem que não quisesse se ver refletido assim nos olhos de uma menina linda.
E se o vestido era um pouco decotado, não parecia escandaloso, pois seus olhos cinzentos eram cheios de uma inocência que dizia que ela não sabia o que era desejo, não ainda, mas a curva do lábio tinha uma exuberância, e os olhos, uma luz escura que dizia que, nas mãos certas, ela seria uma aprendiz que traria os mais incríveis resultados...
Magnus deu um passo para trás, afastando-se como se a menina fosse uma cobra venenosa. Ela não pareceu magoada, irritada ou sequer espantada. Virou o olhar para Tatiana, com uma espécie de dúvida curiosa.
— Mamãe? — perguntou. — O que há de errado?
Tatiana curvou o lábio.
— Este não é como os outros — falou. — Digo, ele gosta muito de meninas, e de meninos também, ouvi dizer, mas não sente atração por Caçadores de Sombras. E não é mortal. Está vivo há muito tempo. Não se pode esperar que tenha... reações normais.
Magnus conseguia imaginar perfeitamente quais seriam as reações normais – as reações de um garoto como James Herondale, protegido e ensinado que o amor era gentil e generoso, que a pessoa deveria amar com todo o coração e doar a alma. Magnus conseguia imaginar as reações diante desta menina, na qual cada gesto, expressão e traço dizia ame-a, ame-a, ame-a.
Mas Magnus não era esse garoto. Lembrou a si mesmo de que precisava ter bons modos e se inclinou.
— Encantado — disse. — Ou qualquer que seja o efeito de sua preferência.
Grace o olhou com um interesse frio. Suas reações foram indistintas, pensou Magnus, ou melhor: cuidadosamente aferidas. Ela parecia uma criatura feita para atrair a todos e não expressar nada real, embora fosse necessário um grande observador, como Magnus, para perceber.
De repente, ela lembrou Magnus não de uma mortal, mas da vampira Camille, que fora seu mais recente e lamentável amor verdadeiro.
Magnus passou anos imaginando que houvesse fogo por trás do gelo de Camille, que esperança, sonhos e amor o aguardavam. Mas o que ele amou em Camille não passou de uma ilusão. Magnus agiu como uma criança, procurando formas e histórias nas nuvens.
Ele desviou o olhar de Grace, em seu vestido branco e azul como uma visão do céu no inferno cinzento desta casa, e olhou para Tatiana. Ela estava com os olhos cerrados de desprezo.
— Venha, feiticeiro — disse. — Temos negócios a discutir.
Magnus seguiu Tatiana e Grace pelas escadas e por um longo corredor muito escuro. Ouviu estalos de vidro quebrado sob os pés e, à luz fraca e quase imperceptível, notou algo se afastando. Torceu para que fosse algo tão inofensivo quanto um rato, mas alguma coisa nos movimentos sugeria uma forma muito mais grotesca.
— Não tente abrir portas ou gavetas enquanto estiver aqui, Bane. — A voz de Tatiana flutuou até ele. — Meu pai deixou muitos guardiões para protegerem o que é nosso.
Ela abriu uma porta, e Magnus contemplou o cômodo. Havia uma mesa virada, cortinas pesadas nas janelas feito corpos de enforcados e, no piso de madeira, viam-se farpas e manchas de sangue, as marcas de uma luta antiga que ninguém limpou.
Havia muitos porta-retratos tortos ou com os vidros quebrados. Muitos pareciam expor aventuras náuticas – Magnus tinha perdido o interesse pelo mar após sua tentativa frustrada de levar uma vida pirata – mas mesmo as fotos que tinham permanecido inteiras estavam manchadas de cinza. Os navios pintados pareciam afundar em um mar de poeira.
Havia apenas um retrato incólume. Uma pintura a óleo, que não tinha qualquer proteção de vidro, mas estava livre de qualquer grão de poeira na superfície. Era a única coisa limpa, além de Grace, em toda a casa.
