Capítulo 26

Chaol não vira nem tivera notícias do general ou do príncipe desde aquela noite na tumba. De acordo com seus homens, Dorian passava o tempo nas catacumbas dos curandeiros, cortejando uma das jovens ali embaixo. O capitão se odiou, mas alguma parte dele ficou aliviada ao ouvir aquilo; pelo menos o rapaz estava falando com alguém.
A distância dos dois valia a pena. Por Dorian, mesmo que o amigo jamais o perdoasse; por Celaena, mesmo que ela jamais voltasse; mesmo que Chaol ainda desejasse que ela fosse Celaena, não Aelin... valia a pena.
Levou uma semana até que o capitão tivesse tempo de se encontrar com Aedion de novo; para obter a informação que não tinha recebido, graças à interrupção de Dorian. Se o príncipe os surpreendera tão facilmente, então a tumba não era o melhor lugar para se encontrarem. Havia um lugar, no entanto, no qual poderiam se reunir com riscos mínimos. Celaena o deixara para Chaol no testamento dela, junto ao endereço.
O apartamento secreto acima do armazém estava intocado, embora alguém tivesse se dado o trabalho de cobrir a mobília ornamentada. Puxar cada lençol era como descobrir um pouco mais sobre quem fora Celaena antes de Endovier – prova de que o gosto luxuoso vinha de longe. Comprara o imóvel, dissera ela a Chaol certa vez, a fim de ter um lugar para chamar de seu, um lugar além da Fortaleza dos Assassinos, na qual fora criada. Havia usado quase todo o dinheiro que tinha no apartamento, mas fora necessário, contara Celaena, pelo pouco de liberdade que lhe garantiu. O capitão poderia ter deixado os lençóis, provavelmente deveria, mas... estava curioso.
A residência consistia em dois quartos com os próprios banheiros, uma cozinha e um salão, onde um sofá de estofamento macio se estendia diante de uma lareira de mármore entalhado, acompanhado por duas poltronas de veludo enormes. A outra metade da sala era ocupada por uma mesa de jantar de carvalho, capaz de acomodar oito e ainda posta: pratos de porcelana e prata, talheres havia muito opacos. Era a única evidência de que aquele local estava intocado desde que quem quer que fosse – provavelmente Arobynn Hamel – ordenara que fosse selado.
Arobynn Hamel, o rei dos assassinos. Chaol trincou os dentes quando terminou de guardar o último dos lençóis brancos no armário do corredor.
Andava pensando muito no antigo mestre de Celaena ultimamente. Arobynn era esperto o suficiente para ter juntado as peças ao encontrar uma órfã carregada pelo rio logo depois de a princesa de Terrasen ter sumido, o corpo desaparecido no rio Florine, quase congelado.
Se o homem sabia e tinha feito aquelas coisas com ela... A cicatriz no pulso de Celaena surgiu na mente do capitão. Ele fizera com que a assassina quebrasse a própria mão. Devia haver inúmeras outras brutalidades que ela sequer contou a Chaol. E a pior delas, a pior de todas...
O capitão jamais perguntou a Celaena por que, depois de ser nomeada campeã, sua prioridade não foi caçar o antigo mestre e cortá-lo em pedaços pelo que tinha feito ao amante da jovem, Sam Cortland. Arobynn ordenara a tortura e o assassinato de Sam, então planejara uma armadilha para que ela fosse enviada a Endovier. O mestre devia ter esperado ter Celaena de volta algum dia se havia deixado o apartamento intocado. Devia querer deixá-la apodrecer em Endovier – até decidir libertá-la para que a assassina voltasse rastejando, a serva eternamente leal.
Era o direito dela, disse o capitão a si mesmo. O direito de Celaena decidir quando e como matar Arobynn. Também era o direito de Aedion. Até mesmo os dois senhores de Terrasen tinham mais direito à cabeça do rei dos assassinos que Chaol. Mas, se o visse, não tinha certeza se conseguiria se conter.
A escada de madeira capenga além da porta de entrada rangeu, fazendo-o sacar a espada em um segundo. Então ouviu um assobio em tom grave e relaxou, apenas um pouco, assobiando de volta. Chaol manteve a espada sacada até que Aedion caminhasse pela porta, a arma em punho.
— Fiquei me perguntando se estaria aqui sozinho ou com uma equipe de homens esperando às sombras — falou Aedion, como cumprimento, embainhando a espada.
Chaol o olhou com raiva.
— Igualmente.
