Vampiros, bolinhos e Edmund Herondale
Londres, 1857
Desde os infelizes eventos da Revolução Francesa, Magnus nutria um leve preconceito contra vampiros. Os mortos-vivos estavam sempre matando os servos das pessoas e ameaçando a vida de seus macacos, e o clã de vampiros de Paris continuava lhe mandando recados grosseiros por causa do pequeno mal-entendido que tiveram. Vampiros guardavam rancor por mais tempo do que quaisquer outras criaturas teoricamente vivas e, sempre que ficavam de mau humor, se manifestavam por meio do assassinato. Magnus normalmente desejava que seus companheiros tivessem menos (sem duplo sentido) sede de sangue.
Além disso, às vezes, os vampiros cometiam crimes piores do que um assassinato. Eles cometiam crimes contra a moda. Quando uma pessoa é imortal, tende a se esquecer de que o tempo passa. Mas isso não é desculpa para vestir uma boina que foi moda na época de Napoleão I.
No entanto, Magnus estava começando a ter a sensação de que talvez tivesse se precipitado ao descartar todos os vampiros.
Lady Camille Belcourt era uma mulher incrivelmente charmosa. E se vestia de acordo com a última moda. Seu vestido tinha uma saia com anquinha adorável, e o caimento dos sete babados estreitos de tafetá azul sobre os quadris fazia parecer que ela emergia de uma cascata de água azul reluzente. Não havia muito tecido sobre o busto, que era pálido e curvo como uma pérola. A única coisa que quebrava a palidez perfeita da curvatura dos seios e da nuca era uma fita preta de veludo, além dos cachos espessos e brilhantes ao redor do rosto. Um dos cachos louros era comprido o bastante para repousar na curva da clavícula, o que fez com que os olhos de Magnus novamente retornassem aos...
Na verdade, todos os caminhos levavam aos seios de Camille.
Era um vestido adorável. E os seios também eram adoráveis.
Lady Camille, tão observadora quanto bela, percebeu que Magnus a notara, e sorriu.
— A melhor coisa de ser uma criatura da noite — confidenciou em voz baixa — é que não preciso usar nenhum traje além do noturno.
— Jamais tinha considerado essa questão — respondeu Magnus, bastante impressionado.
— Claro que adoro variar, por isso aproveito qualquer chance de mudar de roupa. Acho que, durante uma noite de aventuras, há muitas ocasiões nas quais uma dama pode se despir — ela se inclinou para a frente, com o cotovelo pálido e macio apoiado sobre a mesa de mogno dos Caçadores de Sombras. — Algo me diz que você é um homem que entende de noites de aventuras.
— Milady, comigo toda noite é uma aventura. Por favor, prossiga com seu discurso sobre a moda — incentivou Magnus. — É um dos meus assuntos favoritos.
Lady Camille sorriu.
O feiticeiro baixou a voz discretamente.
— Ou, se preferir, pode continuar falando sobre se despir. Acho que esse sim é o meu assunto favorito.
Sentaram-se lado a lado ao redor da longa mesa, no Instituto dos Caçadores de Sombras de Londres.
O Cônsul, um terrível Nephilim que conduzia a reunião, falava com voz monótona sobre todos os feitiços que gostaria que os bruxos disponibilizassem a preço de banana, e sobre suas noções de comportamento adequado a vampiros e lobisomens. Magnus não ouviu nada sobre como esses “Acordos” poderiam beneficiar os integrantes do Submundo, mas certamente entendia por que os Caçadores de Sombras desenvolveram um desejo passional de homologá-los.
Começou a se arrepender de ter aceitado viajar a Londres e ir ao Instituto para que os Caçadores de Sombras pudessem desperdiçar seu precioso tempo. O Cônsul, que Magnus acreditava se chamar Morgalgumacoisa, parecia totalmente apaixonado pela própria voz.
Apesar de, na verdade, ele já ter parado de falar.
Magnus desviou o olhar de Camille e se deparou com uma visão muito menos agradável: o Cônsul o encarava – e a reprovação era visível em seu rosto, de modo tão claro quanto os símbolos em sua pele.
— Se você e a... a vampira puderem parar de flertar por um instante — disse, em tom ácido.
— Flertar? Estávamos apenas conversando de forma mais picante — disse Magnus, ofendido. — Quando eu começar a flertar, garanto que todos os presentes saberão. Meus flertes criam diabretes.
Camille riu.
— Belo verso.
A piada de Magnus pareceu libertar o descontentamento inquieto de todos os membros do Submundo à mesa.
— O que podemos fazer, além de conversar uns com os outros? — perguntou um jovem lobisomem que, apesar da pouca idade, tinha os olhos verdes e intensos de um fanático, e o rosto fino e determinado de um fanático competente, na verdade. Seu nome era Ralf Scott. — Estamos aqui há três horas e ainda não tivemos a chance de falar. Vocês, Nephilim, monopolizaram os diálogos.
— Não posso acreditar — disse Arabella, uma sereia encantadora, com conchas posicionadas de modo fascinante — que após nadar no Tâmisa, aceitei ser retirada por polias e posta em um aquário de vidro para isso.
Ela falou bem alto.
Até Morgalgumacoisa pareceu espantado. Por que, era o que Magnus queria saber, os nomes dos Caçadores de Sombras eram tão compridos, se os feiticeiros adotavam sobrenomes elegantes com apenas uma sílaba? Os nomes longos eram mera presunção.
— Vocês, seus desgraçados, deveriam se sentir honrados por estarem no Instituto de Londres — rosnou um Caçador de Sombras de cabelos prateados chamado Starkweather. — Eu não permitiria a entrada de nenhum de vocês no meu Instituto, a não ser que estivesse trazendo sua cabeça em uma lança. Fiquem em silêncio e deixem que os superiores falem por vocês.
Uma pausa muito constrangedora se seguiu. Starkweather olhou em volta, e seus olhos pousaram em Camille, não como se ela fosse uma mulher bonita, mas como se pudesse se tornar um belo troféu na parede. Os olhos de Camille se direcionaram para seu líder e amigo, o vampiro de cabelos claros Alexei De Quincey, mas este não respondeu ao seu apelo silencioso. Magnus esticou a mão e pegou a dela.
A pele de Camille era fria, mas os dedos se encaixavam muito bem nos dele. Magnus viu Ralf Scott olhar para eles e empalidecer. Ele era ainda mais jovem do que o feiticeiro imaginara. Tinha olhos enormes, verdes e vítreos, transparentes o bastante para que todas as suas emoções brilhassem através deles naquele rosto esguio. E estavam fixos em Camille.
Interessante, pensou Magnus, e registrou aquela observação.
— Esses devem ser acordos de paz — disse Scott, de forma deliberadamente lenta. — O que significa que todos temos que ter voz. Ouvi sobre como a paz vai beneficiar os Caçadores de Sombras. Agora quero discutir como vai beneficiar os integrantes do Submundo. Teremos assentos no Conselho?
Starkweather começou a engasgar. Uma das Caçadoras de Sombras se levantou precipitadamente.
— Céus, acho que meu marido ficou tão animado com a chance de fazer um discurso que não ofereceu um lanche — disse em voz alta. — Sou Amalia Morgenstern.
Ah, é isso, pensou Magnus. Morgenstern. Péssimo nome.
— Posso oferecer alguma coisa? — prosseguiu a mulher. — Vou chamar a criada em um instante.
— Mas nada de carne crua para o cachorro, por favor — disse Starkweather, e abafou o riso.
Magnus viu outra Caçadora de Sombras disfarçar uma gargalhada com a mão na frente do rosto. Ralf Scott se sentou, pálido e imóvel. Ele tinha sido a principal força por trás da reunião dos integrantes do Submundo ali, e o único lobisomem disposto a comparecer. Até seu irmão mais novo, Woolsey, ficara de fora, despedindo-se do rapaz na escada do Instituto, jogando os cabelos louros para o lado de forma indiferente e dando uma piscadela para Magnus. (Magnus também pensou que isso era interessante.)
As fadas se recusaram veementemente a comparecer, pois a rainha fora contra. Magnus era o único feiticeiro presente, e Ralf precisara caçá-lo, por causa de suas ligações com os Irmãos do Silêncio. O próprio Magnus não levava muita fé na tentativa de forjar a paz com os Caçadores de Sombras, mas foi triste ver os sonhos ilusórios do rapaz acabarem desse jeito.
— Estamos na Inglaterra, não estamos? — perguntou Magnus, e sorriu para Amalia Morgenstern, que parecia bastante afobada. — Eu adoraria uns bolinhos.
— Ah, certamente — disse Amalia. — Com creme, é claro.
Magnus olhou para Camille.
— Algumas das minhas melhores lembranças incluem muito creme e belas mulheres.
Magnus estava adorando escandalizar os Caçadores de Sombras. Camille também parecia se divertir. Por um instante, ela fechou os olhos verdes com satisfação divertida, como se fosse uma gata que já havia consumido sua cota de creme.
Amalia tocou o sino.
— Enquanto esperamos os bolinhos, podemos ouvir o resto do discurso do querido Roderick!
Fez-se um silêncio aterrador e, na quietude, o murmúrio do lado de fora da porta foi ouvido alto e bom som.
— Anjo Piedoso, dai-me força para suportar...