O retrato era de um garoto de mais ou menos 17 anos. Estava sentado em uma cadeira, com a cabeça apoiada no encosto como se não tivesse força para sustentá-la. Era terrivelmente magro, branco como sal. Os olhos eram de um verde profundo, como uma piscina natural em um bosque, escondida sob as folhas de uma árvore e nunca exposta ao sol ou ao vento. Tinha cabelos negros sobre o rosto, tão lisos e finos quanto seda, e os longos dedos estavam curvados sobre os braços da cadeira, quase agarrados a eles. A firmeza desesperada daquelas mãos contava uma história silenciosa de dor.
Magnus já havia visto retratos assim, as últimas imagens dos perdidos. Dava para perceber, mesmo com o passar dos anos, o esforço necessário ao garoto para posar para aquela foto, para o conforto daqueles que continuariam vivos depois de sua partida.
Seu rosto pálido tinha o olhar distante de alguém que tinha dado muitos passos pelo caminho da morte para ser lembrado. Magnus pensou em James Herondale, ardendo com luz demais, amor demais, demais, demais – enquanto o menino do retrato era tão adorável quanto um poeta moribundo, com a beleza frágil de uma vela prestes a se apagar.
No papel de parede rasgado que outrora talvez tivesse sido verde, mas agora apresentava uma coloração verde-cinzenta, como um mar cheio de lixo, havia palavras escritas no mesmo marrom-escuro das manchas do vestido de Tatiana. Magnus teve que admitir para si mesmo o que era aquela cor: sangue derramado há anos e jamais lavado.
O papel de parede se pendurava em farrapos. Magnus conseguia apenas identificar uma ou outra palavra nos pedaços que restavam: PENA, ARREPENDIMENTO, INFERNAIS.
A última frase continuava legível. Dizia: QUE DEUS TENHA PIEDADE DE NOSSAS ALMAS.
Abaixo, sem estar escrito em sangue, mas cortado no papel de parede com uma letra que Magnus suspeitava ser diferente, lia-se: DEUS NÃO TEM PIEDADE, E EU TAMBÉM NÃO TEREI.
Tatiana sentou-se em uma poltrona, o forro surrado e manchado pelos anos, e Grace se ajoelhou no chão imundo, ao lado da mãe adotiva. Ela se ajoelhou delicada e suavemente, as saias se acumulando ao redor como pétalas de uma flor. Magnus desconfiou que se tratasse de um hábito da menina, repousar na sujeira e se levantar com uma aparência radiantemente pura.
— Aos negócios, então, madame — disse o feiticeiro, e acrescentou silenciosamente para si próprio, para poder deixar essa casa o quanto antes. — Diga-me exatamente por que necessita dos meus incríveis e insuperáveis poderes, e o que quer que eu faça.
— Já percebeu, imagino — disse Tatiana — que minha Grace não precisa de feitiços que realcem seu charme natural.
Magnus olhou para Grace, que fitava as próprias mãos entrelaçadas no colo. Talvez já estivesse utilizando feitiços. Talvez fosse simplesmente linda. Magia ou natureza, para Magnus, eram a mesma coisa.
— Tenho certeza de que ela já é, por si só, um encanto.
Grace não disse nada, apenas olhou para ele sob os cílios. Um olhar extremamente arrasador.
— Quero outra coisa de você, feiticeiro. Quero que você — disse ela, lenta e claramente — saia pelo mundo e mate cinco Caçadores de Sombras para mim. Direi como deve ser feito, e pagarei uma bela quantia.
Magnus ficou tão espantado que sinceramente acreditou ter ouvido mal.
— Caçadores de Sombras? — repetiu. — Matar?
— Meu pedido é tão estranho assim? Não tenho amor aos Caçadores de Sombras.
— Mas, prezada senhora, você é uma Caçadora de Sombras.
Tatiana Blackthorn cruzou as mãos sobre o colo.
— Não sou nada.
Magnus encarou-a por um longo instante.
— Ah — disse. — Perdoe-me. Seria terrivelmente indelicado de minha parte perguntar o que a senhora acredita ser? Acha que é um abajur?