Aedion se moveu mais para o interior do apartamento, a determinação no rosto se transformando de cautela para espanto, então tristeza. E ocorreu ao capitão que o general via pela primeira vez um pedaço da prima perdida naquele apartamento. Aquelas eram as coisas dela. Celaena havia escolhido tudo, desde as miniaturas sobre a lareira até os guardanapos verdes na antiga mesa de campo na cozinha, arranhada e sulcada, ao que parecia, por inúmeras facas.
Aedion parou no centro da sala, avaliando tudo. Talvez para ver se havia, de fato, alguma força secreta à espera, mas... Chaol resmungou alguma coisa sobre usar o banheiro e deu ao homem a privacidade de que precisava.

***

Aquele era o imóvel dela. Aceitando ou não o passado, havia decorado a mesa de jantar com as cores reais de Terrasen – verde e prateado. A mesa e a miniatura do cervo sobre a lareira eram os únicos resquícios de prova de que poderia se lembrar. Poderia se importar.
Todo o resto era confortável, de bom gosto, como se a residência servisse para receber pessoas e passar as noites à lareira. E havia tantos livros – nas prateleiras, nas mesas ao lado do sofá, empilhados ao lado da enorme poltrona diante das janelas acortinadas que iam do chão ao teto e se estendiam por todo o salão.
Inteligente. Educada. Culta se os enfeites eram algum indicativo. Havia coisas de todos os reinos, como se tivesse trazido algo de todos os lugares que visitou. A sala era um mapa de suas aventuras, um mapa de uma pessoa completamente diferente. Aelin sobrevivera. Sobrevivera e vira e fizera coisas.
A cozinha era pequena, mas aconchegante, e... Pelos deuses. Tinha uma caixa refrigeradora. O capitão mencionara que ela era famosa como assassina, mas não mencionara que era rica. Todo aquele dinheiro de sangue; todas aquelas coisas eram apenas prova do que perdera. Do que Aedion fracassara em tentar proteger.
Havia se tornado uma assassina. E uma muito boa, se aquele apartamento era algum indicativo. O quarto era ainda mais escandaloso. Tinha uma enorme cama com dossel e um colchão que parecia uma nuvem; anexo, havia um banheiro de ladrilhos de mármore com o próprio encanamento.
Bem, o guarda-roupa não tinha mudado. A prima de Aedion sempre amara roupas bonitas. Ele pegou uma túnica azul-marinho, com bordado dourado ao redor das lapelas e botões reluzentes à luz das arandelas. Aquelas eram roupas para o corpo de uma mulher. E o cheiro ainda remanescente no apartamento pertencia a uma mulher – tão semelhante àquele de que Aedion se lembrava da infância, mas envolto em mistério e sorrisos secretos. Era impossível os sentidos feéricos não repararem, não reagirem.
Ele se recostou à parede do cômodo, encarando os vestidos e as joias, agora cobertas de poeira. O general não se permitiu se importar com o que tinha sido feito com ele no passado, nas pessoas que destruíra, nos campos de batalha por onde andara, coberto de sangue e restos mortais que não eram dele. A seu ver, tinha perdido tudo no dia em que Aelin morreu. Merecera a punição pelo grande fracasso. Mas Aelin...
Aedion passou as mãos pelos cabelos antes de sair para o salão. Aelin voltaria de Wendlyn, não importava em que acreditasse o capitão. Ela voltaria e, quando retornasse... Com cada suspiro, o general sentia aquele cheiro permanente se enroscar com mais força no coração e na alma. Quando voltasse, Aedion jamais a deixaria.

***

O general se sentou em uma das poltronas diante da lareira enquanto Chaol dizia:
— Bem, acho que esperei bastante para ouvir o que você tem a dizer sobre a magia. Espero que valha a pena.
— Independentemente do que sei, a magia não deveria ser seu principal plano de defesa, ou de ação.
— Vi sua rainha abrir a terra em duas com o poder dela — retrucou Chaol. — Diga que isso não mudaria o rumo em um campo de batalha, diga que não precisaria disso e de outros como ela.
— Ela não estará nem perto desses campos de batalha — grunhiu Aedion, baixinho.
O capitão duvidava muito que isso fosse verdade, mas desejou que fosse. O general provavelmente precisaria amarrar Celaena ao trono para impedi-la de lutar nas linhas de frente com o povo.
— Apenas diga.
Aedion suspirou e olhou para o fogo, como se contemplasse um horizonte distante.
