Capítulo 13

Celaena não percebeu o quanto estava exausta até que tivessem parado todos os ruídos – a cantoria baixa de Emrys à mesa, o socar da massa enquanto ele a sovava, os cortes da faca de Luca e a conversa incessante deste sobre tudo e qualquer coisa. E ela sabia o que encontraria ao se virar para as escadas. As mãos pareciam enrugadas, os dedos doíam, as costas e o pescoço latejavam, mas... Rowan estava recostado contra o arco da escada, de braços cruzados e com violência emanando dos olhos sem vida.
— Vamos.
Embora as feições do guerreiro permanecessem frias, Celaena teve a clara impressão de que ele se irritara por ela não estar encolhida a um canto, choramingando devido ao estado das unhas. Quando a assassina saiu, Luca passou o dedo horizontalmente diante do pescoço e falou, sem emitir som, boa sorte.
Rowan a levou por um pequeno pátio, no qual sentinelas tentavam fingir que não estavam observando cada movimento dos dois, depois seguiram para a floresta. A magia de defesa tecida entre o círculo de pedras mais uma vez beliscou a pele de Celaena ao passarem ali, deixando-a nauseada. Sem o calor constante da cozinha, ela quase congelava ao caminhar entre as árvores cobertas de musgo, mas mesmo isso era apenas uma vaga sensação.
Rowan subiu um monte rochoso em direção às extensões mais altas da floresta, ainda envoltas em névoa. Ela mal parou para observar a vista da encosta abaixo, as planícies diante deles, tudo verde e fresco e seguro de Adarlan. O guerreiro não proferiu uma palavra até que tivessem chegado ao que pareciam ser as ruínas de um templo.
Agora não passava de uma plataforma de blocos de pedra e colunas cujos entalhes tinham sido apagados pelo vento e pela chuva. À esquerda de Celaena, ficava Wendlyn, encostas e planícies e paz. À direita, erguia-se a muralha das montanhas Cambrian, bloqueando qualquer vista das terras imortais além dela.
Atrás de si, bem abaixo, era possível distinguir a fortaleza serpenteando ao longo do dorso da montanha.
Rowan atravessou as pedras rachadas, os cabelos prateados embaraçados pelo vento gélido e úmido. Celaena manteve os braços relaxados na lateral do corpo, mais por reflexo do que qualquer outra coisa. O guerreiro estava armado até os dentes, o rosto dele era uma máscara de brutalidade irrefreável. A assassina se obrigou a sorrir de leve, a melhor tentativa de uma expressão dedicada e ansiosa.
— Faça seu pior.
Rowan a olhou de cima a baixo: a camisa úmida pela névoa, agora gelada contra a pele enrugada, a calça igualmente manchada e encharcada, a posição dos pés...
— Tire esse sorrisinho falso e mentiroso do rosto. — A voz dele estava tão morta quanto os olhos, mas tinha um tom afiado como uma lâmina.
Celaena manteve o sorrisinho falso e mentiroso.
— Não sei do que está falando.
Rowan deu um passo na direção dela, os caninos expostos agora.
— Eis a primeira lição, garota: pare de merda. Não estou com vontade de lidar com isso, e provavelmente sou o único que não dá a mínima para o quanto você é revoltada, má e terrível por dentro.
— Não acho que você queira exatamente ver o quanto sou revoltada, má e terrível por dentro.
— Vá em frente e seja quão detestável quiser, princesa, porque já fui dez vezes pior, por dez vezes mais tempo do que você está viva.
Celaena não revelou nada – não, Rowan não entendia verdadeiramente nada do que espreitava sob sua pele e cravava as garras em suas entranhas – mas desistiu de qualquer tentativa de controlar as feições. Os lábios se retraíram, exibindo os dentes.
— Melhor. Agora mude de forma.
Celaena não se incomodou em parecer agradável ao dizer:
— Não é algo que sei controlar.
— Se eu quisesse desculpas, pediria. Mude.
Ela não sabia como. Jamais dominara a habilidade na infância e certamente não tivera nenhuma oportunidade de aprender na última década.
— Espero que tenha trazido um lanchinho, porque vamos ficar aqui por muito, muito tempo se a lição de hoje depende de eu mudar de forma.
— Vai mesmo me fazer gostar de treinar você. — Celaena teve a sensação de que Rowan poderia ter trocado as palavras treinar você por esfolar você viva.
— Já participei de inúmeras versões da saga de treinamento mestre-discípulo, então por que não deixa de merda também?
O sorriso dele ficou mais sutil, mais letal.
— Cale essa boca espertinha e mude de forma.
Um estremecimento percorreu o corpo de Celaena – uma lança de relâmpago no abismo.
