Capítulo 29
Fora apenas um beijo, Sorscha dizia a si mesma desde aquele dia. Um beijo rápido e sem fôlego que fez o mundo girar. O ferro no melaço funcionou, embora tivesse incomodado Dorian o bastante para começarem a testar a dosagem... e modos de escondê-la. Se ele fosse pego ingerindo algum pó a todas as horas do dia, levantaria suspeitas.
Então virou um tônico contraceptivo diário. Porque ninguém acharia aquilo estranho; não com a reputação do rapaz. Sorscha ainda se reassegurava de que o beijo não significara nada além de um agradecimento ao chegar à porta da torre do príncipe, carregando a dose diária para ele. Ela bateu, e Dorian pediu que entrasse. O cão da assassina estava jogado na cama, enquanto o próprio príncipe estava deitado no sofá surrado. Ele se sentou, no entanto, sorrindo para Sorscha daquele jeito dele.
— Acho que encontrei uma combinação melhor, hortelã pode descer mais fácil que sálvia — explicou Sorscha, erguendo um frasco de líquido avermelhado.
Dorian seguiu em sua direção, mas havia algo no andar dele... movia-se meio sorrateiro, o que a fez enrijecer o corpo. Principalmente quando o príncipe apoiou o frasco e a encarou profundamente por um longo tempo.
— O que foi? — sussurrou a curandeira, recuando um passo.
Dorian segurou a mão dela, não com força o bastante para doer, mas o suficiente para que a impedisse de recuar.
— Você entende os riscos, mas mesmo assim me ajuda — disse o príncipe. — Por quê?
— É a coisa certa.
— A lei de meu pai diz o contrário.
O rosto de Sorscha corou.
— Não sei o que quer que eu diga.
As mãos do rapaz estavam frias quando tocaram as bochechas dela, os calos arranhando com leveza.
— Só quero agradecer — murmurou ele, aproximando o corpo. — Por me ver e não sair correndo.
— Eu... — Ela queimava de dentro para fora e se afastou, com força o bastante para fazê-lo soltar. Amithy estava certa, mesmo que fosse uma pessoa cruel. Havia muitas mulheres lindas por ali, e qualquer coisa além de um flerte poderia terminar mal. Dorian era o príncipe herdeiro, enquanto Sorscha não era ninguém. Ela indicou o cálice. — Se não for muito incômodo, Vossa Alteza — Dorian se encolheu ao ouvir o título —, mande notícias sobre como esse funciona para você.
Sorscha não ousou pedir dispensa ou se despedir ou qualquer coisa que pudesse mantê-la naquele quarto por mais um minuto. E Dorian não tentou impedi-la conforme a curandeira saiu, fechando a porta.
A jovem se recostou contra a parede de pedra da estreita plataforma das escadas, a mão no coração acelerado. Era a coisa inteligente a fazer, a coisa certa a fazer. Sorscha tinha sobrevivido tanto tempo e só sobreviveria ao caminho adiante se continuasse a passar despercebida, confiável, silenciosa.
Mas não queria passar despercebida, não por Dorian, não para sempre.
Ele a fazia querer rir e cantar e agitar o mundo com a própria voz.
A porta se abriu, e a curandeira o viu na soleira, solene e cauteloso.
Talvez não pudesse haver futuro, nenhuma esperança de algo mais, porém olhando para o rapaz parado ali, naquele momento, Sorscha quis ser egoísta e burra e impulsiva.
Tudo poderia dar errado no dia seguinte, mas precisava saber como seria, apenas por um tempo, pertencer a alguém, ser querida e adorada.
Dorian não se moveu, não fez nada a não ser encarar – vendo-a exatamente como ela o via – quando a curandeira o agarrou pelas lapelas do manto, puxou o rosto do príncipe e o beijou ferozmente.