— As fogueiras e as execuções já haviam começado quando a magia sumiu, então no dia em que aconteceu, achei que os pássaros estivessem apenas fugindo dos soldados ou procurando por carniça. Fui trancado em uma das salas da torre por ordens do rei. Na maioria das vezes, não ousava olhar pela janela, porque não queria ver o que ocorria na cidade abaixo, mas havia tanto barulho dos pássaros naquele dia que olhei. E... — Aedion balançou a cabeça. — Alguma coisa os fez sair voando em uma direção, depois em outra. Em seguida os gritos começaram. Ouvi dizer que algumas pessoas simplesmente morreram onde estavam, como se uma artéria tivesse sido partida.
O general abriu um mapa na mesa baixa entre os dois e colocou um dedo calejado sobre Orynth.
— Houve duas revoadas de pássaros. A primeira foi para o norte e noroeste. — Ele traçou uma linha fraca. — Da torre, pude ver longe o bastante para saber que muitos vieram do sul, a maioria dos pássaros perto de nós não se movia muito. Mas, então, a segunda revoada mandou todos para o norte e para o leste, como se algo do centro da terra os tivesse empurrado para lá.
Chaol apontou para Perranth, a segunda maior cidade de Terrasen.
— Daqui?
— Mais ao sul. — Aedion tirou a mão de Chaol do caminho. — De Endovier ou ainda mais baixo.
— Não poderia ter visto tão longe assim.
— Não, mas os lordes guerreiros de minha corte me fizeram memorizar os pássaros de Carvalhal e todos os seus cantos de caça e, também, de luta. E havia pássaros voando em nossa direção que só podiam ser encontrados em seu país. Eu os contava para me distrair enquanto... — Outra pausa, como se o homem não tivesse a intenção de dizer aquilo. — Não me lembro de ouvir nenhum pássaro dos três reinos ao sul.
O capitão traçou uma linha irregular, começando em Forte da Fenda e subindo na direção das montanhas, na direção do desfiladeiro Ferian.
— Como se algo tivesse disparado nessa direção.
— Somente na segunda revoada a magia parou. — Aedion ergueu uma sobrancelha. — Você não se lembra desse dia?
— Eu estava aqui; se alguém sentiu dor, escondeu isso. A magia é ilegal em Adarlan há décadas. Então, aonde isso nos leva, Aedion?
— Bem, Murtaugh e Ren tiveram experiências semelhantes. — Então o general começou outra história: como Aedion, Ren e Murtaugh tinham visto um frenesi dos animais locais e ondas gêmeas de alguma coisa no dia em que a magia desapareceu. Contudo, estavam na parte sul do continente, tinha acabado de chegar à baía da Caveira.
Somente seis meses antes, quando foram atraídos para a cidade pelas mentiras de Archer Finn sobre o ressurgimento de Aelin, que começaram a considerar a magia, contemplando formas de destruir o poder do rei pela rainha deles. Depois de comparar histórias com os outros rebeldes em Forte da Fenda, perceberam que outros tinham vivenciado fenômenos semelhantes. Querendo um relato completo, encontraram um mercador da península Desértica que estava disposto a falar; um homem de Xandria que foi surpreendentemente honesto, apesar do negócio que tinha montado de itens contrabandeados.
Roubei uma égua Asterion do senhor de Xandria.
É claro que Celaena tinha ido à península Desértica. E arrumara confusão.
Apesar da dor no peito, Chaol sorriu ao se lembrar disso enquanto Aedion recontava o relato de Murtaugh sobre a história do mercador.
Não foram duas ondas quando a magia desapareceu no deserto, mas três. A primeira varrendo do norte. O mercador estava com o senhor de Xandria na fortaleza dele, bem acima da cidade, e vira um leve tremor que fez a areia vermelha dançar. A segunda veio do sudoeste, rolando na direção deles como uma tempestade de areia. O pulso final veio da mesma fonte continental da qual Aedion se lembrava. Segundos depois, a magia havia sumido, e as pessoas gritavam nas ruas, e o senhor de Xandria recebeu a ordem, uma semana depois, para matar todos os possuidores de poderes conhecidos ou registrados na cidade.
Então os gritos se tornaram diferentes.
Aedion deu um sorriso malicioso ao terminar.
— Mas Murtaugh descobriu mais. Nós vamos nos reunir em três dias. Ele poderá contar as teorias então.
Chaol se levantou da cadeira.
— É isso? É tudo que sabe, o que vem ostentando sobre mim durante as últimas semanas?
— Ainda há mais para você me contar, portanto por que eu deveria contar tudo?
— Dei a você informações vitais, que mudariam o mundo — respondeu o capitão, entredentes. — Você só me contou histórias.
Os olhos de Aedion estamparam um brilho letal.