Roderick Morgenstern, que Magnus realmente achava que merecia ter um nome que soasse como um bode mascando cascalho, levantou-se, satisfeito, para continuar o discurso. Amalia tentou se erguer discretamente do assento – Magnus poderia ter dito a ela que saias com anquinhas e discrição eram uma combinação desastrosa – e caminhou até a porta, que se abriu.
Diversos jovens Caçadores de Sombras caíram dentro da sala como cachorrinhos, rolando uns sobre os outros. Os olhos de Amalia se arregalaram com uma surpresa cômica.
— Que diabos...
Apesar de Caçadores de Sombras terem a velocidade dos anjos, apenas um deles conseguiu aterrissar com graça. Um garoto, ou melhor, um rapaz, que caiu sobre um dos joelhos diante de Amalia, como Romeu pedindo a mão de Julieta em casamento.
Ele tinha cabelos da cor de uma moeda de ouro puro, e as linhas do rosto eram tão harmoniosas e elegantes quanto uma efígie talhada em uma daquelas moedas principescas. A camisa se desalinhou em algum momento da bisbilhotice, e o colarinho aberto revelava a ponta de um símbolo desenhado na pele branca.
Os atributos mais marcantes do jovem eram seus olhos. Eram olhos risonhos, ao mesmo tempo alegres e delicados: tinham o azul-celeste radiante do momento de transição entre dia e noite no Paraíso, quando os anjos que passaram o dia bem-comportados se descobriam tentados a pecar.
— Não pude suportar mais um minuto longe de você, minha cara, caríssima Sra. Morgenstern — disse o jovem, agarrando a mão de Amalia. — Sinto muita saudade.
Ele piscou os longos cílios dourados, e Amalia Morgenstern foi imediatamente reduzida a rubores e sorrisos.
Magnus sempre preferira cabelos pretos. Parecia que o destino estava determinado a expandir seus horizontes. Isso ou todas as pessoas louras do mundo se uniram em uma espécie de conspiração para, de repente, se tornarem lindas.
— Com licença, Bane? — disse Roderick Morgenstern. — Você está prestando atenção?
— Sinto muito — respondeu Magnus educadamente. — Uma pessoa incrivelmente atraente acabou de entrar no recinto e desviou minha atenção de suas palavras.
Talvez não tenha sido uma declaração inteligente. Os Caçadores de Sombras anciãos, representantes da Clave, pareciam chocados e horrorizados com qualquer integrante do Submundo que demonstrasse interesse em um de seus jovens. Os Nephilim também tinham opiniões muito convictas no quesito comportamento homossexual ou devasso, considerando que, como grupo, suas principais ocupações consistiam em apontar armas grandes e julgar todos que conheciam.
Nesse meio-tempo, parecia que Camille passara a achar Magnus ainda mais interessante. Ela olhou de um lado para o outro, dele para o jovem e louro Caçador de Sombras, e cobriu o sorriso com uma mão enluvada.
— Ele é uma graça — sussurrou para Magnus.
Magnus observava Amalia expulsar os jovens Caçadores de Sombras: o rapaz louro; um rapaz mais velho com cabelos castanhos espessos e sobrancelhas marcantes; e uma garotinha de olhos escuros, que parecia um pássaro e não devia ter mais que 3 anos. Ela olhou por cima do ombro e disse:
— Papa?
Era evidente que estava chamando o líder do Instituto de Londres, um homem moreno com expressão severa chamado Granville Fairchild.
— Vá, Charlotte. Você sabe qual é o seu dever — disse Fairchild.
O dever antes de tudo; essa era a conduta do guerreiro, refletiu Magnus. E certamente o dever antes do amor.
A pequena Charlotte era uma Caçadora de Sombras dedicada, e se afastou, obediente.
A voz baixa de Camille chamou novamente a atenção de Magnus.
— Não suponho que queira dividi-lo?
Magnus retribuiu o sorriso.
— Não como refeição. Foi isso o que quis dizer?
Camille riu. Ralf Scott emitiu um ruído impaciente, mas foi silenciado por De Quincey, que murmurou irritado para ele. Ao mesmo tempo, acima do barulho, surgiram os grunhidos descontentes de Roderick Morgenstern, um homem claramente interessado em terminar o discurso. E, então, finalmente chegou o lanche, servido em bandejas de prata por uma horda de criadas.
Arabella, a sereia, levantou a mão, agitando-se no aquário.
— Por favor — disse ela. — Quero um bolinho.
***
Quando o discurso interminável de Morgenstern acabou, todos já tinham perdido o desejo de conversar e só queriam ir para casa. Magnus se separou de Camille Belcourt, com profunda relutância, e dos Caçadores de Sombras, com enorme alívio.
Já fazia tempo que o feiticeiro não se apaixonava e estava começando a sentir os efeitos disso: lembrava-se do brilho do amor como mais forte e da dor da perda como mais suave do que de fato eram.
Viu-se procurando potencial para o amor em diversos rostos e enxergando muitas pessoas como um Santo Graal de possibilidades. Talvez agora houvesse aquele algo mais indefinível que fazia corações famintos perambularem, desejarem e procurarem alguma coisa que não sabiam o que era, mas da qual, mesmo assim, não desistiam. Atualmente, cada vez que um rosto, olhar ou gesto chamava a atenção de Magnus, também despertava em seu peito um refrão, uma canção em ritmo insistente como o de suas batidas. Talvez desta vez, talvez esta pessoa.
Enquanto caminhava pela Thames Street, começou a arquitetar maneiras de encontrar Camille novamente. Ele deveria fazer uma visita ao clã de vampiros de Londres. Sabia que De Quincey morava em Kensington.
Era uma questão de educação.
— Afinal — falou Magnus em voz alta para si mesmo, balançando a bengala cuja extremidade era uma cabeça de macaco esculpida — pessoas atraentes e interessantes simplesmente não caem do céu.
Foi então que o Caçador de Sombras de cabelos louros que Magnus viu no Instituto deu um salto-mortal do alto de um muro e aterrissou com graça na rua na frente dele.
— Roupas maravilhosas feitas na Bond Street com coletes de brocado vermelho simplesmente não caem do céu! — proclamou Magnus aos Céus em mais uma tentativa.
O jovem franziu a testa.
— Como?
— Ah, nada. Nada mesmo — disse Magnus. — Posso ajudá-lo? Acho que não tive o prazer de conhecê-lo.
O Nephilim se inclinou e pegou o chapéu, que caíra sobre os paralelepípedos quando saltou. Depois, tirou-o para fazer um floreio na direção de Magnus. O efeito do sorriso combinado com os cílios foi como um terremoto de atração. Magnus não podia culpar Amalia Morgenstern pelos risinhos, mesmo que o garoto fosse jovem demais para ela.
— Nada menos do que quatro de meus estimados anciãos me alertaram a jamais conversar com você, então jurei que o conheceria. Meu nome é Edmund Herondale. Posso perguntar o seu? Só se referiram a você como “aquela desgraça de feiticeiro exibido”.
— Fico muito comovido com essa homenagem — respondeu Magnus, e fez seu próprio floreio. — Magnus Bane, ao seu dispor.
— Agora nos conhecemos — respondeu Edmund. — Maravilha! Você frequenta algum antro de pecado e devassidão?
— De vez em quando.
— Os Morgenstern disseram que sim, enquanto jogavam fora os pratos — relatou Edmund, muito entusiasmado. — Vamos?
Jogavam fora os pratos?, Magnus demorou um instante para compreender e, quando o fez, sentiu frio por dentro. Os Caçadores de Sombras jogaram fora os pratos que os integrantes do Submundo tocaram, temerosos de que a porcelana pudesse ter sido corrompida.
Por outro lado, isso não era culpa de Edmund. O único outro lugar para o qual tinha que ir era a mansão que comprara, talvez de modo precipitado, em Grosvenor Square. Uma aventura recente o deixou temporariamente rico (uma condição que abominava; normalmente tentava se livrar de todo o dinheiro assim que o obtinha), então decidiu que viveria com estilo. A nata de Londres se referia a ele, Magnus acreditava, como “Bane, o nababo”. Isso significava que muitas pessoas na cidade estavam ansiosas para conhecê-lo, e muitas delas pareciam entediantes. Ao menos, Edmund não era.
— Por que não? — decidiu Magnus.
Edmund se alegrou.
— Excelente. Poucas pessoas se dispõem a viver verdadeiras aventuras. Ainda não descobriu isso, Bane? Não é uma coisa triste?
— Tenho pouquíssimas regras na vida, mas uma delas é jamais recusar uma aventura. As outras são: evitar me envolver romanticamente com criaturas marinhas; sempre pedir o que quero, pois a pior coisa que pode acontecer é um constrangimento, e a melhor delas, a nudez; exigir o pagamento de cara; e nunca jogar cartas com Catarina Loss.
— O quê?
— Ela trapaceia — explicou Magnus. — Deixe para lá.
— Eu gostaria de conhecer uma dama que trapaceia em jogos de cartas — declarou Edmund melancolicamente. — Além da tia de Granville, Millicent, que é péssima com o baralho.
Magnus jamais havia imaginado que os poderosos Caçadores de Sombras jogassem cartas, quanto mais que roubassem. Supunha que suas atividades de lazer consistissem em treinamentos com armas e discussões sobre a infinita superioridade em relação aos outros.
Magnus tentou dar uma dica a Edmund.
— Clubes mundanos normalmente não gostam de clientes que, por exemplo, carreguem armas em abundância. Isso talvez seja um problema.
