Capítulo 28

Os dias se passaram, e nem todos foram horríveis. Do nada, Rowan decidiu levar Celaena para a comunidade de curandeiros a 25 quilômetros, na qual os melhores curandeiros do mundo aprendiam, ensinavam e trabalhavam. Na fronteira entre o mundo feérico e o mundo mortal, estavam acessíveis a qualquer um que conseguisse chegar lá. Era uma das poucas coisas boas que Maeve fizera.
Quando era criança, Celaena tinha implorado à mãe que a levasse. Mas a resposta sempre fora não, acompanhada de uma vaga promessa de que algum dia fariam a viagem até Torre Cesme no continente sul, onde muitos dos professores tinham sido ensinados pelos feéricos. Sua mãe fizera todo o possível para manter a filha longe das garras de Maeve. A ironia daquilo não passava despercebida.
Então Rowan a levou. Celaena poderia ter passado o dia todo – o mês inteiro – perambulando pela propriedade, sob os olhos inteligentes e gentis do curandeiro-chefe. No entanto, o tempo ali foi cortado pela metade graças à distância e à inabilidade da assassina em mudar de forma, pois Rowan queria estar em casa antes do anoitecer. Sinceramente, embora tivesse se divertido de verdade no complexo pacífico à margem do rio, ela se perguntou se o guerreiro a levara até lá apenas para fazer com que se sentisse mal pela vida na qual tinha terminado. Aquilo a deixou calada durante a longa caminhada de volta.
E Rowan não deu a ela um momento de paz: deveriam sair ao alvorecer seguinte para uma viagem de dois dias, mas ele não queria dizer para onde.
Fantástico.
Já preparando o pão do dia, Emrys apenas pareceu vagamente entretido quando Celaena entrou apressada, encheu a boca de comida, entornou o chá, então saiu correndo de novo.
O guerreiro já esperava nos aposentos dela, com uma pequena mochila, aberta, pendurada nas mãos.
— Roupas — disse Rowan, então ela enfiou dentro da bolsa a camisa e as roupas de baixo extras que tinha separado.
Ele colocou a mochila nos ombros, o que significava, Celaena imaginou, que estava de bom humor, pois ela esperava bancar a mula a caminho de onde quer que fossem. O guerreiro não disse nada até que os dois estivessem nas árvores cobertas de névoa, seguindo de novo para oeste. Quando as muralhas da fortaleza sumiram atrás deles, as pedras de defesa zunindo contra a pele de Celaena conforme atravessavam, Rowan parou por fim, tirando o capuz pesado do casaco. Ela fez o mesmo, o ar frio fustigando as bochechas mornas.
— Mude de forma e vamos — disse Rowan.
O segundo conjunto de palavras direcionados a ela naquela manhã.
— E aqui estava eu, pensando que tínhamos nos tornado amigos.
Rowan ergueu as sobrancelhas, gesticulando com a mão para que Celaena mudasse de forma.
— São 30 quilômetros — retrucou o guerreiro, como se a encorajasse, e deu um sorriso malicioso. — Vamos correndo. Ida e volta.
Os joelhos dela tremeram ao pensar naquilo. É claro que transformaria aquilo em algum tipo de sessão de tortura. É claro.
— E aonde vamos?
Rowan trincou o maxilar, a tatuagem se esticando.
— Outro corpo foi encontrado, semifeérico, de uma fortaleza vizinha. Foi jogado na mesma área, os mesmos padrões. Quero ir até a cidade próxima interrogar os cidadãos, mas... — Ele contorceu a boca para o lado, então balançou a cabeça para alguma conversa silenciosa consigo mesmo. — Mas preciso de sua ajuda. Vai ser mais fácil para os mortais falar com você.
— Isso é um elogio?
O guerreiro revirou os olhos.
Quem sabe a visita do dia anterior para o complexo dos curandeiros não tivesse sido por desprezo. Talvez Rowan... estivesse tentando fazer algo legal por ela.
— Mude, ou levaremos duas vezes mais tempo.
— Não consigo. Sabe que não funciona assim.
— Não quer saber o quão rápido pode correr?
— Não posso usar minha outra forma em Adarlan de qualquer modo, então qual é o propósito? — O que era o início de toda uma questão complicada que Celaena ainda não tinha se permitido contemplar.
