Prólogo
Guardei esta verdade, com ele que canta
com uma harpa brilhante em diversos tons
Que os homens podem subir em caminhos de pedra
para sua natureza implacável até as coisas mais elevadas.
– Alfred, Lord Tennyson, In Memoriam A.H.H.
York, 1847
— Estou com medo — disse a menininha sentada na cama — vovô, o senhor pode ficar comigo?
Aloysius Starkweather fez um ruído impaciente no fundo da garganta enquanto aproximou uma cadeira da cama e se sentou. Esse ruído impaciente era apenas um pouco verdadeiro. Achava agradável que sua neta confiasse tanto nele, que com frequência ele era o único que conseguia acalmá-la. O comportamento rude dele nunca a havia incomodado, apesar da natureza delicada da menina.
— Não há o que temer, Adele — disse ele — você verá.
Ela o encarou com seus olhos grandes.
Normalmente, a cerimônia das runas seria feita em um dos salões do Instituto de York, porém, devido aos nervos e saúde frágeis de Adele, houve um acordo de que a cerimônia poderia ocorrer na segurança do quarto dela. Ela sentava na beira da cama, suas costas muito retas. Seu vestido cerimonial era vermelho, com um laço escarlate prendendo seu bonito cabelo loiro para trás. Os olhos eram muito grandes em seu rosto; os braços, estreitos. Tudo nela era frágil como uma xícara de porcelana.
— Os Irmãos do Silêncio — ela falou — o que eles farão comigo?
— Me dê seu braço — ele pediu, e Adele estendeu o braço, confiante. Ele o virou para baixo, vendo os pálidos traços azuis das veias embaixo da pele — eles usarão estelas – você já sabe o que é uma estela – para desenhar uma marca em você. Geralmente, eles começam com a runa da Visão, que já deve ter conhecido em seus estudos, mas no seu caso, eles começarão com a runa da Força.
— Porque eu não sou muito forte.
— Para encorpar sua estrutura.
— Como no caldo de carne — Adele apontou, franzindo o nariz.
Ele riu.
— Esperemos que não seja tão desagradável. Você vai sentir uma picadinha, então precisa ser corajosa e não gritar, porque Caçadores de Sombras não gritam de dor. A picadinha sumirá, e você se sentirá muito mais forte e melhor. E esse será o fim da cerimônia, iremos descer e lá haverá bolos gelados para celebrarmos.
Adele fez um barulho com seus saltos.
— E uma festa!
— Sim, uma festa. Com presentes — ele deu um tapinha no bolso, onde uma pequena caixa estava escondida – uma pequena caixa embrulhada em um bonito papel azul, que continha um anel de família ainda menor — tenho um para você bem aqui. Você irá ganhá-lo assim que a cerimônia das runas estiver terminada.
— Nunca tive uma festa para mim antes.
— É porque você se tornará uma Caçadora de Sombras — disse Aloysius — sabe por que isso é importante, não sabe? As primeiras marcas mostram que você é uma Nephilim, como eu, como sua mãe e seu pai. Elas significam que você faz parte da Clave. Parte de sua família guerreira. Algo diferente e melhor que todos os outros.
— Diferente e melhor que todos os outros — repetiu ela lentamente, enquanto a se porta abriu e dois Irmãos do Silêncio entraram.
Aloysius viu uma faísca de medo nos olhos de Adele. Ela puxou o braço para longe de seu alcance.
Ele franziu o cenho – não gostou de ver medo nos olhos de sua descendente, embora não pudesse negar que os Irmãos eram estranhos, com seu silêncio e seus movimentos deslizantes. Eles se moveram ao redor da cama de Adele quando a porta do quarto se abriu novamente e os pais de Adele entraram: o pai dela, filho de Aloysius, em trajes escarlates; a mãe com um vestido vermelho que alargava-se na cintura, e um colar dourado que trazia como pingente uma runa enkeli.
Eles sorriram para a filha, que retribuiu com um sorriso trêmulo.
Adele Lucinda Starkweather. Era a voz do primeiro Irmão do Silêncio, Irmão Cimon. Você já tem idade suficiente. Chegou a hora de receber a primeira marca do Anjo. Está ciente de que isso é uma honra, e fará tudo em seu poder para ser merecedora dela?
Adele concordou com a cabeça, obediente.
— Sim.
E aceita essas marcas do Anjo, que ficarão em seu corpo para sempre, um lembrete de tudo o que deve ao Anjo, e de seu dever sagrado para com o mundo?