***
Chaol mal conseguira se concentrar durante os últimos dias, graças à reunião que estava a alguns minutos de acontecer. Levara mais tempo do que ele antecipara até que Ren e Murtaugh estivessem, por fim, prontos para encontrá-lo; o primeiro encontro dos três desde a noite nos cortiços. O capitão precisou esperar pela próxima noite de folga, Aedion precisou encontrar um local seguro, então eles precisaram coordenar com os dois senhores de Terrasen. Chaol e o general deixaram o castelo separadamente; o capitão se odiou ao mentir para os homens a respeito de aonde ia – odiou que tivessem desejado que ele se divertisse, odiou que confiassem nele, o homem que iria se encontrar com seus inimigos mortais.
Chaol afastou esses pensamentos ao se aproximar do beco escuro a alguns quarteirões da pensão decrépita onde se encontrariam. Sob o manto de capuz pesado, estava mais armado que o habitual. Cada fôlego que tomava parecia curto demais. Um assobio de duas notas soou pela ruela, e Chaol o imitou. Aedion saiu caminhando pela névoa baixa vinda do Avery, o rosto escondido no capuz do próprio manto.
O general não trazia a Espada de Orynth. Em vez disso, uma diversidade de lâminas e facas de luta estava presa ao corpo – um homem capaz de entrar no inferno e sair sorrindo.
— Onde estão os outros? — disse Chaol, baixinho.
Os cortiços estavam silenciosos naquela noite, até demais para o gosto dele. Vestido como estava, poucos ousariam se aproximar, mas a caminhada pelas ruas tortas e escuras tinha sido perturbadora. Tanta pobreza e falta de esperança... e desespero. Isso tornava as pessoas perigosas, dispostas a arriscar qualquer coisa para conseguir mais um dia de vida.
Aedion se recostou contra a parede de tijolos em ruínas atrás deles.
— Não arranque a calça pela cabeça. Chegarão em breve.
— Já esperei tempo o suficiente por essa informação.
— Qual é a pressa? — perguntou Aedion, preguiçoso, avaliando o beco.
— Vou embora de Forte da Fenda em algumas semanas para retornar a Anielle. — O general não o encarou diretamente, mas Chaol sentiu um olhar observando-o por baixo do capuz escuro.
— Então dê um jeito de não ir... diga que está ocupado.
— Fiz uma promessa — respondeu o capitão. — Já negociei tempo, mas quero ter... feito alguma coisa pelo príncipe antes de partir.
O general se virou para ele então.
— Ouvi falar que não se entendia com seu pai; por que a mudança súbita?
Teria sido mais fácil mentir, mas Chaol falou:
— Meu pai é um homem poderoso, tem a atenção de muitos membros influentes da corte e está no conselho do rei.
Aedion soltou uma gargalhada baixa.
— Já bati boca com ele em mais de um conselho de guerra.
Chaol teria pago bastante para ver aquilo, mas não sorriu ao dizer:
— Foi a única forma de conseguir mandá-la a Wendlyn. — Ele explicou rapidamente o trato que fizera, e, quando terminou, Aedion soltou um longo suspiro.
— Nossa — falou o general, então balançou a cabeça. — Não achei que esse tipo de honra ainda existisse em Adarlan.
Chaol imaginou que fosse um elogio – e um grande elogio, vindo de Aedion.
— E quanto a seu pai? — disse o capitão, apenas para mudar o rumo da conversa para longe do vazio no peito. — Sei que sua mãe era parente de... dela, mas e quanto à linhagem de seu pai?
— Minha mãe jamais admitiu quem era meu pai, mesmo quando estava perecendo no leito de morte — contou Aedion, simplesmente. — Não sei se por vergonha, ou porque não conseguia se lembrar, ou para me proteger de alguma forma. Depois que fui trazido para cá, não me importei de verdade. Mas prefiro não ter pai a ter seu pai.
Chaol deu um risinho e poderia ter feito outra pergunta caso não tivesse ouvido o ruído de botas raspando na pedra na outra ponta do beco, seguido por uma respiração ofegante.