— O propósito é que está aqui agora, e não testou seus limites adequadamente. — Era verdade. Celaena não vira de verdade o que era capaz de fazer. — O propósito é que outra casca de corpo foi descoberta, e considero isso inaceitável.
Outro corpo – daquela criatura. Uma morte horrível e cruel. Era inaceitável.
Rowan deu um puxão forte e doloroso na trança da assassina.
— A não ser que ainda esteja com medo.
As narinas dela se dilataram.
— A única coisa que me assusta é quanto quero muito estrangular você.
Mais que isso, queria encontrar a criatura e destruí-la, tanto por aqueles que assassinara como pelo que fizera Celaena passar. Ela a mataria... devagar. Um tipo de pressão e calor terríveis começaram a se acumular sob a pele.
Rowan murmurou:
— Atice-a... a raiva.
Foi por isso que havia contado sobre o corpo? Desgraçado... desgraçado por manipulá-la, por fazê-la trabalhar dois turnos na cozinha. Contudo, o rosto do guerreiro estava indecifrável ao falar:
— Permita que seja uma lâmina, Aelin. Se não conseguir encontrar a paz, então ao menos cultive a raiva que guia você até a mudança. Receba isso e controle... não é sua inimiga.
Arobynn fizera todo o possível para que Celaena odiasse aquela herança, para que a temesse. O que tinha feito com ela, o que a assassina tinha se permitido virar...
— Isso não vai acabar bem — sussurrou ela.
Rowan não recuou.
— Veja o que quer, Aelin, e pegue. Não peça; não deseje. Tome.
— Tenho certeza de que o instrutor de magia comum não recomendaria isso para a maioria das pessoas.
— Você não é a maioria das pessoas, e acho que gosta disso. Se é um conjunto de emoções mais sombrias que vai ajudá-la a se transformar quando ordenado, então é o que usaremos. Pode chegar o dia em que descobrirá que a raiva não funciona mais, ou em que se tornará uma muleta, mas por enquanto... — Um olhar de contemplação. — Foi o denominador comum nas vezes em que se transformou, raiva de diversos tipos. Então, assuma isso.
Ele estava certo; e Celaena não queria pensar mais naquilo ou se deixar ficar tão enfurecida, não quando tinha ficado com raiva por tanto tempo. Por enquanto...
Respirou fundo. Então de novo. Ela deixou que o ódio a ancorasse, uma faca cortando a hesitação habitual e a dúvida e o vazio.
Celaena tocou a parede interna familiar; não, um véu, reluzindo com uma luz tênue. Todo aquele tempo, achou que buscava o poder no fundo, mas era mais como se o buscasse através. Não um desejo, mas um comando. Ela se transformaria – porque havia uma criatura à espreita naquelas terras que merecia pagar. Com um grunhido silencioso, a assassina empurrou a si mesma para além do véu, a dor irradiou por cada centímetro e poro conforme mudou de forma.
Um sorriso feroz e desafiador, então Rowan se moveu, tão rápido que Celaena mal conseguiu acompanhar quando ele surgiu do outro lado, puxando a trança dela de novo. Ao se virar, o guerreiro já havia sumido e... Ela gritou ao ser beliscada na lateral do corpo.
— Pare...
Rowan estava diante de Celaena agora, um convite selvagem nos olhos. Ela estivera estudando o modo como ele se movia, os truques e as indicações, o modo como presumia que Celaena reagiria. Assim, quando cruzou os braços, fingindo o chilique com que o guerreiro contava, ela esperou. Esperou, então...
Ele disparou para a esquerda para beliscá-la ou cutucá-la ou acertá-la, e a assassina se virou, golpeando a lateral de Rowan com o cotovelo e acertando o topo da cabeça com a outra mão. Ele parou subitamente e piscou algumas vezes.
Celaena sorriu maliciosamente.
Rowan exibiu os dentes com um sorriso feroz e assustador.
— Ah, é melhor correr agora.
Quando atacou, ela disparou pelas árvores.

***

Celaena suspeitava que Rowan a tivesse deixado ficar à frente durante os primeiros minutos, porque, embora se movesse mais rápido, mal conseguia se ajustar ao corpo transformado para saltar sobre rochas e árvores caídas. Ele dissera que estavam indo para sudoeste, e foi para lá que ela foi, desviando entre as árvores, o ódio se dissipando, tornando-se algo inteiramente diferente.