— De modo algum — prometeu Edmund. — Estou com uma seleção muito modesta: algumas adagas de pouco valor, um único estilete, alguns chicotes...
Magnus piscou.
— Não pode ser considerado um arsenal — observou o feiticeiro. — Mas soa como um sábado muito divertido.
— Maravilha! — disse Edmund Herondale, aparentemente interpretando a frase como aprovação para acompanhar Magnus no passeio. Ele pareceu encantado.
***
O clube White, na St. James Street, não havia mudado nada por fora. Magnus encarou a fachada de pedra clara com prazer: das colunas gregas e molduras arqueadas às janelas mais altas, como se cada uma fosse uma capela; a bancada de ferro fundido com um desenho elaborado que sempre fazia o feiticeiro pensar em uma procissão de caracóis; a janela saliente da qual um homem famoso já havia olhado e apostado em uma corrida entre pingos de chuva. O clube fora criado por um italiano e era um antro de criminosos e uma irresistível perdição para aristocratas britânicos havia mais de cem anos. Sempre que Magnus ouvia algo sendo descrito como uma “perdição”, tinha certeza de que gostaria.
Foi por isso que se tornara sócio do White anos antes, quando voou até Londres: porque sua amiga Catarina apostou que ele não conseguiria.
Edmund girou ao redor de um dos postes pretos de ferro fundido em frente à porta. A chama atrás do vidro era escura em comparação aos olhos dele.
— Este costumava ser o lugar onde ladrões de estrada tomavam chocolate quente — contou Magnus distraidamente, enquanto entravam. — O chocolate quente era muito bom. Ladrões de estrada passam muito frio.
— Você já assaltou alguém?
— Só digo uma coisa — revelou Magnus — fico belíssimo com uma máscara de bom gosto e um chapéu grande.
Edmund riu de novo, e sua risada era simples e alegre, como a de uma criança. Seus olhos percorreram todo o salão, do teto – construído para parecer que a clientela estava no interior de um grande barril de pedra – ao lustre com gotas de joias brilhantes como uma duquesa e então às mesas cobertas por tecidos verdes que entulhavam o lado direito da sala, onde homens jogavam cartas e perdiam fortunas.
A capacidade de Edmund em se maravilhar e se surpreender o fazia parecer ainda mais jovem do que era, e conferia um ar frágil à sua beleza. Magnus não ficou imaginando por que ele, um Nephilim, não temia um integrante do Submundo. Duvidava que Edmund temesse alguma coisa. Ansiava ser entretido, estava pronto para se divertir e confiava essencialmente no mundo.
Edmund apontou para onde havia dois homens, um deles fazendo uma anotação em um livro grande com um floreio desafiador da caneta.
— O que eles estão fazendo ali?
— Presumo que estejam registrando uma aposta. Tem um livro de apostas muito famoso aqui em White. Fazem todo tipo: se um cavalheiro consegue violar uma dama em um balão a 300 metros do chão, se um homem consegue sobreviver submerso por um dia.
Magnus encontrou duas cadeiras para eles perto de uma lareira e fez um gesto indicando que ele e o amigo precisavam desesperadamente de uma bebida. A sede foi saciada no instante seguinte. Havia vantagens em um clube de cavalheiros verdadeiramente bom.
— Você acha que seria possível? — perguntou Edmund. — Não me refiro a sobreviver embaixo d’água; sei que mundanos não conseguem. Falo da outra coisa.
— Minhas experiências com uma mulher em um balão não foram muito agradáveis — disse Magnus, franzindo a testa com a lembrança. A rainha Maria Antonieta foi uma companheira de viagem emocionante, porém, não estava muito à vontade. — Eu não me inclinaria a satisfazer desejos carnais em um balão com uma moça nem com um cavalheiro. Por mais agradáveis que fossem.
Edmund Herondale não pareceu nada surpreso pela menção de um cavalheiro nas especulações românticas de Magnus.
— Para mim, seria uma dama no balão — declarou.
— Ah — respondeu Magnus, que já havia imaginado que fosse este o caso.
— Mas sempre fico lisonjeado quando me admiram — disse Edmund, com um sorriso cativante. — E sempre me admiram.
Ele falou com aquele sorriso simples e mais uma piscada dourada dos cílios, a mesma maneira que usou para encantar Amalia Morgenstern. Estava claro que ele sabia que era lindo de morrer e esperava que as pessoas gostassem. Magnus desconfiava de que todos gostavam.
— Ah, bem — disse o feiticeiro, mudando de assunto graciosamente. — Alguma dama em particular?
— Não estou totalmente certo de que acredito em casamento. Por que comer apenas um bombom quando se pode ter a caixa inteira?
Magnus ergueu as sobrancelhas e tomou um gole do excelente brandy. O jovem tinha jeito com as palavras e o prazer ingênuo de alguém que jamais sofrera por amor.
— Ninguém nunca o machucou, não é? — disse Magnus, que não viu razão para fazer rodeios.
Edmund pareceu alarmado.
— Por quê? Você está prestes a fazê-lo?
— Machucar alguém que traz todos esses chicotes? Não. Só quis dizer que você parece o tipo de pessoa que nunca teve o coração partido.
— Perdi meus pais quando criança — respondeu Edmund, com sinceridade. — Mas raro é o Caçador de Sombras com uma família intacta. Fui acolhido pelos Fairchild e criado no Instituto. Aqueles corredores sempre foram a minha casa. Mas, se está falando de amor, neste caso, não, nunca partiram meu coração. E não prevejo um cenário em que isso aconteça.
— Não acredita no amor?
— Amor, casamento, tudo isso é muito superestimado. Por exemplo, um sujeito que conheço, chamado Benedict Lightwood, acaba de ser acorrentado, e o caso é terrível...
— Pode ser difícil ver os amigos passando para uma fase diferente da vida — observou Magnus em solidariedade.
Edmund fez uma careta.
— Benedict não é meu amigo. É da pobre jovem que tenho pena. O sujeito tem hábitos peculiares, se é que me entende.
— Não entendo — respondeu Magnus secamente.
— Um pouco depravado, é o que estou tentando dizer.
Magnus o olhou friamente.
— Benedict Más Notícias, é como o chamamos — disse Edmund. — Basicamente pelo hábito de se relacionar com demônios. Quanto mais tentáculos melhor, se é que me entende.
— Ah — respondeu Magnus, esclarecido. — Sei a quem você se refere. Tenho um amigo do qual ele comprou algumas xilogravuras estranhas. E também algumas gravuras. O tal amigo é simplesmente um comerciante honesto, e eu nunca comprei nada dele, só para constar.
— E também Benedict Lightverme. E Benedict Bestial — prosseguiu Edmund amargamente. — Mas ele vive sorrateiro enquanto o resto de nós faz brincadeiras inocentes, e toda a Clave acha que ele é extremamente bem-comportado. Pobre Barbara. Acho que ela se precipitou por causa do coração partido.
Magnus recostou-se na cadeira.
— E quem partiu o coração da moça, posso perguntar? — falou, entretido.
— Os corações das damas são como louças sobre uma cornija. São tantos, e é fácil parti-los sem perceber. — Edmund deu de ombros, como se lamentasse, mas também se divertisse com aquilo. Em seguida, um sujeito com um colete horroroso esbarrou em sua cadeira.
— Perdoe-me — disse o cavalheiro. — Acho que estou meio bêbado!
— Estou disposto a ser generoso e acreditar que você estava embriagado quando se vestiu — falou Magnus baixinho.
— Hum? — disse o homem. — Meu nome é Alvanley. Você não é um daqueles nababos indianos, é?
Apesar de nunca ter tido vontade de explicar suas origens para europeus pálidos que não sabiam a diferença entre Xangai e Yangon, Magnus achou que, considerando os problemas na Índia, não era bom ser confundido com um indiano. Ele suspirou e negou, então se apresentou e fez uma reverência.
— Herondale — disse Edmund, fazendo uma reverência também.
A segurança dourada de Edmund e o sorriso aberto fizeram o serviço.
— Novo no clube? — perguntou Alvanley, subitamente benevolente. — Ora, ora. Temos que comemorar. Posso oferecer mais uma bebida?
Os amigos de Alvanley, alguns à mesa de cartas e outros circulando por ali, ergueram os respectivos copos em um brinde discreto. A rainha Vitória, assim diziam as felizes notícias, tivera um bom parto, e mãe e filha passavam bem.
— Um brinde à saúde da nossa nova princesa Beatriz e à rainha!
— A pobre coitada já não tem nove filhos? — perguntou Magnus. — Era de pensar que antes do nono ela já estaria exausta demais para escolher um novo nome e, certamente, para governar um país. Sem dúvida, vou beber à saúde dela.
Edmund estava mais do que disposto a aceitar a oferta de mais drinques, apesar de, em dado momento, ter se atrapalhado e se referido à rainha como Vanessa, e não Vitória.
— Hahaha — divertiu-se Magnus. — Ele já está embriagado, sem dúvida!
Edmund corou e quase imediatamente foi absorvido por um jogo de cartas. Magnus se juntou à partida, mas não pôde deixar de fitar o Caçador de Sombras com alguma preocupação. Pessoas que acreditavam despreocupadamente que o mundo lhes devia boa sorte podiam ser perigosas em mesas de jogos. Some-se a isso o fato de que Edmund obviamente almejava fortes emoções, e seu temperamento era o mais propício possível a um desastre. De súbito, viu algo de perturbador no brilho dos olhos do garoto, que, devido à luz das velas do clube, passara de céu a mar um instante antes de uma tempestade. Edmund, decidiu Magnus, lembrava-o, acima de tudo, de um barco – um objeto lindo e brilhante, movido pela correnteza e pelos ventos. Só o tempo diria se ele encontraria uma âncora ou um porto, ou se toda aquela beleza e charme seriam reduzidos a destroços.