— Não vejo graça em sua leviandade.
O tom de Magnus foi sussurrado ao dizer:
— Perdoe-me mais uma vez. Acha que é um piano?
— Segure a língua, feiticeiro, e não fale sobre assuntos a respeito dos quais não sabe nada. — As mãos de Tatiana, de repente, se fecharam, fortes como garras na saia do vestido outrora luminoso. A nota de agonia verdadeira em sua voz foi o suficiente para calar Magnus, mas ela continuou: — Um Caçador de Sombras é um guerreiro. Um Caçador de Sombras nasce a fim ser treinado para agir como a mão de Deus na Terra, para livrá-la de todo o mal. É isso que dizem as nossas lendas. Foi isso que meu pai me ensinou, mas ele também me ensinou outras coisas. Decretou que eu não seria treinada como Caçadora de Sombras. Falou que não era o meu lugar, e que minha função na vida era ser a filha de um guerreiro e, um dia, a esposa de um nobre guerreiro e a mãe de guerreiros que carregariam a glória dos Caçadores de Sombras por mais uma geração.
Tatiana fez um gesto para as palavras nas paredes e as manchas no chão.
— Que glória — disse ela, e riu amargamente. — Meu pai e minha família foram desgraçados, e meu marido, destruído diante dos meus olhos. Destroçado. Tive um filho, meu menino lindo, meu Jesse, mas ele não podia ser treinado para se tornar guerreiro. Sempre foi tão fraco, tão adoentado. Implorei para que não aplicassem símbolos nele, tinha certeza de que o matariam, mas os Caçadores de Sombras me seguraram e o prenderam enquanto queimavam as Marcas na carne dele. Ele gritou sem parar. Todos achamos que fosse morrer, mas não. Ele sobreviveu por mim, pela mamãe dele, mas a crueldade o condenou. A cada ano se tornou mais doente e fraco, até ser tarde demais. Ele tinha 16 anos quando me disseram que não poderia mais viver.
Suas mãos se moviam agitadamente enquanto falava, do gesto para as paredes a puxões no vestido tingido com um sangue muito antigo. Tocou os próprios braços como se ainda doessem onde foi segurada pelos Caçadores de Sombras, e mexeu em um largo pingente pendurado no pescoço. Abriu e fechou-o, o metal manchado brilhando entre os dedos, e Magnus teve a impressão de ter visto um retrato fantasmagórico. Seu filho outra vez?
Olhou para a foto na parede, o rosto pálido e jovem, e calculou quantos anos deveria ter o filho de Rupert Blackthorn quando morreu, há vinte e cinco anos. Se Jesse Blackthorn morreu aos 16, então devia estar morto fazia nove anos, mas talvez o luto de uma mãe nunca passasse.
— Sei que sofreu muito, Sra. Blackthorn — disse Magnus, o mais suavemente possível. — Mas, em vez de uma vingança planejada com a destruição sem sentido de Caçadores de Sombras, considere que existem muitos Caçadores que não querem nada além de ajudá-la a suavizar sua dor.
— Ah, é? De quem está falando? William Herondale — pingou veneno a cada sílaba do nome de Will — zombou de mim porque tudo que fiz foi gritar enquanto meus amados morriam, mas diga, o que mais eu poderia ter feito? O que mais me ensinaram a fazer? — Os olhos de Tatiana estavam imensos e muito verdes, e eram olhos com dor suficiente para consumir o mundo e devorar uma alma. — Pode me dizer, feiticeiro? Será que William Herondale poderia me dizer? Alguém pode me dizer o que eu deveria ter feito, quando fiz tudo que me pediram? Meu marido está morto, meu pai também, meus irmãos, perdidos, minha casa, roubada, e os Nephilim não tiveram poderes para salvar meu filho. Fui tudo o que me pediram para ser, e, como recompensa, a minha vida foi reduzida a cinzas. Não fale em suavizar a minha dor. Minha dor é tudo o que me resta. Não fale sobre eu ser Caçadora de Sombras. Não sou. Recuso-me a ser.