Com rapidez, Aedion levou duas facas às mãos, e o capitão sacou a própria espada – uma lâmina comum, sem marcas, que havia levado do arsenal – quando um homem cambaleou para o campo de visão deles.
O homem trazia um braço em volta do tronco, o outro o apoiava contra a parede de tijolos de um prédio abandonado. Aedion se moveu instantaneamente, facas embainhadas de novo. Apenas ao ouvir o general dizer o nome de Ren foi que Chaol correu na direção do jovem.
Ao luar, o sangue no manto de Ren era uma mancha reluzente e profunda.
— Onde está Murtaugh? — Aedion exigiu saber, passando o braço por baixo dos ombros do rapaz.
— Em segurança. — Ren ofegava, o rosto pálido como a morte. Chaol avaliou os dois lados do beco. — Fomos... seguidos. Então tentamos despistá-los. — O capitão ouviu, mais que viu, o jovem encolher o corpo. — Eles me encurralaram.
— Quantos? — perguntou Aedion, baixinho, embora Chaol quase pudesse ouvir a violência fervilhando na voz.
— Oito — disse Ren, sibilando de dor. — Matei dois, então fugi. Estão me seguindo.
Restavam seis. Se não estivessem feridos, provavelmente estavam por perto.
Chaol avaliou as pedras além de Ren. O ferimento no abdômen não devia ser profundo se tinha conseguido evitar que o fluxo de sangue deixasse um rastro. Mas, mesmo assim, devia ser doloroso, potencialmente fatal, caso tivesse perfurado o lugar errado.
Aedion enrijeceu o corpo, ouvindo algo que o capitão não podia ouvir. Silenciosamente e com cuidado, passou o ferido para os braços de Chaol.
— Há três barris a dez passos daqui — falou o general, com calma letal conforme encarava a entrada do beco. — Escondam-se atrás deles e fiquem de boca fechada.
Era tudo o que Chaol precisava ouvir quando pegou o peso de Ren e o arrastou até os enormes barris, colocando-o no chão. O rapaz segurou um gemido de dor, mas continuou imóvel. Havia uma pequena fenda entre dois dos barris pela qual dava para ver o beco, assim como os seis homens que entraram nele, quase em formação. Não conseguia distinguir mais que mantos escuros e capuzes.
Os homens pararam ao dar com Aedion de pé diante deles, ainda encapuzado. O general sacou as facas e murmurou:
— Nenhum de vocês vai deixar este beco vivo.
Eles não deixaram.
Chaol ficou maravilhado com as habilidades de Aedion – a velocidade e a destreza e a total confiança que faziam aquilo parecer uma dança brutal e impiedosa.
Acabou antes mesmo de realmente começar. Os seis agressores pareciam confortáveis com armas, mas, contra um homem com sangue feérico correndo nas veias, eram inúteis.
Não era surpreendente que o general tivesse sido promovido tão rapidamente de patente. Chaol jamais vira outro homem lutar daquele jeito. Apenas... apenas Celaena se aproximara. Não sabia dizer qual dos dois venceria se algum dia se enfrentassem, mas juntos... o coração gelou ao pensar nisso. Seis homens mortos em questão de minutos... seis.
Aedion não estava sorrindo quando voltou para o capitão e soltou um pedaço de tecido no chão diante deles. Até Ren, sem fôlego entre os dentes trincados, olhou.
Era um material preto, pesado – e estampado nele em linha escura, quase invisível, exceto pelo brilho da lua, estava uma serpente alada. A insígnia real.
— Não conheço esses homens — afirmou Chaol, mais para si mesmo que para alegar inocência. — Nunca vi esse uniforme.
— Ao que parece — disse o general, aquele ódio ainda fervilhando na voz enquanto inclinava a cabeça na direção de barulhos que o capitão não conseguia discernir com os ouvidos humanos —, há mais deles por aí, e estão vasculhando o bairro de porta em porta em busca de Ren. Precisamos de um lugar para nos esconder.
O rapaz ferido se segurou à consciência por tempo o bastante para responder:
— Sei onde.
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