Capítulo 2

O homem – macho – no fim do beco era feérico.
Depois de dez anos, depois de todas as execuções e as fogueiras, um macho feérico caminhava até ela. Feérico puro e concreto. Não havia como escapar conforme o homem surgia das sombras a metros de distância. A mendiga na alcova e os demais pelo beco ficaram tão silenciosos que Celaena conseguiu ouvir de novo aqueles sinos dobrando nas montanhas distantes.
Alto, de ombros largos, com cada centímetro do corpo obviamente marcado por músculos, era um feérico com poder nas veias. Ele parou sob um feixe empoeirado de luz do sol, os cabelos prateados brilhando. Como se as orelhas delicadamente pontiagudas e os dentes caninos levemente longos não fossem o bastante para quase matar todos de susto naquele beco, inclusive a louca agora choramingando atrás da assassina, o feérico tinha uma tatuagem de aparência maliciosa impressa do lado esquerdo do rosto de feições acentuadas, as espirais de tinta negra severas contra a pele bronzeada.
As marcas poderiam muito bem ter sido decorativas, mas Celaena ainda se lembrava o bastante da língua feérica para reconhecê-las como palavras, até mesmo em uma representação tão artística. Começando na têmpora, a tatuagem descia pelo maxilar até o pescoço, onde desaparecia sob o sobretudo e a capa desbotados que usava. A jovem tinha a sensação de que os desenhos continuavam pelo restante dele também, escondidos com pelo menos meia dúzia de armas. Ao levar a mão à capa em busca da própria adaga oculta, ela percebeu que o feérico poderia ter sido considerado bonito, não fosse pela promessa de violência naqueles olhos verde-pinho.
Seria um erro chamá-lo de jovem – exatamente como seria um erro chamá-lo de qualquer outra coisa além de um guerreiro, mesmo sem a espada presa às costas e as facas perigosas na lateral do corpo. Ele se moveu com graciosidade letal e determinação, verificando o beco como se caminhasse em direção a um campo de batalha.
Com o cabo da adaga morno em sua mão, Celaena ajustou a postura, surpresa por sentir... medo. E o suficiente para que dissipasse a névoa densa que lhe atrapalhava os sentidos nas últimas semanas.
O guerreiro feérico andou pelo beco, as botas de couro na altura dos joelhos silenciosas sobre os paralelepípedos. Alguns dos vagabundos se encolheram; alguns dispararam para a rua ensolarada, para portas aleatórias, qualquer lugar para escapar daquele olhar desafiador.
Antes mesmo de os olhos aguçados a encararem, Celaena soube que ele estava atrás dela e quem o enviara.
Ela levou a mão para o amuleto do Olho, ficando surpresa ao perceber que não estava mais ao redor do pescoço. A jovem o dera a Chaol – a única proteção que pôde conferir a ele ao partir. O capitão devia tê-lo jogado fora assim que descobriu a verdade. Desse modo, poderia voltar ao refúgio de ser inimigo de Celaena. Talvez também contasse a Dorian, e os dois estariam em segurança.
Antes que conseguisse ceder ao instinto de escalar novamente o cano de escoamento e subir no telhado, Celaena considerou o plano que abandonara. Será que algum deus havia se lembrado de sua existência e decidira lhe ajudar? A assassina precisava ver Maeve.
Bem, ali estava um dos guerreiros de elite de Maeve. Pronto. Esperando. E pelo temperamento maligno que emanava do feérico, não estava muito feliz por isso.
O beco permaneceu tão silencioso quanto um cemitério enquanto o guerreiro a avaliava. As narinas se dilataram delicadamente, como se estivesse...
Ele estava sentindo o cheiro da assassina.
Celaena experimentou uma pequena satisfação ao saber que cheirava terrivelmente, mas não era esse o aroma que ele captava. Não, era o odor que a marcava como ela – o cheiro da linhagem e do sangue, e o que e quem ela era.
E se o guerreiro dissesse o nome da assassina diante daquelas pessoas... aí Celaena sabia que Galan Ashryver voltaria correndo para casa. Os guardas estariam em alerta total, e isso realmente não era parte do plano.
O desgraçado parecia capaz de fazer tal coisa, apenas para provar quem estava no comando. Portanto, Celaena reuniu o máximo de energia que pôde e caminhou com elegância até o feérico, tentando se lembrar do que poderia ter feito meses antes, antes de mandar o mundo para o inferno.
— Que prazer ver você, meu amigo — ronronou ela. — Grande prazer mesmo.
A assassina ignorou os rostos assustados ao redor dos dois, concentrando-se apenas em avaliar o guerreiro, cuja imobilidade inata seria possível apenas a um imortal. Ela desejou que o coração e a respiração se acalmassem. O homem podia provavelmente os ouvir, podia provavelmente cheirar cada emoção percorrendo seu corpo. Não haveria como enganá-lo com pose de coragem, nem em mil anos. Possivelmente o feérico já vivera esse tempo. Talvez não houvesse modo de derrotá-lo também. Ela era Celaena Sardothien, mas ele era um guerreiro feérico, e tudo indicava que havia bastante tempo.
A jovem parou a alguns metros. Pelos deuses, como ele era imenso.
— Que ótima surpresa! — exclamou ela, em voz alta o suficiente para todos ouvirem. Quando foi a última vez que soou tão agradável? Nem se lembrava da última vez que dissera frases completas. — Achei que nos encontraríamos nas muralhas da cidade.
Ele não fez reverência, graças aos deuses. A expressão severa nem mesmo se alterou. Que pensasse o que quisesse. Celaena tinha certeza de que ela não se parecia em nada com o que o feérico fora instruído a esperar – e ele certamente gargalhou quando aquela mulher a confundiu com uma colega mendiga.