— Não.
Então Rowan atacou.
A jovem tinha pensado nos golpes dele a manhã inteira, no modo como se movia, na agilidade e na inclinação. Assim, desviou do primeiro golpe, esquivando-se do punho, as mechas do cabelo de Celaena chicotearam ao vento. Ela até girou longe o suficiente na direção oposta de modo a evitar o segundo golpe. Contudo, Rowan era tão irritantemente rápido que a assassina mal percebia os movimentos – tão rápido que não teve chance de desviar, bloquear ou antecipar o terceiro golpe. Não contra o rosto, mas contra as pernas, exatamente como ele fizera na noite anterior.
Com um arrastão de pé, Celaena caiu, girando o corpo para se segurar, mas não rápido o bastante para evitar chocar a testa contra uma pedra polida pela erosão. Ela rolou, o céu cinzento pairando acima, e tentou se lembrar de como respirar quando o impacto ecoou pelo crânio. Rowan saltou com uma facilidade fluida, as coxas poderosas enterrando-se nas costelas de Celaena ao se pôr em cima dela. Sem fôlego, com a cabeça girando e os músculos exaustos de uma manhã na cozinha e semanas quase sem comer, ela não conseguia girar para jogar o príncipe longe – não conseguia fazer nada. Fora derrotada pelo peso, pelos músculos e, pela primeira vez na vida, a assassina percebeu que não era, de modo algum, páreo para o adversário.
— Mude — sibilou Rowan.
Ela gargalhou, um som morto e deprimente até para os próprios ouvidos.
— Boa tentativa. — Pelos deuses, a cabeça latejava, um filete quente de sangue escorria da lateral direita da testa, e Rowan estava agora sentado no peito de Celaena. Ela riu de novo, esmagada pelo peso. — Acha que pode me fazer mudar de forma ao me deixar irritada?
Ele grunhiu, o rosto salpicado das estrelas que pairavam na visão da jovem. Cada piscada lançava pontadas de dor pelo corpo. Provavelmente seria o pior olho roxo de sua vida.
— Eis uma sugestão: sou podre de rica — falou Celaena, por cima do latejar na cabeça. — Que tal se fingirmos fazer esse treinamento por uma semana mais ou menos, então você diz a Maeve que estou pronta para entrar no território dela, e dou a você toda a porcaria de ouro que quiser.
Rowan aproximou tanto os caninos do pescoço da assassina que um movimento poderia fazê-lo dilacerar sua garganta.
— Eis uma sugestão — resmungou ele. — Não sei que droga você andou fazendo nos últimos dez anos, a não ser perambular por aí e se chamar de assassina. Mas acho que está acostumada a conseguir o que quer. Acho que não tem controle sobre si mesma. Nenhum controle e nenhuma disciplina, não do tipo que conta de verdade. Você é uma criança e mimada ainda por cima. E — concluiu o guerreiro, aqueles olhos verdes exibindo nada além de desgosto — é uma covarde.
Se não estivesse com os braços presos ao chão, ela teria rasgado o rosto dele bem ali. Celaena lutou, tentando todas as técnicas que já havia aprendido para tirá-lo de cima dela, mas ele não se moveu um centímetro.
Uma risada baixa e insuportável.
— Não gosta da palavra? — Rowan se aproximou ainda mais, aquela tatuagem nadando no campo visual embaçado de Celaena. — Covarde. É uma covarde que fugiu durante dez anos enquanto pessoas inocentes eram queimadas e massacradas e...
Ela parou de ouvir.
Simplesmente... parou.
Era como estar debaixo d’água de novo. Como irromper no quarto de Nehemia e encontrar aquele lindo corpo mutilado na cama. Como ver Galan Ashryver, amado e corajoso, cavalgando para o pôr do sol enquanto seu povo o saudava.
Celaena ficou parada, observando as nuvens que se agitavam acima. Esperando que Rowan terminasse as palavras que não podia ouvir, esperando por um golpe que estava quase certa de que não sentiria.
— Levante-se — falou Rowan, subitamente, e o mundo se tornou claro e amplo quando ele ficou de pé. — Levante-se.
Levante-se. Chaol dissera isso para ela uma vez, quando a dor e o medo e o luto a haviam levado além do limite. Mas o limite que atravessara na noite em que Nehemia morreu, na noite em que estripou Archer, no dia em que contou a Chaol a terrível verdade... o capitão havia ajudado a empurrá-la além do limite.
Celaena ainda estava em queda livre. Não tinha como se levantar, porque não havia fundo.
Mãos poderosas e ásperas a seguravam pelos ombros, o mundo se inclinava e girava, então aquele rosto tatuado e contraído estava diante do dela. Que o guerreiro pegasse a cabeça de Celaena entre aquelas mãos imensas e partisse o pescoço dela.