Ela repetiu o gesto, obedientemente. O coração de Aloysius se encheu de orgulho.
— Eu as aceito.
Então começaremos.
Uma estela brilhou diante dela, na mão longa e branca do Irmão do Silêncio. Ele segurou o braço trêmulo de Adele e posicionou a ponta da estela na pele dela, e começou a desenhar.
Linhas pretas rodopiaram pela ponta da estela, e Adele encarou-as com assombro enquanto o símbolo da Força tomava forma na pele pálida da parte interna de seu braço, um desenho delicado de linhas cruzando umas com as outras, passando por suas veias, envolvendo seu braço. Os olhos dela brilharam em direção a Aloysius, e o que ele viu neles o espantou.
Dor. Era normal sentir um pouco de dor ao receber uma Marca, mas o que ele viu nos olhos de Adele... era agonia.
Aloysius se levantou, jogando a cadeira onde estava sentado para longe.
— Pare! – gritou ele, mas já era tarde demais.
A runa estava completa. O Irmão do Silêncio se afastou, observando. Havia sangue na estela. Adele choramingava, ciente da advertência de seu avô para que não gritasse, mas então sua pele sangrenta, dilacerada, começou a se descascar, separando-se dos ossos, escurecendo e queimando embaixo da runa como se fosse fogo, e ela não pôde fazer nada a não ser jogar a cabeça pra trás e gritar, e gritar...
***
Londres, 1873
— Will? — Charlotte Fairchild empurrou a porta da sala de treinamento do Instituto. — Will, você está aí?
Um resmungo abafado foi a única resposta. A porta se abriu completamente, revelando a sala de teto amplo e alto do outro lado. Charlotte havia crescido treinando ali, e conhecia cada deformidade das tábuas do chão; o antigo alvo pintado na parede ao norte; as janelas contornadas com vidro, tão velhas que eram mais finas na base do que em cima.
No centro da sala, estava Will Herondale, parado, segurando uma faca em sua mão direita. Ele moveu a cabeça para olhar para Charlotte, e ela pensou novamente no quão singular esse menino era, embora aos doze anos praticamente já não fosse mais uma criança. Era um menino muito bonito, de cabelo escuro e grosso, que ondulava ligeiramente onde tocava o colarinho – agora molhado de suor, e grudado na testa dele. Sua pele havia sido bronzeada pelo ar e sol do campo, embora seis meses de vida na cidade já tivessem o feito perder a cor, fazendo com que o rubor de suas bochechas se destacasse. Ele seria um homem bonito um dia, se conseguisse fazer algo com essa carranca que deformava seus traços de maneira constante.
— O que foi, Charlotte? — ele perguntou, quase com um estalo.
Ele ainda falava com um leve sotaque galês, com as vogais um pouco enroladas, o que seria charmoso se o tom dele não fosse tão ácido. Ele passou a manga da camisa na testa enquanto Charlotte caminhou da porta até o meio da sala, então pausou.
— Procurei por você por horas — disse ela com alguma rispidez, embora isso fizesse pouco efeito em Will.
Praticamente nada fazia efeito quando ele estava de mau humor, e ele estava quase sempre de mau humor.
— Você não se lembra do que lhe disse ontem, que estaríamos recebendo um recém-chegado ao Instituto hoje?
— Ah, eu me lembro — Will jogou a faca. Ela ficou presa bem próxima ao círculo do alvo, do lado de fora, o que acentuou sua carranca — só não me importo.
O garoto atrás de Charlotte emitiu um ruído sufocado. Uma risada, Charlotte teria pensado, mas ele certamente não poderia estar rindo.
Ela havia sido alertada de que o garoto que chegaria do Instituto de Xangai não estava bem, mas ainda assim havia se espantado quando ele desceu da carruagem, pálido e oscilante como uma cana ao vento, seu cabelo preto encaracolado manchado com um pouco de prateado, como se ele fosse um homem de oitenta anos, não um garoto de doze. Seus olhos eram grandes e de uma mistura entre o preto e o prata, estranhamente bonitos, estonteantes em um rosto tão delicado.
— Will, você será educado — disse ela agora, e puxou o garoto de trás dela, guiando-o para frente na sala — não se incomode com o Will, ele só é mal-humorado. Will Herondale, permita-me apresentá-lo a James Carstairs, do Instituto de Xangai.
— Jem — corrigiu o garoto — todo mundo me chama de Jem.
Ele deu mais um passo para dentro da sala, seu olhar medindo Will com uma curiosidade amigável. Ele falou sem qualquer sotaque, para a surpresa de Charlotte, mas então se lembrou que o pai dele é – era – britânico.