— Vamos.
Foi tudo o que o guerreiro falou, a voz um pouco entediada parecendo ecoar nas pedras conforme se virou para deixar o beco. Celaena apostaria alto que os braçais de sua armadura ocultavam facas.
Ela poderia ter dado uma resposta desagradável, apenas para testá-lo um pouco mais, mas as pessoas ainda estavam olhando. O feérico seguiu, sem se incomodar em olhar para qualquer um dos observadores. Celaena não sabia se estava impressionada ou revoltada.
Seguiu o guerreiro feérico para a rua iluminada e pela cidade fervilhante.
Ele ignorava os humanos que paravam de trabalhar e de caminhar e de se distrair para encará-lo. O guerreiro certamente não esperou que a assassina o alcançasse ao caminhar até duas éguas comuns, amarradas a um cocho em uma praça qualquer. Se a memória não falhava a Celaena, os feéricos possuíam cavalos muito melhores. Ele provavelmente chegou de outra forma e comprou aqueles na cidade.
Todos os feéricos possuíam uma forma animal secundária. Celaena estava atualmente na dela, o corpo humano mortal, tão animal quanto os pássaros chilreando acima. Mas qual seria a dele? Poderia ser um lobo, pensou ela, com aquele sobretudo, cheio de camadas, que oscilava no meio da coxa como uma capa de pele, as passadas tão silenciosas. Ou um felino selvagem, com aquela graciosidade de predador.
O homem montou na égua maior, deixando-a com a besta malhada, que parecia mais interessada em procurar uma refeição rápida que em caminhar pelo terreno. Eram duas, então. Contudo, já tinham ido longe demais sem qualquer explicação.
Celaena enfiou a sacola em uma bolsa da sela, inclinando as mãos para que as mangas escondessem as finas pulseiras de cicatrizes nos pulsos, lembretes de onde estiveram as amarras. De onde ela estivera. Não era da conta dele.
Também não era da conta de Maeve. O quanto menos soubessem sobre Celaena, menos poderiam usar contra ela.
— Conheci alguns tipos de guerreiros emburrados em minha época, mas acho que você deve ser o mais emburrado de todos. — O feérico virou a cabeça para ela, que continuou: — Ah, oi. Acho que sabe quem sou, então não vou me incomodar em me apresentar. Mas, antes que eu seja despachada para sabem os deuses onde, gostaria de saber quem você é.
Os lábios do guerreiro se contraíram. Ele avaliou a praça – onde as pessoas agora observavam. E todos imediatamente encontraram outro lugar para estar. Depois que se dispersaram, o feérico retrucou:
— Você já reuniu informação o bastante sobre mim a esta altura para saber o que precisa. — Ele falou na língua comum, e o sotaque era leve, encantador se estivesse se sentindo generosa o suficiente para admitir. Um ronronar baixo e arrastado.
— Justo. Mas como devo chamá-lo? — Ela segurou a sela, mas não montou na égua.
— Rowan. — Sua tatuagem parecia absorver o sol, tão escura como se recém-feita.
— Bem, Rowan... — Ah, ele não gostou nada do tom de voz dela. Os olhos de Rowan se semicerraram levemente em aviso, mas Celaena prosseguiu: — Ouso perguntar aonde vamos?
Ela só podia estar bêbada, ainda bêbada ou caindo em um novo nível de apatia, para falar com o feérico daquela forma.
Mas não conseguia parar, mesmo com os deuses, ou Wyrd, ou os fios do destino preparando-se para lançá-la de volta ao plano de ação original.
— Vou levá-la para onde foi convocada.
Contanto que pudesse ver Maeve e fazer as perguntas, Celaena não se importava muito com como chegaria a Doranelle; ou com quem viajaria.
Faça o que precisa ser feito, dissera Elena. Como sempre, ela deixara de especificar o que precisava ser feito depois que a assassina chegasse a Wendlyn.
Pelo menos era melhor que comer pão chato e beber vinho, ou ser confundida com uma mendiga. Talvez pudesse estar em um barco de volta a Adarlan em três semanas, com as respostas que resolveriam tudo.
Isso deveria tê-la revigorado. Mas, pelo contrário, ela se viu montando na égua silenciosamente, sem palavras e sem vontade de usá-las. Apenas os últimos minutos de interação a haviam exaurido por completo.
Era melhor que Rowan não quisesse conversar enquanto se dirigiam para fora da cidade. Os guardas simplesmente gesticularam para que passassem pela muralha, alguns até recuaram.
Conforme cavalgaram, o feérico não perguntou por que Celaena estava ali e o que fizera durante os últimos dez anos, enquanto o mundo se tornava um inferno. Ele puxou o capuz desbotado sobre os cabelos prateados e seguiu em frente, embora ainda fosse bem fácil distingui-lo, como um guerreiro e a lei personificados.
Se Rowan era realmente tão velho quanto Celaena suspeitava, ela provavelmente era pouco mais que um grão de poeira para ele, um fiapo de vida no fogo de imortalidade há tanto aceso. Ele provavelmente poderia matá-la sem pensar duas vezes – e então seguir para a próxima tarefa, completamente inabalado por acabar com sua existência.
Isso não a irritou tanto quanto deveria.

Comentários

  1. ok um novo romance para celaena kkkkkkkkkkkkkk

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  2. Eu acabei de pensar em uma coisa muito doida agora. Se a Celaena é mesmo a Aelin e consequentemente herdeira do trono de Terrassen, ela é parente da Elena que também é uma ancestral do Dorian, ent o Dorian é parente da Celaena, por fim ela quase teve um romance com o primo dela?

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Nada de spoilers! :)

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