Imaginações à parte, Magnus não teve que bancar a babá do Caçador de Sombras. Edmund era um homem adulto e capaz de se cuidar sozinho. No fim, foi o feiticeiro quem acabou entediado e persuadiu Edmund a deixar o White para uma caminhada noturna a fim de abrandar um pouco o efeito da bebida.
***
Não estavam longe da St. James Street quando Magnus deu uma pausa no relato que fazia sobre certo incidente do Peru ao perceber que Edmund, a seu lado, estava prestando atenção em alguma outra coisa, e cada linha daquele corpo atlético e angelical ficou subitamente tensa. Pensou forçosamente em um cão de caça ouvindo um animal no mato.
Magnus acompanhou o olhar de Edmund até ver o que o Caçador de Sombras estava vendo: um homem com chapéu-coco segurava com firmeza a porta de uma carruagem, envolvido no que parecia ser uma discussão com os ocupantes do veículo.
A briga era feia, mas um instante depois piorou. Magnus viu o homem agarrar o braço de uma mulher. Ela usava roupas simples, adequadas a uma criada ou ama. O homem tentava arrancá-la da carruagem à força.
E teria sido bem-sucedido, não fosse a interferência da outra passageira, uma dama baixa e morena com um vestido que farfalhava como seda enquanto sua voz roncava como um trovão.
— Solte-a, seu patife! — disse a moça, e bateu na cabeça dele com o chapéu.
O homem se assustou com o ataque inesperado e soltou a mulher, mas então voltou a atenção para a agressora e agarrou a mão que empunhava o chapéu. A moça soltou um grito que pareceu mais de ultraje do que de pavor, e o acertou no nariz. O rosto do homem virou levemente com o golpe, e Magnus e Edmund conseguiram enxergar seus olhos.
Não havia como se enganar com o vazio por trás daqueles olhos brilhantes e verdes. Demônio, pensou Magnus. Um demônio; e faminto, para tentar raptar mulheres de carruagens em uma rua londrina.
Um demônio; e muito azarado, por fazê-lo na frente de um Caçador de Sombras.
Magnus recordou-se que Caçadores de Sombras normalmente caçavam em grupos, e que Edmund Herondale estava embriagado.
— Muito bem — disse Magnus. — Vamos parar por um instante e analisar... Ah, você já correu. Ótimo.
Magnus se deu conta de estar falando com o casaco de Edmund, arrancado e abandonado sobre os paralelepípedos, e com o chapéu, que girava suavemente ao lado dele.
Edmund saltou e deu um mortal em pleno ar, aterrissando perfeitamente no teto da carruagem. Ao fazê-lo, sacou as armas dos bolsos escondidos: os dois chicotes que mencionara antes, arcos de luz que chiavam contra o céu noturno. Ele os manejava com grande precisão, e a luz despertava chamas douradas no cabelo desgrenhado e projetava um brilho nas feições esculpidas. Com aquela iluminação, Magnus viu seu rosto se transformar de garoto risonho a anjo austero.
Um chicote enrolou-se na cintura do demônio como a mão de um cavalheiro faria com uma dama durante uma valsa. O outro apertou com força a garganta do monstro. Edmund girou uma das mãos, e o demônio rodou, caindo no chão.
— Você ouviu a moça — disse Edmund. — Solte-a.
O demônio, que subitamente pareceu ter muito mais dentes do que antes, rosnou e atacou a carruagem. Magnus levantou a mão e fechou a porta, fazendo o veículo sacudir e avançar alguns metros, apesar de o cocheiro ter desaparecido – provavelmente devorado – e de o Caçador de Sombras continuar no topo.
Edmund não perdeu o equilíbrio. Tão inabalável quanto um gato, simplesmente saltou para o chão e acertou o demônio Eidolon com um golpe no rosto, fazendo-o voar para trás outra vez. Edmund chutou a garganta da criatura, e Magnus a viu começar a se contorcer, seus limites ficando borrados e mudando de forma.
Ele ouviu o rangido de uma porta de carruagem se abrindo e viu a dama que socou o demônio tentando deixar a relativa segurança do interior em favor de uma rua infestada de demônios.
— Senhorita — disse Magnus, avançando. — Devo aconselhá-la a não deixar a carruagem durante o processo de aniquilação de um demônio.
Ela o olhou atentamente. Tinha olhos grandes e azuis, da cor do céu noturno imediatamente antes de se tornar negro, e o cabelo que se soltava do penteado elaborado era preto, como se a noite não tivesse estrelas. Apesar de os belos olhos estarem arregalados, ela não parecia assustada, e a mão que atingiu o demônio continuava cerrada em um punho.
Magnus fez a promessa silenciosa de voltar a Londres com mais frequência no futuro. Estava conhecendo pessoas encantadoras.
Magnus olhou para Edmund, que, no momento, era arremessado contra uma parede e sangrava muito, mas sorria e retirava a adaga da bota com uma das mãos enquanto enforcava o demônio com a outra.
— Não se assuste, senhorita. Está tudo sob controle — explicou, enquanto Edmund atacava com a adaga. — Por assim dizer.
O demônio gorgolejou e se debateu em tremores derradeiros. Magnus decidiu ignorar a agitação atrás dele e fez uma reverência encantadora para as duas damas. Não pareceu consolar a criada, que se encolheu nas sombras da carruagem e tentou esconder o rosto com um lenço.
A moça dos cabelos negros brilhantes e dos olhos violeta soltou a porta da carruagem e deu a mão a Magnus. Tinha a mão pequena, suave e quente; nem mesmo tremia.
— Sou Magnus Bane — apresentou-se. — Pode me chamar quando enfrentar qualquer perigo mortal, ou se precisar desesperadamente de companhia para ir a uma exposição de flores.
— Linette Owens — disse a moça, e sorriu. Tinha belas covinhas. — Ouvi dizer que muitos perigos afligem a capital, mas isso já é um exagero.
— Tenho consciência de que tudo isso deve parecer muito estranho e assustador para você.
— Aquele homem é uma fada malévola? — perguntou a Srta. Owens. Ela fitou Magnus, que a observava com expressão espantada. — Sou de Gales — disse. — Ainda acreditamos em seres sobrenaturais e lendas antigas por lá.
Ela inclinou a cabeça para trás a fim de examinar Magnus. Suas tranças da cor da meia-noite pareciam grandes demais para uma cabeça tão pequena sobre um pescoço tão fino.
— Seus olhos... — disse ela lentamente. — Acredito que você seja uma fada boa, senhor. Quanto ao seu companheiro, não sei dizer.
Magnus olhou por cima do ombro para o companheiro, de cuja presença havia quase se esquecido. O demônio era escuridão e poeira aos pés de Edmund, e, com o inimigo devidamente aniquilado, o rapaz voltou a atenção para a carruagem. Magnus observou a faísca de seu charme dourado acender ao ver Linette, passando de chama de vela a sol em um instante.
— O que eu sou? — perguntou ele. — Sou Edmund Herondale, milady, e estarei para sempre ao seu dispor. Se me aceitar.
Ele deu um sorriso lento e devastador. Na rua estreita e longa após a meia-noite, seus olhos eram como o alto verão.
— Não quero soar indelicada nem ingrata — disse Linette Owens — mas você é um lunático perigoso?
Edmund piscou.
— Temo ter que observar que você está caminhando pelas ruas armado até os dentes. Esperava combater uma criatura monstruosa hoje?
— Não “esperava” exatamente — respondeu Edmund.
— Então é um assassino? — perguntou Linette. — É um soldado superzeloso?
— Madame — respondeu Edmund. — Sou um Caçador de Sombras.
— Não conheço o termo. Sabe fazer mágica? — perguntou ela, e pôs a mão sobre a manga de Magnus. — Este cavalheiro sabe.
Ela sorriu para Magnus em aprovação, fazendo o feiticeiro se sentir extremamente gratificado.
— É uma honra poder ajudar, Srta. Owens — murmurou.
Edmund pareceu ter sido atingido na face com um peixe.
— Claro... claro que não sei fazer mágica! — Conseguiu dizer, soando indignado com a ideia, à maneira dos Caçadores de Sombras.
— Ora, pois — disse Linette, visivelmente decepcionada. — Não é culpa sua. Todos nos viramos como podemos. Estou em dívida com o senhor, por salvar a mim e à minha amiga de um destino impronunciável.
Edmund empertigou-se e, animado, falou sem pensar:
— Não se preocupe com isso. Seria uma honra acompanhá-la até sua casa, Srta. Owens. As ruas próximas a Mall Pall podem ser muito traiçoeiras para as moças durante a noite.
Fez-se um silêncio.
— Quer dizer Pall Mall? — perguntou Linette, e deu um breve sorriso. — Não sou eu quem gosta de bebidas fortes. Prefere que eu o acompanhe até sua casa, Sr. Herondale?
Edmund perdeu a fala. Magnus desconfiou que se tratasse de uma experiência inédita e que provavelmente não lhe faria bem.