— Vai querer ouvir o que Ren e Murtaugh têm a dizer. — Chaol não estava com vontade de esperar tanto tempo, mas havia dois almoços de Estado, além de um jantar formal antes disso, e ele deveria comparecer a todos os eventos. Também precisava apresentar ao rei os planos de defesa para os eventos.
Depois de um momento, o general perguntou:
— Como suporta trabalhar para ele? Como finge não saber o que aquele desgraçado está fazendo, o que fez com pessoas inocentes, com a mulher que você diz amar?
— Estou fazendo o que preciso. — Chaol não achou que Aedion entenderia, de toda forma.
— Diga por que o capitão da Guarda, um Lorde de Adarlan, está ajudando o inimigo dele. É toda a informação que quero hoje.
Chaol queria dizer que, considerando o quanto já havia compartilhado, não precisava oferecer nada. No entanto, em vez disso, falou:
— Fui criado ouvindo que estávamos levando paz e civilização ao continente. O que vi recentemente me fez perceber o quanto disso é mentira.
— Mas sabia sobre os campos de trabalhos forçados. Sobre os massacres.
— É fácil crer em mentiras quando não se conhece nenhuma dessas vítimas pessoalmente. — Mas Celaena, com as cicatrizes, e Nehemia, com o povo massacrado... — É fácil acreditar quando seu rei lhe conta que as pessoas de Endovier merecem estar lá porque são criminosas ou rebeldes que tentaram matar famílias inocentes de Adarlan.
— E quantos de seus conterrâneos enfrentariam o rei se eles, também, soubessem a verdade? Se parassem para considerar como seria caso tivessem a família, a cidade, escravizada ou assassinada? Quantos o enfrentariam se soubessem que tipo de poder o príncipe deles possui, se o príncipe se levantasse para lutar conosco?
Chaol não sabia e não tinha certeza se queria saber. Quanto a Dorian... não poderia pedir aquilo ao amigo. Não poderia esperar aquilo dele. O objetivo do capitão era manter o príncipe em segurança. Mesmo que custasse a amizade deles, não o queria envolvido. Jamais.

***

A semana que passara foi terrível e maravilhosa para Dorian.
Terrível porque mais duas pessoas sabiam seu segredo, e porque o príncipe caminhava em uma linha tênue em se tratando de controlar a magia, a qual parecia mais volátil a cada dia.
Maravilhosa porque toda tarde Dorian visitava a sala de trabalho esquecida que Sorscha descobrira no fundo de um nível inferior nas catacumbas, na qual ninguém os encontraria. Ela levava livros de sabiam os deuses onde, assim como ervas e plantas e sais e pós; assim, todo dia, os dois pesquisavam e treinavam e refletiam.
Não havia muitos livros sobre como conter um poder como o dele – muitos tinham sido queimados, dissera a curandeira. Mas ela via a magia como uma doença: se pudesse encontrar os canais certos para bloquear, poderia contê-la. Se não conseguissem, dizia Sorscha sempre, podiam recorrer a drogar Dorian, apenas o bastante para acalmar seu humor. Ela não gostava dessa ideia, e o príncipe também não, embora fosse reconfortante saber que a opção existia.
Uma hora por dia era tudo o que conseguiam juntos. Durante aquele tempo, independentemente das leis que estivessem quebrando, Dorian se sentia normal de novo. Não contorcido e cambaleante e trôpego no escuro, mas com os pés no chão. Calmo. Não importava o que dissesse a Sorscha, ela jamais o julgava ou traía. Chaol fora essa pessoa um dia. No entanto, agora, quando se tratava da magia, o príncipe ainda via medo e um toque de desprezo nos olhos do capitão.
— Sabia — comentou Sorscha, do lugar do outro lado da mesa de trabalho — que antes de a magia sumir tinham que encontrar formas especiais de conter os prisioneiros com dons?
Dorian ergueu o rosto do livro, um volume inútil sobre remédios de jardim.
Antes de a magia sumir... nas mãos do pai dele e das chaves de Wyrd. Seu estômago se revirou.
— Porque poderiam usar a magia para fugir da prisão?
Ela olhou para o livro de novo.
— Por isso muitas das antigas prisões usam ferro maciço; é imune à magia.
— Eu sei — falou Dorian, e Sorscha ergueu uma sobrancelha. Ela começava a ganhar vida devagar perto dele, embora o príncipe também tivesse aprendido a interpretar um pouco melhor as expressões sutis da curandeira. — Quando meu poder apareceu pela primeira vez, tentei usá-lo em uma porta de ferro e... não deu muito certo.
— Humm. — A moça mordeu o lábio, o que era uma distração surpreendente. — Mas ferro está em nosso sangue, então como isso funciona?