Rowan era um borrão prateado e branco ao lado e atrás de Celaena; sempre que se aproximava demais, ela desviava para o outro lado, testando os sentidos que diziam onde estavam as árvores sem que as visse – o cheiro de carvalho e musgo e coisas vivas, o frio da névoa passando entre os dois, como uma trilha que a jovem seguia.
Eles chegaram a uma planície, o chão liso sob as botas dela. Mais rápido; Celaena queria ver se conseguia ir mais rápido, se conseguia correr mais que o próprio vento.
Rowan surgiu à esquerda, e ela impulsionou os braços, as pernas, saboreando o fôlego nos pulmões – tranquila e calma, pronta para ver o que faria a seguir. Mais... aquele corpo queria mais.
Ela queria mais.
E então disparou com mais agilidade do que jamais tivera na vida, as árvores eram um borrão, o corpo imortal cantava conforme Celaena deixava que os ritmos se adequassem. Os pulmões poderosos engoliam o ar nebuloso, enchendo-se com o cheiro e o sabor do mundo, apenas instinto e reflexo a guiavam, diziam que ela poderia ir ainda mais rápido, os pés avançando pela terra argilosa passo a passo.
Deuses. Pelos deuses.
Celaena poderia ter voado, poderia ter disparado por causa do rompante súbito de êxtase no sangue, a mera liberdade concedida pela maravilha da criação que era o próprio corpo.
Rowan disparou até a assassina pelo lado direito, mas ela desviou de uma árvore com tanta facilidade que soltou um grito, então se atirou entre dois galhos longos pendurados, meros obstáculos que ultrapassou com habilidade felina.
O guerreiro estava ao lado dela de novo, disparando com um estalo de dentes, mas Celaena girou e saltou uma rocha, deixando que os movimentos que aprimorara como assassina se misturassem aos instintos do corpo feérico.
Ela poderia morrer de amor por aquela velocidade, aquela certeza nos ossos. Como tivera medo daquele corpo por tanto tempo? Mesmo a alma parecia mais solta. Como se tivesse sido trancafiada e enterrada, e somente agora começava a se libertar. Não era alegria, talvez nunca fosse, mas era um lampejo do que fora antes de o luto a dizimar tão completamente.
Rowan corria ao lado, porém não fez menção de segurá-la. Não, ele estava... brincando.
O guerreiro a olhou, a respiração ofegante, mas equilibrada. E podia ter sido o sol passando pelo dossel, mas Celaena jurava que tinha visto os olhos dele incandescentes com um brilho daquela mesma alegria feral. Poderia jurar que Rowan estava sorrindo.

***

Foram os 30 quilômetros mais rápidos da vida dela. Na verdade, os últimos 8 quilômetros foram mais lentos, e, quando Rowan os fez parar, ambos estavam ofegantes. Somente então, enquanto se encaravam entre as árvores, Celaena percebeu que a magia não tinha deflagrado uma vez sequer – não tinha sequer tentado tomar conta dela ou irromper. Ela conseguia sentir a magia esperando no estômago, morna, mas tranquila. Dormente.
Ela limpou o suor da testa, do pescoço, do rosto. Embora estivesse arfante, ainda poderia ter corrido durante quilômetros. Pelos deuses, se tivesse sido rápida daquele jeito na noite em que Nehemia...
Não teria feito diferença. A princesa orquestrara cada passo da própria destruição e teria encontrado outro modo. Também só fizera aquilo porque Celaena se recusara a ajudar... se recusara a agir. Ter aquele glorioso corpo feérico não mudava nada.
Ela piscou, percebendo que encarava Rowan e que qualquer satisfação vista no rosto dele tinha, de novo, se tornado gelo. Ele atirou alguma coisa para Celaena: a camisa que carregava.
— Troque de roupa.
O guerreiro se virou e tirou a própria camisa. As costas eram tão bronzeadas e cobertas de cicatrizes quanto o resto do corpo. Mas, ao ver aquelas marcas, Celaena não teve vontade de mostrar as próprias costas destruídas, então seguiu para as árvores até ter certeza de que ele não pudesse vê-la, e trocou de blusa.
Ao voltar para onde estava a mochila, Rowan atirou a ela um cantil de água, a qual Celaena bebeu. Tinha gosto... Conseguia sentir o gosto de cada camada de minerais e o gosto almiscarado do próprio cantil.
Quando chegaram à cidadezinha de telhados vermelhos, já podia respirar de novo.