A Srta. Owens virou levemente de Edmund para Magnus.
— Minha criada, Angharad, e eu vínhamos em viagem da minha propriedade em Gales — explicou. — Vamos passar a temporada em Londres com uma parente distante. Tivemos uma jornada longa e exaustiva, e quis acreditar que pudéssemos chegar a Londres antes do anoitecer. Foi muito tolo e negligente de minha parte e provocou grande angústia a Angharad. Sua ajuda foi inestimável.
Magnus pôde compreender muito mais do relato da Srta. Owen do que o que ela disse de fato. Não se referiu à propriedade do pai, mas dela, de forma casual, como alguém acostumada a posses. Isso, somado ao tecido caro do vestido e a algo em sua postura, deu a Magnus a confirmação de que aquela dama era herdeira não apenas de uma propriedade, mas de uma fortuna. A forma como se referia a Gales dava a impressão de que ela não gostaria que suas terras fossem cuidadas por um administrador. A sociedade acharia um escândalo e uma vergonha que uma propriedade ficasse nas mãos de uma mulher, principalmente uma tão jovem e bonita. As pessoas esperariam que ela se casasse, e que o marido pudesse administrar a herança e tomar posse tanto da terra quanto da dama.
Ela devia ter ido a Londres por não ter gostado dos pretendentes de Gales e estava em busca de um marido para levar de volta.
Ela fora a Londres em busca do amor.
Magnus se solidarizou com isso. Tinha consciência de que o amor nem sempre fazia parte da negociação nos casamentos da alta sociedade, mas Linette Owens parecia ter ideias próprias. Ele achou que fosse provável que ela tivesse um propósito: o casamento certo com o homem certo; e que fosse conquistá-lo.
— Seja bem-vinda a Londres — disse Magnus.
Linette fez uma pequena reverência na carruagem aberta. Seus olhos passaram sobre os ombros de Magnus e abrandaram-se. O feiticeiro olhou em volta, então viu Edmund parado, um chicote enrolado no pulso, como se confortasse a si mesmo com ele. Magnus tinha que admitir que era uma façanha parecer tão gloriosamente lindo e, no entanto, tão abatido.
Linette visivelmente se rendeu a um impulso caridoso e saltou do veículo. Atravessou a rua de paralelepípedos e se colocou diante do jovem e desamparado Caçador de Sombras.
— Sinto muito se fui descortês ou se, de alguma forma, agi como se achasse que você era um... twpsyn¹ — disse a moça, tendo o tato de não traduzir o termo.
Ela estendeu a mão, e Edmund ofereceu a dele, com a palma para cima e o chicote ainda enrolado no punho da camisa. De repente, surgiu uma franqueza voraz em seu rosto; o momento teve um peso súbito. Linette hesitou e, então, pôs a mão na dele.
— Estou muito grata por ter salvado a minha vida e a de Angharad de um destino pavoroso. De verdade — disse Linette. — Mais uma vez, peço desculpas se fui indelicada.
— Eu lhe dou licença para ser tão indelicada quanto você quiser — disse Edmund — se puder voltar a vê-la.
Ele a fitou, sem bancar o sedutor. Sua expressão era sincera e desarmada.
O momento se transformou. A sinceridade humilde e solene fez o que os cílios e o ar superior não fizeram. Fez Linette Owens hesitar.
— Você pode me fazer uma visita no número 26 de Eaton Square, na casa de Lady Caroline Harcourt — disse ela. — Se, pela manhã, este ainda for o seu desejo.
Então puxou a mão, e, após um instante de incerteza, Edmund a soltou.
Linette tocou o braço de Magnus antes de entrar novamente na carruagem. Continuava tão bonita e afável quanto antes, mas algo em sua conduta mudara.
— Por favor, vá me visitar também, se desejar, Sr. Bane.
— Parece uma ótima ideia.
Ele pegou a mão da jovem e a ajudou a subir, soltando-a com um movimento leve e gracioso.
— Ah, e Sr. Herondale — disse a Srta. Owens, esticando a cabeça para fora da janela da carruagem. — Por favor, deixe seus chicotes em casa.
Magnus fez um pequeno gesto, e faíscas minúsculas azul-celeste dançaram entre seus dedos. A carruagem partiu sem cocheiro pelas ruas de Londres, em plena escuridão.
***
Algum tempo se passou até Magnus comparecer à outra reunião sobre os Acordos propostos, sobretudo em função de discordâncias quanto ao local de encontro. O próprio Magnus votou para que fossem a algum lugar diferente da seção do Instituto construída em terreno consagrado. Tinha a sensação de que o local tinha uma atmosfera de alojamento de servos. Sobretudo porque Amalia Morgenstern mencionou que a área servia de alojamento para os servos dos Fairchild.
Os Caçadores de Sombras se opuseram à ideia de frequentar qualquer covil do Submundo (citação exata de Granville Fairchild), e a sugestão de se encontrarem no parque a céu aberto foi vetada, pois acharam que a dignidade do conclave seria muito comprometida se mundanos desavisados fizessem um piquenique entre eles.
Magnus não acreditou em uma palavra.
Após semanas de discussão, finalmente se renderam e voltaram cabisbaixos ao Instituto de Londres.
A única coisa boa foi uma coisa literalmente boa: Camille foi com um chapéu vermelho extremamente fascinante, além de luvas de renda elegantes, também vermelhas.
— Você parece tola e frívola — disse De Quincey, enquanto os Caçadores de Sombras se sentavam nos respectivos lugares ao redor da mesa no salão mal iluminado.
— De Quincey tem razão — concordou Magnus. — Você parece tola, frívola e fabulosa.
Camille empertigou-se, e Magnus achou encantador e atraente o jeito como um pequeno elogio tinha sido capaz de agradar uma mulher que há séculos era linda.
— Exatamente o efeito que planejei — disse Camille. — Posso lhe contar um segredo?
— Por favor. — Magnus se inclinou na direção dela, e ela retribuiu o gesto.
— Eu me vesti para você — sussurrou Camille.
A sala escura e pomposa, cujas paredes eram cobertas por tapeçarias estampadas com espadas, estrelas e os símbolos usados pelos Nephilim na própria pele, de repente se iluminou. Toda a cidade de Londres pareceu se iluminar.
O próprio Magnus era vivo havia centenas de anos, e, no entanto, as coisas mais simples podiam transformar um dia em joia e uma sucessão de dias em uma corrente brilhante que não tinha fim. Eis uma coisa simples: uma garota bonita gostava dele, e o dia clareou.
A pele pálida de Ralf Scott se tornou ainda mais pálida e agora estava marcada por linhas de dor, mas Magnus não conhecia o garoto e não tinha obrigação de cuidar do seu coração partido. Se a dama preferia Magnus, o feiticeiro não discutiria com ela.
— Que prazer recebê-los novamente — disse Granville Fairchild, tão carrancudo como sempre. Cruzou as mãos diante de si sobre a mesa. — Finalmente.
— Que bom que pudemos chegar a um acordo — disse Magnus. — Finalmente.
— Acho que Roderick Morgenstern preparou algumas palavras — anunciou Fairchild.
Estava com o rosto impassível, e a voz grave soou como um eco. Havia uma leve semelhança com um filhote de gato chorando sozinho em uma caverna imensa.
— Acho que já ouvi o bastante dos Caçadores de Sombras — disse Ralf Scott. — Já escutamos os termos dos Nephilim para a manutenção da paz entre nós e vocês...
— A nossa lista de exigências não estava completa, de jeito algum — interrompeu um homem chamado Silas Pangborn.
— Não estava mesmo — concordou a mulher ao lado, tão carrancuda e linda quanto uma das estátuas dos Nephilim.
Pangborn a apresentou como “Eloisa Ravenscar, minha parabatai” com o mesmo ar de propriedade de quem pudesse dizer “minha esposa”.
Evidentemente, estavam unidos contra os integrantes do Submundo.
— Temos nossos próprios termos — disse Ralf Scott.
Fez-se total silêncio do lado dos Caçadores de Sombras. Por suas expressões, Magnus não achou que estivessem se preparando para ouvir com atenção. Em vez disso, pareceram abalados com a insolência dos integrantes do Submundo.
Ralf insistiu, apesar da total falta de estímulo. O garoto era valente mesmo em face de uma causa perdida, pensou Magnus, e, apesar de não querer, sentiu uma leve pontada.
— Queremos garantias de que nenhum integrante do Submundo que não tenha sujado as mãos com sangue mundano seja aniquilado. Queremos uma lei que determine que qualquer Caçador de Sombras que abata um inocente do Submundo seja punido. — Ralf ouviu uma explosão de protestos, e gritou acima da voz deles. — Vocês vivem pelas leis! Elas são tudo o que vocês entendem!
— Sim, nossas leis, transmitidas pelo Anjo! — vociferou Fairchild.
— E não as regras que a escória demoníaca tenta nos impor — zombou Starkweather.
— É pedir muito querer uma lei que nos defenda, se há leis que defendem os mundanos e os Nephilim? — perguntou Ralf. — Meus pais foram destruídos por Caçadores de Sombras por causa de um terrível engano, por estarem no lugar errado, na hora errada, e levaram a culpa só por serem licantropos. Estou criando meu irmão mais novo sozinho. Quero minha espécie protegida, forte, e não acuada até se tornarem assassinos ou serem assassinados!