— Muito bem, senhora. Já deixou bem clara a sua posição anti-Caçadores de Sombras — respondeu Magnus. — O que não sei é por que acha que vou ajudá-la a obter o que deseja.
Magnus era muitas coisas, mas nunca foi um tolo. A morte de alguns Caçadores de Sombras nunca foi o objetivo em si. Se tudo que quisesse fosse isso, ela não precisaria recorrer a ele. A única razão pela qual procuraria um feiticeiro seria se quisesse utilizar aquelas mortes, fazer alquimia com as vidas tiradas e transformá-las em magia para um feitiço. Seria o mais sombrio dos feitiços, e o fato de que Tatiana sabia a respeito desse tipo de coisa dizia a Magnus que esta não era a primeira vez que recorria à magia negra.
O que Tatiana Blackthorn – cuja dor a consumira como um lobo em seu íntimo – queria com a magia negra, Magnus não sabia. Ele não queria saber o que ela havia feito com o poder no passado, e certamente não queria que ela obtivesse poderes que pudessem ser cataclísmicos agora.
Tatiana franziu o rosto, um pouco confusa, e aquilo a deixou como a filha mimada e cheia de vontades de Benedict Lightwood mais uma vez.
— Por dinheiro, é claro.
— Você acha que eu mataria cinco pessoas e deixaria poderes impronunciáveis em suas mãos — disse Magnus — por dinheiro?
Tatiana fez um gesto de indiferença com a mão.
— Ah, não tente elevar o preço se autobajulando ou fingindo ser dotado de moral e ternura, filho de demônio. Diga um preço alto e pronto. As horas da noite são preciosas para mim, e não quero mais perder tempo com alguém como você.
Era a casualidade com que falava que era tão fria. Por mais louca que Tatiana estivesse, naquele momento não estava furiosa nem amarga. Simplesmente trabalhava com os fatos tais quais os Caçadores de Sombras os conheciam: um integrante do Submundo é tão inteiramente corrupto que ela ao menos sonhou que ele tivesse um coração.
Claro, claro, a grande maioria dos Caçadores de Sombras pensava nele como algo menor que os mundanos, e tão inferior aos filhos dos Anjos quanto primatas em relação aos humanos. Às vezes podia ser útil, mas era uma criatura a ser desprezada, usada e descartada, e seu toque tinha que ser evitado por não ser limpo.
Fora útil a Will Herondale, afinal. Will não o procurara como amigo, mas como uma fonte conveniente de magia. Mesmo os melhores Caçadores de Sombras não eram tão diferentes do restante.
— Deixe-me falar o que eu disse uma vez, em um contexto totalmente diferente, para Catarina, a Grande — declarou Magnus. — Prezada dama, você não tem condições financeiras de me pagar, e, por favor, deixe aquele cavalo em paz. Boa noite.
Então fez uma reverência e saiu, com um pouco de pressa. Enquanto a porta se fechava com uma pancada, ouviu a voz de Tatiana estalando no mesmo tom:
— Vá atrás dele!
Magnus não se surpreendeu ao ouvir passos suaves descendo atrás dele. Virou-se na entrada e encontrou os olhos de Grace.
Suas passadas eram tão leves quanto as de uma criança, mas ela não parecia uma criança. Naquele rosto semelhante à porcelana, seus olhos eram concavidades cinzentas, lagos densos e sedutores com sereias nas profundezas. Ela fitou os olhos de Magnus com tranquilidade e, mais uma vez, o feiticeiro se lembrou de Camille.
Era impressionante que uma garota que não aparentava ter mais de 16 anos pudesse rivalizar com uma vampira de séculos de existência em termos de autocontrole. Ainda não tinha tido tempo de se tornar tão fria a ponto de não se importar. Deve haver, pensou Magnus, alguma coisa por trás desse gelo.
— Não voltará lá para cima, percebo — disse Grace. — Não quer participar do plano de mamãe.