— Patética — disparou Rowan, soltando-a. — Fraca e patética.
Por Nehemia, precisava tentar, precisava tentar...
Mas ao buscar dentro de si, voltando-se para o lugar no peito em que aquele monstro vivia, Celaena só encontrou teias de aranha e cinzas.
A cabeça de Celaena ainda estava zonza, e havia sangue seco colado à lateral do rosto. A assassina não se incomodou em limpar ou em se importar de verdade com o olho roxo que certamente aparecera durante os quilômetros que haviam caminhado desde as ruínas do templo até a encosta da floresta. Mas não de volta a Defesa Nebulosa.
Celaena oscilava de pé quando Rowan sacou uma espada e uma adaga, parando à beira de uma planície gramada, salpicada de pequenos montes. Não montes – sepulturas, os antigos túmulos dos senhores e príncipes havia muito mortos, que se estendiam até o outro limite das árvores. Havia dúzias, cada um marcado com uma soleira de pedra e selado com uma porta de ferro. E, apesar da visão embaçada e da dor de cabeça latejante, os pelos da nuca de Celaena se arrepiaram.
Os montes de grama pareciam... respirar. Dormir. Portas de ferro – para manter as criaturas tumulares do lado de dentro, trancafiadas com o tesouro que haviam roubado. Elas se infiltravam nas tumbas e espreitavam ali durante eras, alimentando-se de qualquer que fosse o tolo infeliz que ousasse procurar o ouro do lado de dentro.
Rowan inclinou a cabeça na direção dos túmulos.
— Eu tinha planejado esperar até que você tivesse algum controle sobre seu poder... planejava fazer com que viesse à noite, quando as criaturas dos túmulos são realmente dignas de contemplação, mas considere isto um favor, pois há poucas que ousam sair durante o dia. Caminhe entre as sepulturas, enfrente as criaturas e chegue ao outro lado do campo, Aelin, e poderemos ir para Doranelle quando quiser.
Era uma armadilha. Celaena sabia bem disso. Rowan tinha o dom do tempo infinito e podia fazer joguetes que durassem séculos. A impaciência, a mortalidade, o fato de que cada batida do coração a aproximava da morte estavam sendo usados contra ela. Enfrentar as criaturas...
As armas do guerreiro reluziram, próximas o suficiente para que Celaena as pegasse. Ele gesticulou com os ombros fortes ao dizer:
— Pode esperar até merecer as armas de novo ou pode entrar como está agora.
O lampejo de irritação a afetou por tempo o suficiente para que respondesse:
— Minhas mãos livres são armas o suficiente.
Rowan apenas deu um sorriso debochado e saiu caminhando para o labirinto de colinas.
Celaena o seguiu de perto entre cada montinho, sabendo que, se ficasse muito para trás, ele a deixaria ali por desprezo.
A respiração tranquila e os bocejos de coisas despertando se ergueram além daquelas portas de ferro. Não eram adornadas, estavam presas às soleiras com lanças e pregos tão velhos que provavelmente pré-datavam a própria Wendlyn.
Os passos de Celaena esmagavam a grama. Nem mesmo os pássaros e os insetos emitiam um ruído mais alto ali. As colinas se afastavam, revelando um círculo interno de grama morta ao redor do túmulo mais decrépito de todos.
Enquanto os outros eram arredondados, aquele parecia ter sido pisado por algum deus antigo. O topo achatado tinha sido coberto de raízes de arbustos retorcidas, as três enormes pedras da soleira estavam destruídas, manchadas e tortas. A porta de ferro tinha sumido.
Havia apenas escuridão do lado de dentro. Uma escuridão infinita que respirava.
O coração de Celaena se acelerou nos ouvidos conforme o negrume a chamou.
— Eu a deixo aqui — falou Rowan. Ele não havia pisado no círculo, as botas estavam a apenas um centímetro da grama morta. O sorriso do guerreiro se tornou feral. — Vou encontrá-la do outro lado do campo.
Rowan esperava que Celaena fugisse como uma lebre. E ela queria. Pelos deuses, aquele lugar, aquele túmulo amaldiçoado a apenas 100 metros, fazia com que a assassina quisesse correr e correr e não parar até encontrar um lugar onde o sol brilhasse dia noite. Mas, se encarasse aquilo, então poderia partir para Doranelle no dia seguinte. E aquelas criaturas esperando na outra metade do campo... não poderiam ser piores que o que Celaena já vira e enfrentara e encontrara vivendo no mundo e dentro de si.
Assim, ela inclinou a cabeça para Rowan e caminhou para o campo morto.

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