Magnus olhou para Camille a fim de compartilhar a faísca de solidariedade e indignação por Ralf Scott, tão jovem, tão ferido e tão apaixonado por ela. O rosto de Camille permaneceu impassível, mais parecido com o de uma boneca de porcelana do que com o de uma pessoa; sua pele era como porcelana, que não podia enrubescer nem empalidecer, e os olhos eram como vidro frio.
Ele sentiu enjoo e descartou-o imediatamente. Era o rosto de uma vampira, só isso – aquilo não era nenhum reflexo de como ela se sentia de fato. Havia muita gente que não enxergava nada além de maldade nos olhos do próprio Magnus.
— Que horror — disse Starkweather. — Pensei que tivesse mais irmãos para dividir o fardo. Vocês normalmente têm ninhadas, não?
Ralf Scott deu um salto e bateu na mesa com a palma aberta. Seus dedos se transformaram em garras e arranharam o tampo.
— Acho que precisamos de bolinhos! — exclamou Amalia Morgenstern.
— Como ousa? — berrou Granville Fairchild.
— Isso é mogno! — gritou Roderick Morgenstern, parecendo indignado.
— Eu gostaria muito de um bolinho — disse Arabella, a sereia. — E também, se possível, de alguns sanduíches de pepino.
— Eu gosto de ovo e agrião — acrescentou Rachel Branwell.
— Não vou tolerar um insulto desses! — disse um Caçador de Sombras chamado Waybread ou coisa do tipo.
— Não tolera insultos, mas insiste em nos assassinar — observou Camille, a voz fria cortando o ar. Magnus sentiu um orgulho quase intolerável da vampira, e Ralf lhe direcionou um olhar apaixonado e agradecido. — Não me parece justo.
— Sabia que, da última vez, eles jogaram fora os pratos profanados por nossos toques depois que nos retiramos? — perguntou Magnus suavemente. — Podemos chegar a um acordo, desde que comecemos em uma posição de respeito mútuo.
Starkweather riu. Na verdade, Magnus não o odiava; pelo menos, ele não era um hipócrita. E, por pior que fosse, Magnus sempre apreciava a sinceridade.
— Então não chegaremos a nenhum acordo.
— Temo concordar — murmurou Magnus, e pôs a mão sobre o coração e o novo colete azul-pavão. — Tento sentir algum respeito por você, mas minha nossa! Parece ser uma missão impossível.
— Maldito mágico libertino e insolente!
Magnus inclinou a cabeça.
— Exato.
Quando a bandeja com o lanche chegou, a pausa nos insultos foi tão insuportavelmente constrangedora que Magnus pediu licença sob o pretexto de ter que ir ao banheiro.
***
Havia poucas câmaras no Instituto com acesso permitido a integrantes do Submundo. Magnus pretendia apenas se esgueirar até um canto sombrio e ficou muito aborrecido ao descobrir que o primeiro que encontrou estava ocupado.
Havia uma poltrona e uma pequena mesa. Um homem estava estirado sobre uma mesa que retratava anjos dourados, e segurava uma caixa de forma zelosa. Magnus reconheceu os cabelos brilhantes e os ombros largos imediatamente.
— Sr. Herondale? — perguntou.
Edmund levou um susto terrível. Por um instante, Magnus achou que ele fosse cair da cadeira, mas a graça dos Caçadores de Sombras o salvou. Encarou Magnus com uma surpresa confusa e ferida, como uma criança que é despertada por um tapa. O feiticeiro duvidou que ele estivesse tendo boas horas de sono; o rosto do rapaz estava marcado por noites em claro.
— Tivemos uma noite e tanto, hein? — perguntou Magnus, com um pouco mais de gentileza.
— Tomei algumas taças de vinho para acompanhar o pato com laranja — respondeu Edmund, com um sorriso sem graça que desapareceu tão logo surgiu. — Nunca mais comerei pato. Não acredito que gostava de pato. O pato me traiu. — Ele ficou em silêncio, depois admitiu: — Talvez mais do que algumas taças. Não o vi em Eaton Square.
Magnus ficou imaginando por que Edmund teria achado que o encontraria lá, e, em seguida, se lembrou. Era o endereço da bela jovem galesa.
— Você foi a Eaton Square?
Edmund olhou para Magnus como se ele fosse estúpido.
— Perdoe-me — disse Magnus. — Eu simplesmente acho difícil imaginar um dos gloriosos protetores invisíveis dos mundanos fazendo uma visita social.
Desta vez, o sorriso de Edmund foi o de sempre, brilhante e cativante, apesar de não ter durado muito.
— Bem, eles me pediram um cartão, mas não faço ideia do que isso signifique. Fui impedido de entrar pelo mordomo, com grande desprezo.
— Suponho que isso não o tenha feito desistir.
— De fato, não — respondeu Edmund. — Simplesmente fiquei deitado esperando e após alguns dias tive a oportunidade de seguir Li... a Srta. Owens e a alcancei na Rotten Row. Tenho me encontrado com ela todos os dias, desde então.
— “Seguir”? Fico impressionado que a dama não tenha alertado algum policial.
O brilho voltou ao rosto de Edmund, deixando-o dourado, azul e pérola outra vez.
— Linette diz que tenho sorte por ela não ter feito isso. — Então acrescentou, um pouco tímido: — Estamos noivos e vamos nos casar.
Isso sim era novidade. Os Nephilim normalmente se casavam entre si, uma aristocracia baseada na crença da própria santidade. Qualquer noiva ou noivo mundano em potencial deveria beber do Cálice Mortal e ser transformado em filho do Anjo por meio de uma perigosa alquimia, mas nem todos sobreviviam a tal transformação.
— Meus parabéns — disse Magnus, e guardou para si as preocupações. — Presumo que a Srta. Owens vá Ascender em breve?
Edmund respirou fundo.
— Não — disse. — Não vai.
— Ah — respondeu Magnus, entendendo afinal.
Edmund olhou para a caixa nas mãos do rapaz. Era um objeto simples de madeira, com o símbolo do infinito desenhado na lateral com o que parecia ser fósforo queimado.
— Isto é uma Pyxis — explicou. — Contém o espírito do primeiro demônio que destruí. Eu tinha 14 anos, e foi nesse dia que descobri o que nasci para fazer, o que nasci para ser: um Caçador de Sombras.
Magnus olhou para a cabeça abaixada de Edmund, as mãos cicatrizadas de um guerreiro apertando a pequena caixa, e não pôde conter a solidariedade que crescia dentro dele.
Edmund falou, em uma torrente de confissões para a própria alma e para a única pessoa que ele sabia que podia ouvi-lo sem achar que seu amor era blasfemo:
— Linette acha que seu dever e sua vocação consistem em cuidar das pessoas em sua propriedade. Ela não quer ser Caçadora de Sombras. E eu... não ia querer, nem pedir isso dela. Homens e mulheres perecem em tentativas de Ascender. Ela é corajosa, linda e inabalável, e se a Lei diz que não é digna do jeito que é, então a Lei é uma mentira. Não consigo acreditar na injustiça de ter encontrado uma mulher, neste mundo inteiro, que posso amar, e em como a Lei trata este sentimento que eu sei que é sagrado. Para ficar com ela devo pedir que meu amor arrisque a própria vida, uma vida que me é mais cara do que a minha própria? Ou será que eu preciso cortar a outra parte da minha alma, queimar o propósito da minha existência e todos os dons que o Anjo me deu?
Magnus se lembrou de Edmund ao dar aquele belo salto para atacar o demônio, de como o corpo do rapaz se transformou de energia inquieta em propósito absoluto ao avistar o inimigo: quando se lançou à briga com a alegria simples e natural de alguém que faz o que nasceu para fazer.
— Você já quis ser outra coisa?
— Não — disse Edmund.
Ele ergueu o corpo, apoiou uma das mãos na parede e passou a outra pelo cabelo; um anjo que caíra de joelhos, desgovernado e aturdido pela dor.
— Mas e suas noções pessimistas sobre o casamento? — perguntou Magnus. — E a história de comer um único bombom quando se pode ter a caixa toda?
— Eu era muito tolo — respondeu, quase violentamente. — Pensava no amor como um jogo. Não é um jogo. É mais sério do que a morte. Não ter Linette seria o mesmo que morrer.
— Você fala em abrir mão da sua natureza de Caçador de Sombras — disse Magnus suavemente. — Uma pessoa pode abrir mão de muita coisa por amor, mas não de si próprio.
— É mesmo, Bane? — Edmund deu meia-volta. — Nasci para ser um guerreiro e nasci para ficar com ela. Diga-me como conciliar os dois, pois eu não consigo!
Magnus não respondeu. Olhou para Edmund e se lembrou de quando pensou, inebriado, que o Caçador de Sombras era como um belo navio que podia flutuar pelo mar ou naufragar nas pedras. Ele enxergava as pedras agora, escuras e recortadas contra o horizonte. Viu o futuro de Edmund sem a Caça às Sombras, e o quanto ele ansiaria pelo perigo e pelo risco. E em como os encontraria nas mesas de jogos. Em como se tornaria frágil depois que seu senso de propósito desaparecesse.
E, então, havia Linette, que se apaixonara por um Caçador de Sombras dourado, um anjo vingador. O que pensaria dele quando se tornasse apenas um fazendeiro galês, privado de toda a glória?
No entanto, o amor não era algo a ser descartado com facilidade. Acontecia tão raramente; apenas algumas vezes em uma vida mortal. Às vezes, só surgia uma vez. Magnus não podia dizer que Edmund Herondale estivesse errado em agarrá-lo, uma vez que o encontrou.