Não foi uma pergunta, e ela não soou abalada ou preocupada. Para ela, não era impossível que Magnus tivesse escrúpulos. Talvez a própria garota tivesse escrúpulos, mas estava trancada nesta casa escura com uma louca e mais nada, a não ser a amargura que entrava em seu ouvido do amanhecer ao anoitecer. Não era de estranhar que fosse diferente das outras garotas.
De repente, Magnus se arrependeu por ter se encolhido diante de Grace. Ela não passava de uma menina, afinal, e ninguém melhor do que ele para saber como era ser julgado e condenado. Esticou a mão para tocá-la no braço.
— Você tem para onde ir? — perguntou Magnus.
— Algum lugar? — disse Grace. — Moramos em Idris, na maior parte do tempo.
— O que quero dizer é: ela a deixaria sair? Você precisa de ajuda?
Grace se moveu tão rápido que pareceu um raio envolvido em musselina, a longa lâmina voando da saia para a mão. Ela segurou a ponta brilhante contra o peito de Magnus, sobre o coração.
Ali havia uma Caçadora de Sombras, pensou Magnus. Tatiana tinha aprendido algo com os erros do pai. Tinha mandado a menina treinar.
— Não sou prisioneira aqui.
— Não? — perguntou Magnus. — Então o que é?
Os olhos terríveis e autoritários de Grace se estreitaram. Brilhavam como aço e eram, Magnus tinha certeza, tão mortais quanto ele.
— Sou a lâmina de minha mãe.
Caçadores de Sombras frequentemente morriam cedo, deixando os filhos para serem criados por outros caçadores. Isso não era novidade. Era natural que uma pupila assim, acolhida por um Caçador de Sombras, pensasse no guardião ou guardiã como pai ou mãe. Magnus não questionava isso. Contudo, naquele instante lhe ocorreu que uma criança pudesse ter tanta gratidão que sua lealdade seria feroz, que uma garota criada por Tatiana Blackthorn pudesse não querer ser resgatada. Poderia não desejar nada além do cumprimento dos planos obscuros da mãe.
— Você está me ameaçando? — perguntou Magnus baixinho.
— Se não pretende nos ajudar — disse ela — então saia desta casa. Já vai amanhecer.
— Eu não sou vampiro — respondeu o feiticeiro. — Não desapareço com a luz.
— Desaparecerá, se eu matá-lo antes de o sol nascer — disse Grace. — Quem sentiria falta de um feiticeiro?
E ela sorriu, um sorriso selvagem que, mais uma vez, recordou-o de Camille. Aquela mistura potente de beleza e crueldade. Ele próprio já tinha sido vítima. Mais uma vez, só pôde imaginar, com pavor, que efeito aquilo teria provocado em James Herondale, um menino bondoso preparado para acreditar que o amor também era bondoso. James dera o coração a esta menina, pensou Magnus, e o feiticeiro sabia muito bem, graças a Edmund e Will, o que significava quando um Herondale entregava o coração. Não era um presente que pudesse ser devolvido.
Tessa, Will e Jem criaram James com amor, cercando-o desse sentimento e do bem que ele trazia. Mas não o prepararam para os possíveis males. Envolveram seu coração com seda e veludo, para em seguida o menino o entregar a Grace Blackthorn, que o colocou em uma jaula com arames farpados e cacos de vidro, incendiando-o e explodindo o que sobrou, como mais uma camada de cinzas neste local de lindos horrores.
Magnus fez um gesto por trás das costas, em seguida se afastou da lâmina de Grace pela porta que se abriu magicamente.
— Você não vai contar a ninguém sobre o que minha mãe lhe pediu esta noite — disse Grace. — Ou vou fazer questão de que seja destruído.
— Acredito que se julgue capaz disso. — Magnus suspirou. Ela era terrível e brilhante, como a luz que irradiava da ponta de uma lâmina. — Aliás, desconfio que se James Herondale soubesse que eu vinha para cá hoje, teria mandado lembranças.