— Vocês também podem me chamar assim.
— Bom, se todo mundo te chama assim, não é exatamente um favor especial para mim, é? — a voz de Will era ácida; para alguém tão jovem, ele era incrivelmente capaz de ser desagradável. — Acho que você descobrirá, James Carstairs, que se ficar na sua e me deixar em paz, será o melhor para nós dois.
Charlotte suspirou intimamente. Ela havia esperado que esse garoto, da mesma idade de Will, se tornasse uma ferramenta para desarmá-lo de sua raiva e de sua crueldade, mas agora parecia óbvio que Will havia falado a verdade quando disse que não se importava que outro Caçador de Sombras estivesse chegando ao Instituto. Ele não queria amigos, ou desejava tê-los.
Charlotte olhou para Jem, esperando vê-lo piscar de surpresa ou mágoa, porém ele apenas sorria levemente, como se Will fosse um gatinho que estivesse tentado mordê-lo.
— Eu não treino desde que saí de Xangai — comentou — um parceiro seria útil, alguém com quem eu pudesse lutar.
— Eu concordo — Will respondeu — mas preciso de alguém que possa me acompanhar, não uma criatura doentia que parece estar a caminho do túmulo. Embora eu acredite que você possa ser útil para treinar o alvo.
Charlotte, que sabia mais sobre James Carstairs, algo que ela não dividiu com Will, sentiu um horror doentio se apoderar dela. A caminho do túmulo. Oh, meu Deus. O que mesmo que seu pai havia dito? Que James Carstairs era dependente de uma droga para viver, uma espécie de remédio que prolongaria sua vida, mas não a salvaria.Ah, Will.
Ela fez um movimento como se fosse se meter entre os dois garotos, proteger Jem da crueldade de Will, mais acentuada do que nunca – mas então ela parou.
Jem nem havia mudado sua expressão.
— Se com “a caminho do túmulo” você quis dizer que eu estou morrendo, então está certo — disse ele — tenho mais uns dois anos de vida, três, se eu tiver sorte. É o que me dizem.
Will não conseguiu esconder seu choque, suas bochechas coraram.
— Eu…
Jem, porém, se aproximava do alvo desenhado na parede; quando o alcançou, puxou a faca fincada ali, soltando-a da madeira. Depois, ele se virou e caminhou diretamente até Will. Delicado como era, eles eram da mesma altura, e a apenas centímetros de distância, seus olhos se encontraram e se encararam.
— Pode me usar para praticar o alvo se assim desejar — Jem continuou, tão casualmente como se estivessem falando sobre o tempo — tenho a impressão de que tenho pouco a temer com esse exercício, uma vez que você claramente não é um bom atirador — ele se virou, mirou e deixou que a faca voasse. Ela ficou presa diretamente no coração do alvo, tremendo de leve — ou você poderia permitir que eu lhe ensinasse. Porque eu sou um atirador muito bom.
Charlotte não desviou o olhar. Por meio ano, ela tinha visto Will afastar todos que tentassem se aproximar dele – tutores; o pai dela; o noivo dela, Henry; os dois irmãos Lightwood – com uma combinação de ódio e crueldade calculada. Se ela própria não tivesse sido a única a ver Will chorar, teria desistido também, há muito, de esperar que ele fosse gentil com alguém algum dia. Porém, ali estava ele, olhando para Jem Carstairs, um garoto de aparência tão frágil que parecia ser feito de vidro, com a dureza de sua expressão lentamente se dissolvendo em uma incerteza hesitante.
— Você não está realmente morrendo — ele perguntou, com um tom muito estranho em sua voz — está?
Jem concordou com a cabeça.
— É o que me dizem.
— Sinto muito — disse Will.
— Não — Jem respondeu suavemente. Ele jogou sua jaqueta de lado e pegou uma faca de seu cinto — não seja comum dessa maneira. Não diga que você sente muito. Diga que treinará comigo.
Ele estendeu sua faca a Will, pelo cabo. Charlotte segurou a respiração, com medo de se mover. Sentiu como se estivesse assistindo alguma coisa muito importante acontecer, embora não soubesse dizer o quê.
Will se aproximou e segurou a faca, seus olhos nunca desviando do rosto de Jem. Seus dedos tocaram os do outro garoto quando ele pegou a arma. Foi a primeira vez, pensou Charlotte, que ela tinha visto Will tocar alguma outra pessoa espontaneamente.
— Eu treinarei com você.
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