Ele só pensava em como a Lei Nephilim era errada por fazê-lo escolher.
Edmund suspirou. Parecia esgotado.
— Perdoe-me, Bane — falou. — Estou apenas sendo uma criança, chutando e gritando contra o destino, e é hora de deixar de ser um menino tolo. Por que lutar contra uma escolha que já tinha sido feita? Se me fizessem escolher entre sacrificar minha vida ou sacrificar todos os dias da existência de Linette até a eternidade, eu me sacrificaria todas as vezes.
Magnus desviou o olhar para não ver o naufrágio.
— Desejo-lhe boa sorte — disse. — Sorte e amor.
Edmund fez uma pequena reverência.
— Desejo-lhe um bom dia. Acho que não nos veremos mais.
Então se afastou para as alas mais internas do Instituto. A alguns metros dali, hesitou e parou; a luz de uma das janelas estreitas da igreja o deixou com os cabelos ainda mais louros, e Magnus acreditou que ele fosse dar meia-volta. Mas Edmund Herondale jamais olhou para trás.
***
Magnus voltou com o coração pesado para a sala onde Caçadores de Sombras e integrantes do Submundo ainda travavam uma guerra de palavras. Nenhum dos lados parecia inclinado a ceder. O feiticeiro tendia a desistir do assunto e considerá-lo sem solução.
Através dos vitrais, as cortinas da noite começavam a dar sinais de desaparecer para dar lugar ao dia, e os vampiros tiveram que ir embora.
— Parece que outra reunião vai ser tão inútil quanto essas foram — disse Camille, calçando as luvas vermelhas.
— Se os integrantes do Submundo continuarem insolentes — declarou Starkweather.
— Se os Caçadores de Sombras continuarem sendo assassinos hipócritas — Scott irritou-se.
Magnus não conseguia olhar para o rosto dele, não depois de ver o de Edmund Herondale. Não queria assistir enquanto os sonhos de outro garoto morriam.
— Basta! — declarou Granville Fairchild. — Senhorita, não me peça que acredite que nunca feriu uma alma humana. Não sou tolo. E quaisquer mortes provocadas por Caçadores de Sombras ocorreram em nome da justiça e da defesa dos desamparados.
Camille deu um sorriso lento e doce.
— Se acredita nisso — murmurou — então é um tolo.
E com isso veio outra entediante explosão de fúria dos Caçadores de Sombras reunidos. Ver Camille defendendo o garoto acalentava Magnus. Ela gostava de Ralf Scott, pensou o feiticeiro. Talvez mais do que isso. Magnus poderia até torcer para ser o escolhido, mas não poderia deixar de notar o afeto dela por Scott. Ele ofereceu o braço ao se retirarem, e ela aceitou. Saíram juntos para a rua.
E ali, na entrada do Instituto, os demônios desceram. Demônios Achaieral, com dentes afiados e asas abertas de couro preto e chamuscado, como os aventais dos ferreiros. Espalharam-se pela noite, encobrindo a lua e varrendo as estrelas, e Camille estremeceu ao lado de Magnus, com as presas prontas.
Ao sentir o medo da vampira, Ralf Scott atacou o inimigo, transformando-se nesse meio tempo, e derrubou uma das criaturas em uma confusão sangrenta sobre os paralelepípedos.
Os Caçadores de Sombras também se apressaram, retirando as armas das bainhas e das roupas.
Amalia Morgenstern, como se viu, escondia um pequeno e belo machado sob a saia. Roderick Morgenstern correu para a rua e esfaqueou o demônio que lutava com Scott. Do pequeno carrinho onde estava o seu aquário, Arabella soltou um grito de verdadeiro pavor e mergulhou para o fundo daquele tanque terrivelmente inadequado.
— Comigo, Josiah! — vociferou Fairchild, e Josiah Waybread... não, Magnus achava que era Wayland, na verdade... juntou-se a ele. Colocaram-se diante do carrinho de Arabella para defendê-la, não deixando nenhum demônio passar pela linha brilhante de suas espadas.
Silas Pangborn e Eloisa Ravenscar foram para a rua, lutando virados de costas um para o outro, com armas que não passavam de borrões brilhantes nas mãos e movimentos perfeitamente sincronizados, como se os dois tivessem se fundido em uma única criatura feroz. De Quincey foi atrás e se juntou a eles.
A presença ao lado de Magnus desapareceu de súbito. Camille o deixou e correu para ajudar Ralf Scott. Um demônio saltou para cima dela, vindo de trás, e a capturou com as garras afiadas como lâminas. Ralf uivou de desespero e dor. Magnus explodiu o demônio em pleno ar. Camille caiu no chão, e o feiticeiro se ajoelhou e segurou seu corpo, que tremia, em seus braços. Ele ficou impressionado ao ver o brilho das lágrimas naqueles olhos verdes e constatar como ela parecia frágil.
— Perdoe-me. Normalmente não me exalto com tanta facilidade. Uma cartomante mundana certa vez me disse que a morte me pegaria de surpresa — revelou Camille, com a voz trêmula. — Superstição tola, certo? Ainda assim, gostaria de ser alertada. Não temo nada, se souber que o perigo se aproxima.
— Eu mesmo estaria completamente exaltado se minha roupa fosse estragada por demônios que não entendem nada de moda — disse Magnus, e Camille riu.
Os olhos da vampira pareciam grama sob o orvalho, e ela era corajosa, linda e lutava pelos seus, mas, no entanto, se apoiava nele. Foi nesse instante que Magnus sentiu como se tivesse parado de procurar o amor.
O feiticeiro desviou o olhar do rosto encantador de Camille e viu que os Caçadores de Sombras e os integrantes do Submundo não estavam, para sua surpresa, discutindo. Em vez disso, observavam uns aos outros na rua subitamente quieta, com os corpos dos inimigos ao redor, derrotados porque eles lutaram juntos. Havia certo fascínio no ar, como se os Nephilim não conseguissem enxergar os integrantes do Submundo como demoníacos enquanto lutavam juntos contra os verdadeiros demônios. Os Caçadores de Sombras eram guerreiros; os laços de batalha significavam muito para eles.
Magnus não era um guerreiro, mas se lembrou de como os Caçadores de Sombras agiram para proteger uma sereia e um lobisomem. Isso também significava alguma coisa para ele. Talvez algo pudesse ser salvo nesta noite. Talvez conseguissem fazer essa ideia maluca dos Acordos funcionar, afinal.
Então sentiu Camille se mexer em seus braços e viu para onde ela olhava. Encarava Ralf Scott, que retribuía o gesto. Ele trazia uma dor imensurável nos olhos.
O rapaz ficou de pé e começou a descarregar a ira nos Caçadores de Sombras.
— Vocês fizeram isso — esbravejou. — Querem nos ver mortos. E nos atraíram para cá...
— Você está louco? — perguntou Fairchild. — Somos Nephilim. Se os quiséssemos mortos, estariam mortos. Não precisamos de demônios para executar nossas vítimas, e certamente não os queremos manchando nossa porta de entrada. Minha filha mora aqui. Eu não a poria em perigo por nada que se possa imaginar, e certamente não o faria por causa de integrantes do Submundo.
Magnus tinha que admitir que era um bom argumento.
— Foram vocês que trouxeram essa imundice para cá! — berrou Starkweather.
Magnus abriu a boca para discutir, então se lembrou do excesso de veemência da rainha das fadas quando se posicionou contra um acordo com os Caçadores de Sombras, e de sua estranha curiosidade em relação aos detalhes do processo, como a hora e o local das reuniões. E fechou a boca.
Fairchild lançou um olhar de reprovação a Magnus, como se pudesse ler a culpa de todos do Submundo no semblante do feiticeiro.
— Se o que Starkweather diz procede, vocês perderam uma oportunidade de forjar um acordo entre nossos povos.
Era isso, então, e Magnus viu a raiva deixar o rosto de Ralf Scott quando ficou evidente que ele abria mão da luta. Ralf fitou Fairchild, e seus olhos brilhavam quando ele falou com a voz calma e ressonante:
— Não vão nos ajudar? Muito bem. Não precisamos. Os lobisomens cuidarão de si. Vou me encarregar disso.
O garoto lobisomem se esquivou da mão de De Quincey e não prestou atenção à resposta afiada de Fairchild. A única pessoa em quem prestou atenção foi Camille. Olhou-a por um instante. Ela levantou a mão, abaixando-a em seguida, e Ralf girou, se afastando tanto dos Caçadores de Sombras quanto dos outros integrantes do Submundo. Magnus o viu erguer os ombros estreitos enquanto se afastava, um garoto aceitando um fardo pesado e a perda de um amor. Magnus pensou em Edmund Herondale.
***
Ele não voltou a ver Edmund Herondale, mas o ouviu mais uma vez.
Os Caçadores de Sombras decidiram que Magnus e Camille eram os mais razoáveis representantes do Submundo que eles tinham reunido. Como as outras opções eram lobisomens destemperados e Alexei De Quincey, Magnus não se sentiu lisonjeado pela preferência.
Os Nephilim pediram a Magnus e Camille que comparecessem a uma reunião particular para trocar informações de modo a continuar se correspondendo, independentemente de Ralf Scott. E, nesse pedido, estava implícito que eles poderiam oferecer proteção, caso Magnus e Camille necessitassem no futuro. Em troca, é claro, de magia ou informações do Submundo.