Grace abaixou a espada, nada mais. A ponta se apoiou suavemente no chão. A mão não tremeu, e os cílios esconderam os olhos.
— E por que me interessaria por James Herondale? — perguntou ela.
— Achei que pudesse. Afinal de contas, uma lâmina não escolhe para onde aponta.
Grace ergueu o olhar. Seus olhos eram piscinas profundas e paradas, inteiramente imperturbáveis.
— Uma lâmina não se importa — disse ela.
Magnus virou-se e atravessou o caminho cheio de rosas negras e mato em direção aos portões enferrujados. Olhou mais uma vez para a casa, só uma, observando as ruínas do que outrora fora majestoso, uma cortina voando em uma janela alta e a sugestão de um rosto. Ficou imaginando quem o estaria vendo sair.
Poderia alertar aos membros do Submundo que ficassem longe de Tatiana e de seus planos. Não importa o quanto oferecesse, ninguém do Submundo deixaria de ouvir um alerta contra algum dos Nephilim. Tatiana não obteria magia negra.
Isso Magnus podia fazer, mas não sabia como ajudar James Herondale. Talvez Grace e Tatiana o tivessem enfeitiçado, imaginou Magnus. Não duvidaria disso, mas não conseguia imaginar por quê. Que papel James Herondale poderia desempenhar em qualquer plano sombrio que arquitetavam? O mais provável era que o garoto simplesmente houvesse cedido aos encantos de Grace. Amor era amor, e não havia feitiço que curasse um coração partido sem destruir para sempre a capacidade deste de amar.
E não havia motivo para Magnus revelar a Will e Tessa o que havia descoberto. Os sentimentos de James por Grace eram um segredo do garoto. Magnus disse ao rapaz que jamais trairia sua confiança, e não o faria agora. Que bem faria a Will e Tessa saber o nome da dor do filho e, mesmo assim, não conseguir curá-la?
Pensou mais uma vez em Camille e em como havia magoado saber a verdade sobre ela, em como havia lutado feito um homem que se arrasta sobre facas para não saber, e, finalmente, como fora forçado a aceitar aquilo com mais dor ainda.
Magnus não fazia pouco caso de um sofrimento como esse, mas nem os mortais morriam por corações partidos. Por mais cruel que Grace tivesse sido, ele disse a si mesmo, James ficaria bem. Mesmo sendo um Herondale.
Abriu os portões, os espinhos arranhando sua mão, e lembrou-se novamente do primeiro momento em que viu Grace, e da sensação de ter sido encarado por um predador. Ela era muito diferente de Tessa, que sempre manteve Will estável e protegido, animando seus olhos e suavizando-lhe os lábios.
Seria irônico, pensou Magnus, terrível e cruelmente irônico, que um Herondale fosse salvo pelo amor e o outro, condenado.
Tentou afastar tanto a lembrança de Tessa e Will quanto o eco das palavras reprovadoras de Tatiana.
Havia prometido a Tessa que voltaria, mas, naquele momento, percebeu que tudo o que queria era fugir.
Não ligava para o que os Caçadores de Sombras pensavam a seu respeito. Não queria se importar com o que acontecia a ele ou a seus filhos.
Oferecera ajuda a três Caçadores de Sombras esta noite. Um deles respondeu que nada poderia ajudá-lo, a outra pediu que cometesse assassinatos, e a terceira apontou uma lâmina para seu peito.
Sua relação de tolerância distante e mútua com os Whitelaw do Instituto de Nova York de repente pareceu atraente. Ele fazia parte do Submundo de Nova York e não queria nada diferente. Ficou feliz por ter deixado Londres. Percebeu que estava com saudade de Nova York e de suas luzes mais brilhantes e da menor quantidade de corações partidos.
— Para onde vamos? — perguntou o cocheiro.
Magnus pensou no navio que ia de Southampton para Nova York, no convés da embarcação, no ar marinho limpando a névoa de Londres. Respondeu:
— Acho que vou para casa.

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