— Acho que foi o jeito de os deuses evitarem que ficássemos poderosos demais: se mantivermos contato com a magia, se ficar fluindo por nós durante muito tempo, desmaiamos. Ou pior.
— Imagino o que aconteceria se aumentássemos o ferro em sua dieta, talvez acrescentando uma quantidade grande de melaço à comida. Nós damos aos pacientes anêmicos, mas, se déssemos a você uma dose altamente concentrada... teria um gosto horrível, e talvez fosse perigoso, mas...
— Mas talvez, se estiver em meu corpo, então quando a magia subir... — Ele fez uma careta. Poderia ter hesitado por causa da lembrança da dor sentida no dia que tentou selar aquela porta de ferro, mas... Não conseguia dizer não a Sorscha. — Tem um pouco aqui? Só alguma coisa para colocar em uma bebida?
Ela não tinha, mas foi buscar. Então, 15 minutos depois, Dorian fez uma oração para Silba e engoliu, encolhendo o corpo devido à doçura absurda. Nada.
Os olhos de Sorscha dispararam dos olhos de Dorian para o relógio de bolso na mão dela. Contando. Esperando para ver se ocorreria uma reação adversa. Um minuto se passou. Em seguida, dez. Dorian precisava ir em breve, e ela também, mas após um tempo, a curandeira falou baixinho:
— Tente. Tente conjurá-la. O ferro deve estar em seu sangue agora. — Ele fechou os olhos, então Sorscha acrescentou: — Ela reage quando você está chateado, irritado ou com medo ou triste. Pense em algo que o faz sentir dessa forma.
A jovem estava arriscando o emprego, a vida, tudo por aquilo. Por ele, o filho do homem que ordenara que o exército destruísse sua cidade, então assassinasse sua família com os outros imigrantes indesejados que moravam em casas invadidas de Forte da Fenda. Dorian não merecia aquilo.
Ele inspirou. Expirou. Sorscha também não merecia a quantidade de problemas que o príncipe levava a ela; e que continuaria levando à porta dela sempre que fosse até lá. O rapaz sabia quando as mulheres gostavam dele, e soubera assim que a vira que ela o achava atraente. Dorian esperava que essa opinião não mudasse para pior, mas agora... Pense no que o deixa chateado.
Tudo o deixava chateado. Ficava chateado por Sorscha arriscar a própria vida, por não ter escolha a não ser colocá-la em risco. Mesmo que desse aquele último passo em direção à curandeira, mesmo que a levasse para a cama como queria tanto, ainda era... o príncipe herdeiro. Você sempre será meu inimigo, dissera Celaena certa vez.
Não havia como escapar da coroa. Ou do pai, que decapitaria Sorscha, a queimaria e espalharia as cinzas ao vento se descobrisse que a moça o havia ajudado. O rei, cujos amigos agora trabalhavam para destruir. Eles tinham mentido para Dorian e o ignoraram por aquela causa. Porque ele era um perigo, para eles, para Sorscha e...
Uma dor lancinante irrompeu no fundo, subindo pela garganta, e o príncipe quase vomitou. Houve outra onda, então uma brisa fria tentou beijar seu rosto, mas a brisa sumiu como névoa sob o sol quando a dor o fez estremecer. Ele inclinou o corpo para a frente, fechando os olhos com força conforme aflição, depois náusea o percorreram de novo. E de novo. Mas então tudo ficou calmo. Dorian abriu os olhos e encontrou Sorscha, inteligente, tranquila, maravilhosa, parada ali, mordendo o lábio. Ela deu um passo – na direção dele, não para trás, pelo menos uma vez.
— Funci...
Dorian levantou-se tão rápido que a cadeira balançou atrás dele, segurando o rosto da curandeira entre as mãos um segundo depois.
— Sim — sussurrou ele, e a beijou.
Foi rápido, mas o rosto de Sorscha estava vermelho, e os olhos, arregalados, quando o príncipe se afastou. O olhar dele estava arregalado também, pelos deuses, e Dorian ainda roçava o polegar contra a bochecha macia da jovem. Ainda contemplava beijá-la de novo, porque aquilo não chegara perto de ser o bastante.
Contudo, Sorscha se afastou, voltando ao trabalho. Como se... como se não tivesse sido nada, a não ser um momento embaraçoso.
— Amanhã? — murmurou ela, sem querer fitá-lo.
Ele mal conseguiu reunir as palavras para dizer que sim antes de sair cambaleando. A curandeira parecera tão surpresa, e, se não saísse, Dorian provavelmente a beijaria de novo.
Mas talvez ela não quisesse ser beijada.

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