Os dois descobriram rapidamente que era quase impossível conseguir quequalquer um falasse, principalmente com dois visitantes feéricos. A assassina pensou em voltar para a forma humana, mas com o sotaque e o humor cada vez pior, tinha quase certeza de que uma mulher de Adarlan não seria recebida de forma muito melhor que uma feérica. Janelas eram fechadas conforme passavam, provavelmente por causa de Rowan, que parecia nada menos que a morte encarnada. Contudo, ele foi surpreendentemente calmo com os aldeões de quem se aproximaram. O guerreiro não ergueu a voz, não grunhiu, não ameaçou. Ele não sorriu, mas, para Rowan, estava bem alegre.
Mesmo assim, não conseguiram chegar a lugar algum. Não, não tinham ouvido falar de um semifeérico desaparecido, ou de outros corpos. Não, não tinham visto pessoas estranhas espreitando. Não, animais de criação não estavam desaparecendo, embora houvesse um ladrão de galinhas a algumas cidades dali. Não, estavam perfeitamente seguros e protegidos em Wendlyn, e não gostavam de feéricos nem semifeéricos se metendo nos negócios deles também.
Celaena tinha desistido de flertar com o menino do estábulo da pousada, que tinha o rosto cheio de espinhas, o qual simplesmente encarara boquiaberto as orelhas e os caninos dela como se estivesse a um segundo de ser devorado vivo. Ela caminhou pela agradável rua principal, faminta e cansada e irritada por precisarem, de fato, dos colchonetes, porque o dono da pousada já havia informado que não tinham vagas. Rowan a alcançou, as nuvens de tempestade nos olhos diziam o bastante a respeito de como tinha sido a conversa com a senhora do bar.
— Eu poderia acreditar que era uma criatura semisselvagem se ao menos alguns deles soubessem que essas pessoas tinham desaparecido — ponderou Celaena. — Mas escolher consistentemente alguém cuja falta ninguém vai sentir ou reparar? Deve ser racional o bastante para saber quem escolher. O semifeérico só pode ser uma mensagem, mas qual? Para ficarmos longe? Então por que deixar os corpos?
Ela puxou a ponta da trança, parando diante da vitrine de uma loja de roupas. Vestidos simples, de cortes bem-feitos estavam à mostra, nada como a moda elegante e intricada de Forte da Fenda.
Celaena reparou nos olhos arregalados e na palidez da menina da loja um segundo antes que fechasse as cortinas. Bem...
Rowan riu com deboche, e a assassina se virou para ele.
— Está acostumado com isso, presumo?
— Muitos dos feéricos que se aventuram em terras mortais conquistaram a reputação de... tomarem o que quiserem. Isso ficou sem controle durante muitos anos, então embora nossas leis estejam mais rigorosas agora, o medo permanece.
Seria uma crítica a Maeve?
— Quem aplica essas leis?
Um sorriso sombrio.
— Eu. Quando não estou em campanha, minha tia me faz caçar os desobedientes.
— E matá-los?
O sorriso permaneceu.
— Se a situação pedir. Ou apenas arrastá-los de volta a Doranelle e deixar que Maeve decida o que fazer.
— Acho que prefiro morte por suas mãos a morrer pelas dela.
— Essa pode ser a primeira coisa sábia que já falou para mim.
— Os semifeéricos disseram que você tem outros cinco amigos guerreiros. Eles caçam com você? Com que frequência os vê?
— Eu os vejo sempre que a situação exige. Maeve os obriga a servi-la conforme acha necessário, como faz comigo. — Cada palavra foi mensurada. — É uma honra ser um guerreiro servindo ao círculo íntimo dela.
Celaena não sugerira o contrário, mas perguntou-se por que Rowan sentiu necessidade de acrescentar aquilo.
A rua ao redor estava vazia; até as barraquinhas de comida tinham sido abandonadas. Ela respirou fundo, farejando e... aquilo eram chocolates?
— Você trouxe dinheiro?
Ele ergueu as sobrancelhas, hesitante.
— Sim. Mas não vão aceitar suborno.
— Que bom. Mais para mim, então. — Celaena apontou para a placa bonita que oscilava à brisa do mar. Confeitaria. — Se não podemos conquistá-los com charme, podemos muito bem conquistá-los com nossos negócios.
— Por acaso não ouviu o que acabei... — Mas ela já havia chegado à loja, que tinha um cheiro divino e estava cheia de chocolates e doces e, pelos deuses, trufas de avelã. Embora a confeiteira tivesse ficado pálida ao ver os dois tomarem conta do espaço, Celaena deu seu melhor sorriso.