Magnus foi à reunião para ver Camille, nada mais. Disse a si mesmo que não estava pensando na luta contra os demônios nem na união que ocorrera.
Ao entrar no Instituto, porém, foi surpreendido pelo barulho. Os ruídos vinham das profundezas do lugar, e eram os sons ruidosos e atormentados de alguém sendo esfolado vivo. Pareciam os gritos de uma alma no inferno ou sendo arrancada do céu.
— O que é isso? — perguntou Magnus.
Havia poucos Caçadores de Sombras presentes nesta reunião extraoficial, em lugar da habitual massa de representantes da Clave. Somente Granville Fairchild, Silas Pangborn e Josiah Wayland compareceram. Os três Caçadores de Sombras permaneciam na pequena sala enquanto os gritos de agonia reverberavam das paredes cobertas por tapeçarias e do teto abobadado, e os três Nephilim pareciam completamente indiferentes.
— Um jovem Caçador de Sombras chamado Edmund Herondale desgraçou o nome da família e renunciou ao chamado para se jogar nos braços de uma jovem mundana — respondeu Josiah Wayland, sem qualquer indício de emoção. — Suas Marcas estão sendo removidas.
— E é assim que as Marcas são removidas? — disse Magnus lentamente.
— Ele está sendo refeito em algo mais vil — disse Granville Fairchild, com a voz fria, apesar do rosto pálido. — É contra a vontade do Anjo. Claro que dói.
Um grito de agonia ilustrou as palavras do Nephilim. Ele nem sequer virou a cabeça.
Magnus se sentiu gelado de horror.
— Vocês são bárbaros.
— Deseja correr para ajudá-lo? — perguntou Wayland. — Se sim, nós três vamos derrubá-lo. Não ouse questionar nossos motivos nem nossa conduta. Você está falando de coisas mais importantes e mais nobres do que é capaz de entender.
Magnus ouviu mais um grito, que foi interrompido por soluços desesperados. O feiticeiro pensou no garoto alegre com quem passou uma noite no clube, com o rosto vibrante e desprovido de dor. Este era o preço do amor, taxado pelos Caçadores de Sombras.
Magnus começou a avançar, mas os Caçadores de Sombras se aproximaram com as espadas desembainhadas e os rostos severos. Um anjo com uma espada flamejante proibindo a passagem de Magnus não teria expressado mais convicção na própria justiça. Ouviu os ecos da voz do padrasto na própria mente: filho do demônio, cria de Satã, nascido para ser amaldiçoado, renegado por Deus.
O longo e solitário grito de um garoto sofredor que ele não podia ajudar congelou Magnus até os ossos, como água fria penetrando a terra em busca de um túmulo. Às vezes, achava que todos fossem renegados. Todas as almas desta Terra.
Até mesmo os Nephilim.
— Não há nada a ser feito, Magnus. Vamos — disse a voz de Camille ao seu ouvido, em tom baixo.
Sua mão era pequena, mas segurava com firmeza o braço do feiticeiro. Ela era forte, mais do que ele, talvez, de todas as formas possíveis.
— Fairchild criou o rapaz desde a infância, acredito, e, no entanto, vai jogá-lo na rua como um rejeitado. Os Nephilim não têm piedade.
Magnus permitiu que ela o levasse para a rua e para longe do Instituto. A calma da vampira o impressionou. Camille era uma fortaleza, pensou o feiticeiro, e ele gostaria que ela pudesse ensiná-lo o truque de ser menos tolo e menos facilmente magoado.
— Soube que vai nos deixar, senhor Bane — falou ela — Lamentarei muito vê-lo partir. De Quincey promove festas lendárias, e dizem que você é a alma de todas as festas que frequenta.
— Também lamento muito ter que partir.
— Posso perguntar o motivo? — Camille estava com o rosto adorável contrariado, e os olhos verdes brilhando. — Achei que Londres o tivesse conquistado, e que você pudesse ficar.
O convite era quase irresistível. Mas Magnus não era Caçador de Sombras. Conseguia sentir pena de alguém que era jovem e estava sofrendo.
— Aquele jovem lobisomem, Ralf Scott — disse Magnus, sem rodeios. — Ele está apaixonado por você. E me pareceu que você também olhou para ele com algum interesse.
— E se for verdade? — perguntou Camille, rindo. — Você não me parece o tipo de homem que abandona a disputa e renuncia à recompensa em benefício alheio!
— Ah, mas eu não sou um homem, sou? Tenho muitos anos, assim como você — acrescentou; e isso também era glorioso, a ideia de amar uma mulher e não temer perdê-la em breve. — Mas lobisomens não são imortais. Envelhecem e morrem. O garoto, Scott, só tem uma chance de conhecer o seu amor, ao passo que eu... posso ir, voltar, e reencontrá-la aqui.
Ela fez um beicinho gracioso.
— Eu posso esquecê-lo.
Ele se curvou ao ouvido de Camille.
— Se o fizer, serei obrigado a fazê-la se lembrar de mim. — Ele colocou as mãos sobre a cintura dela e sentiu a seda macia do vestido sob as pontas dos dedos. Notou a reação de Camille ao seu toque. Seus lábios roçaram a pele dela, e ele a sentiu estremecer. Ele sussurrou: — Ame o garoto. Dê-lhe a felicidade. E, quando eu voltar, dedicarei uma era a admirá-la.
— Uma era inteira?
— Talvez — disse Magnus, provocando. — Como é o poema de Marvell?
Cem anos serão de devoção
Aos seus olhos e ao seu olhar;
Duzentos para adorar cada seio,
Mas trinta mil para todo o resto;
Ao menos, uma era para cada parte,
E a última deverá mostrar seu coração...
As sobrancelhas de Camille se ergueram com a menção aos seios, mas seus olhos cintilavam.
— E como sabe que tenho um coração?
Magnus ergueu as próprias sobrancelhas, aceitando o argumento.
— Ouvi falar que amar é ter fé.
— Se sua fé é verdadeira — disse Camille — o tempo dirá.
— Antes que o tempo nos diga mais alguma coisa — disse Magnus — peço humildemente que aceite um pequeno símbolo do meu apreço.
Enfiou a mão na parte interna do casaco, feito de um tecido azul superdelicado que ele torceu para que Camille achasse fabuloso, e pegou o colar. O rubi brilhava sob a luz de um poste próximo, e seu centro tinha a cor forte do sangue.
— É muito bonito — disse Magnus.
— Muito bonito — soou ela, entretida com o eufemismo.
— Não é digno da sua beleza, é claro, mas o que poderia ser? E há mais uma coisa além da beleza. Tem um feitiço na joia que avisa quando demônios estão por perto.
Camille arregalou os olhos. Era uma mulher inteligente, e Magnus viu que ela entendeu todo o valor da joia e do feitiço.
Magnus tinha vendido a casa em Grosvenor Square e o que mais poderia fazer com o dinheiro? Não pensava em nada mais valioso do que uma garantia de que manteria Camille em segurança e a faria se lembrar dele com carinho.
— Pensarei em você enquanto estiver longe — prometeu ele, colocando o pingente no pescoço pálido da vampira. — Gostaria de imaginá-la sem medo algum.
A mão de Camille tremeu, como uma pomba branca, até o brilhante do colar, então se afastou de novo. Ela olhou nos olhos de Magnus.
— Para ser justa, tenho que lhe dar um símbolo para se lembrar de mim — falou, sorrindo.
— Ah, bem — disse Magnus, enquanto ela se aproximava. A mão do feiticeiro se ajeitou na pequena circunferência de seda de sua cintura. Antes dos lábios se encontrarem, ele murmurou: — Se é uma questão de justiça.
Camille o beijou. Magnus conseguiu pensar em fazer a luz do poste brilhar com mais intensidade, e a chama no ferro e no vidro preencheu toda a rua com uma luminosidade suave. Ele a segurou, assim como à promessa de um possível amor, e, naquele instante caloroso, todas as ruas estreitas de Londres pareceram se expandir, fazendo-o conseguir pensar de forma positiva até sobre os Caçadores de Sombras.
Mais sobre um do que do resto.
Separou um instante para torcer que Edmund Herondale encontrasse conforto nos braços de seu belo amor mundano, para que vivesse uma vida que fizesse valer a pena todo o sofrimento por que passou.
O navio de Magnus partiria naquela noite. Deixou Camille para que ela pudesse procurar Ralf Scott, e embarcou naquele navio glorioso chamado Persia, feito com a mais inovadora criatividade mundana.
Seu interesse pelo navio e a ideia de uma aventura fizeram com que seu arrependimento por deixar Londres diminuísse, mas, mesmo assim, ficou parado na amurada enquanto a embarcação partia pelas águas noturnas. Olhou pela última vez para a cidade que estava deixando para trás.
Anos depois, Magnus voltaria a Londres, para perto de Camille Belcourt, e descobriria que não seria como sonhou. Anos depois, outro jovem Herondale, de olhos muito azuis, bateria à sua porta, tremendo devido ao frio da chuva e à própria tristeza, e, dessa vez, Magnus poderia ajudar.
Mas naquele momento, o feiticeiro não sabia de nada disso. Simplesmente ficou parado no convés do navio e viu Londres e suas luzes desaparecerem aos poucos.
¹ Em irlandês ou gaélico, significa “idiota”.
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