Por cima do cadáver dela que deixaria aquelas pessoas saírem impunes depois de fecharem cortinas em sua cara – ou deixaria pensarem que estava lá para saquear. Nehemia jamais permitira que os idiotas arrogantes e preconceituosos de Forte da Fenda a enxotassem de qualquer loja, restaurante ou casa.
E Celaena teve a sensação de que a amiga sentiria orgulho do modo como entrou de loja em loja naquela tarde, com a cabeça erguida, conquistando profundamente os aldeões com seu charme.
Uma vez que se espalhou a notícia de que os dois forasteiros feéricos gastavam prata em chocolate, depois em alguns livros e em pão e carne frescos, as ruas se encheram de novo. Os vendedores, carregando tudo, desde maçãs até temperos e relógios de bolso, estavam subitamente ansiosos por conversar, contanto que vendessem alguma coisa. Quando Celaena entrou na guilda de mensageiros abarrotada para mandar uma carta, conseguiu perguntar a alguns dos novatos se tinham sido contratados por alguém suspeito. Não tinham, mas ela deu gorjetas generosas ainda assim.
Rowan carregou prestativamente cada bolsa e caixa que a jovem comprou, exceto pelos chocolates, os quais a própria comeu conforme caminhava, um após o outro. Quando ofereceu um ao guerreiro, ele alegou não comer doces. Nunca. Não era surpreendente.
No fim das contas, os aldeões não sabiam de nada, o que Celaena supôs ser bom, porque significava que não tinham mentido antes, mas o vendedor de caranguejos disse, sim, que encontrara algumas facas jogadas – pequenas, mortalmente afiadas – nas redes recentemente. Ele as lançou de volta na água como um presente para o Deus do Mar. A criatura sugara aquelas pessoas até que secassem, não as cortara. Então provavelmente os soldados de Wendlyn tinham perdido um baú de facas em alguma tempestade.
Ao pôr do sol, o dono da pousada até se aproximou subitamente dos dois com uma suíte vaga. A melhor da cidade, alegava o homem, mas Celaena começava a achar que poderiam atrair o tipo de atenção errada e não estava com humor para ver Rowan estripar um potencial ladrão. Então educadamente recusou, e ambos saíram pela rua, a luz se tornando rapidamente densa e dourada conforme entraram na floresta mais uma vez.
Não foi um dia ruim, percebeu a assassina, ao cochilar sob o dossel da floresta. Nada mal mesmo.

***

A mãe a chamava de Coração de Fogo.
Mas para a corte dela, para seu povo, ela um dia seria rainha. Para eles, era a herdeira de duas linhagens magníficas e de um poder imenso que os manteria em segurança, assim como elevaria o reino ainda mais. Um poder que era um dom – ou uma arma.
Esse fora o debate quase constante durante os primeiros oito anos da vida dela. Conforme ficou mais velha, tornou-se evidente que, embora tivesse herdado a maior parte da aparência da mãe, recebera o temperamento volátil e a inconsequência do pai; as perguntas cautelosas ficaram mais frequentes, feitas por governantes em reinos distantes.
E, em dias como aquele, ela sabia que todos ouviriam falar do evento, para o bem ou para o mal.
Ela deveria estar dormindo, estava vestindo a camisola preferida, e os pais a haviam colocado na cama minutos antes. Por mais que tivessem negado, sabia que estavam exaustos e frustrados. Vira o modo como a corte agia e como seu tio tinha colocado a mão gentil no ombro do pai dela, dizendo que levasse a filha para a cama. Contudo, não conseguia dormir, não quando a porta estava entreaberta e era possível ouvir os pais no quarto, na suíte que compartilhavam nos níveis mais altos do castelo branco. Eles achavam que estavam falando baixinho, mas foi com ouvidos imortais que ela ouviu na quase escuridão.
— Não sei o que espera que eu faça, Evalin — disse seu pai. Ela quase o ouvia caminhando diante da enorme cama na qual tinha nascido. — O que está feito, está feito.
— Diga a eles que foi um exagero, diga que os bibliotecários estavam fazendo escândalo por nada — sussurrou a esposa. — Comece um boato de que outra pessoa fez isso, tentando colocar a culpa nela...
— Tudo isso é por causa de Maeve?
— Isso é porque ela vai ser caçada, Rhoe. Durante a vida toda, Maeve e outros vão caçá-la pelo poder que tem...
— E acha que concordar em deixar aqueles desgraçados a banirem da biblioteca vai evitar isso? Diga: por que nossa filha gosta tanto de ler?
— Isso não tem nada a ver.
— Diga. — Quando a mãe não respondeu, o pai resmungou. — Ela tem 8 anos... e me disse que seus amigos mais queridos são os personagens dos livros.
— Ela tem Aedion.
— Ela tem Aedion porque ele é a única criança neste castelo que não morre de medo de nossa filha, que não foi afastado dela porque a treinamos de forma relapsa. Ela precisa de treinamento, Ev... Treinamento e amigos. Se não tiver qualquer um dos dois, então vai se tornar aquilo que eles temem.
Silêncio e, em seguida, um bufar ao lado da cama dela.
— Não sou criança — sussurrou Aedion de onde estava sentado, em uma cadeira, os braços cruzados. Ele entrara ali de fininho depois que os pais foram embora... para conversar calmamente com a amiga, como sempre fazia quando ela estava chateada. — E não vejo por que é uma coisa ruim eu ser seu único amigo.
— Silêncio — murmurou ela de volta.
Embora Aedion não pudesse mudar de forma, o sangue misturado permitia que ouvisse a um alcance incrível e com precisão, melhor até que ela. E, embora fosse cinco anos mais velho, era seu único amigo. Ela amava a corte, sim, amava os adultos que a mimavam e paparicavamNo entanto, as poucas crianças que viviam no castelo se mantinham longe, apesar das súplicas dos pais delas. Como cães, ela pensava às vezes. As outras conseguiam sentir o cheiro das diferenças.
— Ela precisa de amigos da idade dela — continuou o pai. — Talvez devêssemos mandá-la para a escola. Cal e Marion estão falando em mandar Elide no ano que vem...
— Nada de escola. E certamente não aquela suposta escola de magia, quando está tão perto da fronteira e não sabemos o que Adarlan está planejando.
Aedion suspirou, as pernas apoiadas no colchão. O rosto bronzeado estava inclinado na direção da porta entreaberta, os cabelos dourados brilhavam levemente, mas havia uma ruga na testa do menino. Nenhum dos dois aceitava muito bem ser separado do outro, e, na última vez que um dos garotos do castelo o provocou por conta disso, Aedion passou um mês recolhendo bosta de cavalo por tê-lo espancado.
O pai dela suspirou.
— Ev, não me mate por isso, mas... não está tornando isso fácil. Para nós, ou para ela.
A mulher ficou em silêncio, e a menina ouviu um farfalhar de roupas, depois um murmúrio de “Eu sei, eu sei”. Então os pais começaram a falar baixo demais até para ouvidos feéricos.
Aedion resmungou de novo, os olhos – olhos iguais aos dela – reluzindo no escuro.
— Não entendo essa confusão. E daí que você queimou alguns livros? Aqueles bibliotecários mereceram. Quando formos mais velhos, talvez a gente queime tudo até desabar, juntos.
Ela sabia que o amigo falava sérioQueimaria a biblioteca, a cidade ou o mundo inteiro até virar cinzas se ela pedisse. Era o laço que tinham, marcado por sangue e cheiro, e outra coisa que a menina não conseguia entender. Uma ligação tão forte quanto aquela que a unia aos pais. Mais forte, em alguns sentidos.
Ela não respondeu, não porque não tivesse uma resposta, mas porque a porta rangeu e, antes que Aedion pudesse se esconder, o quarto se inundou com a luz do corredor.
A mãe cruzou os braços. O pai, no entanto, soltou uma gargalhada baixa, os cabelos castanhos iluminados pela luz do corredor, o rosto nas sombras.
— Típico — disse ele, desviando para o lado para abrir espaço a fim de que Aedion saísse. — Não precisa estar acordado ao alvorecer para treinar com Quinn? Você se atrasou cinco minutos esta manhã. Dois dias seguidos lhe garantirão as tarefas do estábulo. De novo.
Em um lampejo, o menino ficou de pé e saiu. Sozinha com os pais, ela desejou que pudesse fingir dormir, mas falou:
— Não quero ir embora para a escola.
O pai a levou para cama, cada centímetro do homem era o guerreiro que Aedion desejava ser. Um príncipe-guerreiro, era como ouvira as pessoas o chamarem – que um dia se tornaria um rei poderoso. Ela às vezes achava que o pai não tinha interesse em ser rei, principalmente nos dias em que a levava para as montanhas Galhada do Cervo e a deixava perambular pela floresta de Carvalhal em busca do Senhor da Floresta. Ele jamais parecia mais feliz que naqueles momentos e sempre parecia um pouco triste em voltar a Orynth.
— Você não vai embora para a escola — disse o pai, olhando por cima dos ombros largos para a esposa, que permaneceu à porta, o rosto ainda nas sombras. — Mas entende por que os bibliotecários agiram daquela forma hoje?
É claro que entendia. Ela se sentia terrível por ter queimado os livros. Fora um acidente, e sabia que o pai acreditava nela. A menina assentiu, falando:
— Desculpe.
— Não tem nada por que se desculpar — falou o pai, um grunhido na voz.
— Eu queria ser como os outros — respondeu ela.
Sua mãe permaneceu em silêncio, imóvel, mas o pai segurou a mão da filha.
— Eu sei, meu amor. Mas, mesmo que não tivesse um dom, ainda seria nossa filha... ainda seria uma Galathynius e a rainha deles, um dia.
— Não quero ser rainha.
O pai suspirou. Aquela era uma conversa que haviam tido antes. Ele acariciou o cabelo dela.
— Eu sei — disse o pai, de novo. — Durma agora, conversaremos sobre isso de manhã.
Não conversariam, no entanto. A menina sabia que não, porque sabia que não havia como escapar do destino, embora, às vezes, rezasse para os deuses que houvesse. Ela se deitou de novo, mesmo assim, deixando que o pai lhe beijasse a cabeça e murmurasse boa noite.
A mãe ainda não dissera nada, mas, quando o pai saiu, Evalin permaneceu, observando-a por um bom tempo. Enquanto caía no sono, a mãe saiu – e, quando se virou, a menina podia jurar que lágrimas reluziram no rosto pálido dela.

***

Celaena acordou sobressaltada, quase incapaz de se mover, de pensar. Devia ser o cheiro – o cheiro daquele corpo maldito, na véspera, que desencadeara o sonho. Foi doloroso ver o rosto dos pais, ver Aedion. Ela piscou, concentrando-se na respiração, até não estar mais naquele quarto lindo como uma caixa de joias, até o cheiro de pinho e neve no vento norte ter sumido e ela conseguir ver a névoa da manhã permeando o dossel de folhas acima. O musgo frio e úmido passava por suas roupas; o cheiro salgado do mar próximo permanecia espesso no ar. A assassina ergueu a mão para examinar a longa cicatriz sulcada em sua palma.
— Quer café da manhã? — perguntou Rowan, de onde estava agachado próximo à lenha apagada, a primeira fogueira que o vira montar. Ela assentiu, então esfregou os olhos com o dorso das mãos. — Então faça a fogueira — disse ele.
— Não pode estar falando sério. — O guerreiro não ousou responder.
Resmungando, Celaena se virou no colchonete até se sentar de pernas cruzadas, diante da lenha, estendendo a mão para a madeira.
— Apontar é uma muleta. Sua mente pode direcionar as chamas perfeitamente.
— Talvez eu goste de fazer cena.
Rowan lançou um olhar que a assassina interpretou como: Acenda o fogo. Agora.
Ela esfregou os olhos de novo e se concentrou na lenha.
— Calma — disse ele, e Celaena se perguntou se seria aprovação na voz dele quando a madeira começou a fumegar. — Uma faca, lembre. Você está no controle.
Uma faca, cortando um pedacinho de magia. Poderia dominar aquilo. Acender uma única fogueira.
Pelos deuses, ela estava tão pesada de novo. O sonho idiota – a lembrança, o que quer que fosse. Aquele dia seria difícil.
Um poço se escancarou dentro dela, a magia irrompeu antes que conseguisse gritar um aviso.
Ela incinerou toda a área ao redor.
Quando a fumaça e as chamas se apagaram graças ao vento de Rowan, ele apenas suspirou.
— Pelo menos não entrou em pânico e mudou de volta para a forma humana.
Celaena imaginou que fosse um elogio. A magia parecia uma libertação – um soco bem dado. A pressão sob a pele tinha diminuído.
Então ela apenas assentiu. Contudo, mudar de forma, ao que parecia, era o menor dos problemas.

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