Capítulo 30
Chaol prendeu a respiração durante a caminhada toda enquanto segurava um semiconsciente Ren com a ajuda de Aedion. Os três oscilavam e cambaleavam, parecendo, para todo mundo, bêbados em uma noite de aventuras nos cortiços.
As ruas ainda estavam cheias, apesar da hora, e uma das mulheres por quem passaram se esticou para agarrar o manto de Aedion, soltando uma fileira de palavras indecentes. Contudo, o general cuidadosamente se desvencilhou com a mão e falou:
— Não pago pelo que consigo de graça.
De alguma forma, pareceu uma mentira, pois Chaol não vira ou ouvira falar de Aedion compartilhar a cama de ninguém durante todas aquelas semanas. Mas talvez descobrir que Aelin estava viva tivesse mudado as prioridades dele.
O grupo chegou à casa de ópio que Ren citara entre lampejos de consciência, no momento em que os gritos dos soldados invadindo pensões e tabernas ecoaram pela rua. Sem esperar para ver quem eram, o capitão entrou pela porta de madeira entalhada. O fedor de corpos sujos, lixo e fumaça adocicada invadiu as narinas de Chaol. Até mesmo Aedion tossiu e deu ao rapaz ferido, que era quase um peso morto nos braços deles, um olhar de reprovação.
No entanto, a madame idosa se adiantou para cumprimentá-los, o longo manto e a sobrecapa oscilando com algum vento fantasma, levando-os às pressas pelo corredor com painéis de madeira, os pés leves sobre os tapetes gastos e coloridos. A mulher começou a recitar os preços, assim como os especiais da noite, mas Chaol precisou olhar apenas uma vez para os olhos verdes e inteligentes para entender que a mulher conhecia Ren – alguém que provavelmente construíra o próprio império ali em Forte da Fenda.
Ela os acomodou em uma alcova coberta com véu, cheia de almofadas de seda surradas, que fediam a fumaça adocicada e suor; depois de erguer as sobrancelhas para Chaol, o capitão entregou a ela três moedas de ouro. Ren gemeu de onde se esparramava nas almofadas, entre Aedion e Chaol, mas antes que o capitão conseguisse dizer uma palavra, a madame voltou com uma trouxa nos braços.
— Eles estão no estabelecimento ao lado — disse ela, o sotaque lindo e estranho. — Rápido.
A mulher levara uma túnica. Aedion foi rápido em despir Ren, cujo rosto estava mortalmente pálido, os lábios sem sangue. O general xingou quando viram o ferimento – um corte baixo na barriga.
— Se fosse mais profundo, a porcaria do intestino estaria pendurado para fora — disse Aedion, pegando uma faixa de tecido limpo com a madame e envolvendo-a ao redor do abdômen musculoso. Havia cicatrizes por todo o corpo de Ren. Se sobrevivesse, aquela provavelmente não seria a pior.
A senhora se ajoelhou diante de Chaol e abriu a caixa que tinha nas mãos. Três cachimbos agora estavam na mesa baixa diante deles.
— Precisam fingir — sussurrou ela, olhando por cima do ombro pelo véu preto e espesso, sem dúvida calculando quanto tempo tinham.
Chaol nem tentou protestar quando a mulher usou blush para avermelhar a pele ao redor dos olhos dele, aplicou creme e pó para retirar a cor do rosto, abriu alguns botões do manto e umedeceu seus cabelos.
— Deite, indolente e relaxado, mantendo o cachimbo na mão. Fume se precisar se acalmar. — Foi tudo o que ela disse antes de começar a trabalhar em Aedion, que tinha terminado de enfiar Ren nas roupas limpas.
Em momentos, os três estavam recostados nas almofadas fétidas, e a madame tinha saído com o manto ensanguentado.
A respiração de Ren estava complicada e irregular, e Chaol lutou contra a tremedeira nas próprias mãos quando a porta da frente se escancarou. Os pés leves da senhora passaram apressados para cumprimentar os homens. Embora o capitão fizesse um esforço para ouvir, Aedion parecia escutar sem problemas.
— Cinco de vocês, então? — cantarolou ela em voz alta, para que o grupo ouvisse.
— Estamos procurando um fugitivo. — Foi a resposta grunhida. — Saia do caminho.
— Certamente gostariam de descansar. Temos salas particulares para grupos, e são todos homens tão grandes. — Cada palavra foi ronronada, um banquete sensual. — É mais caro se trouxerem espadas e adagas, um risco, entende, quando a droga toma conta...
— Mulher, basta — disparou um homem.
Tecido se rasgou ao inspecionarem cada alcova coberta por véu. O coração estava acelerado, mas Chaol manteve o corpo inerte, mesmo quando estava doido para pegar a espada.
— Então vou deixar que trabalhem — disse ela, tímida.
Entre os três, Ren parecia tão zonzo que realmente poderia estar completamente drogado. Chaol apenas esperava que a própria atuação fosse convincente quando a cortina se abriu.
— É o vinho? — disse Aedion, arrastando a voz, semicerrando os olhos para os homens, o rosto lívido e os lábios abertos em um sorriso largo. Mal dava para reconhecê-lo. — Estamos esperando há vinte minutos, sabia?
Chaol deu um sorriso exausto para os seis homens que olhavam para dentro da alcova. Todos naqueles uniformes escuros, todos desconhecidos. Quem diabo eram eles? Por que Ren se tornara um alvo?
— Vinho — disparou Aedion, o filho mimado de um mercador, talvez. — Agora.
Os homens apenas xingaram o grupo e continuaram. Cinco minutos depois, tinham sumido.
***
A casa devia ser um ponto de encontro, pois Murtaugh os encontrou lá uma hora depois. A madame os levou ao escritório particular, onde foram forçados a amarrar Ren ao sofá surrado enquanto ela – com habilidade surpreendente – desinfetava, costurava e atava o ferimento horrível. O jovem sobreviveria, disse a mulher, mas a perda de sangue e a lesão o manteriam incapacitado por um tempo. Murtaugh caminhou de um lado para outro o tempo todo, até que Ren caísse em um sono profundo, cortesia de algum tônico que a senhora o fez tomar.
Chaol e Aedion estavam sentados na pequena mesa, apertados entre caixas e mais caixas de ópio empilhadas contra a parede. Ele não queria saber o que havia no tônico que Ren havia ingerido. Aedion observava a porta trancada, a cabeça inclinada como se ouvisse os sons da casa de ópio, enquanto dizia a Murtaugh:
— Por que estavam sendo seguidos e quem eram aqueles homens?
O velho continuava caminhando.
— Não sei. Mas sabiam onde nós dois estaríamos. Ren tem uma rede de informantes pela cidade. Qualquer um deles poderia ter nos traído.
A atenção do general permaneceu à porta, uma das mãos nas facas.
— Vestiam uniformes com a insígnia real, nem o capitão os reconheceu. Precisam ficar escondidos por um tempo.
O silêncio de Murtaugh era pesado demais. Chaol perguntou, baixinho:
— Para onde o levamos quando puder ser movido?
O velho parou de andar, os olhos cheios de tristeza.
— Não há um lugar. Não temos casa.
Aedion olhou com determinação para ele.
— Em que droga de lugar têm ficado durante esse tempo todo?
— Aqui e ali, invadindo prédios abandonados. Quando conseguimos trabalho, ficamos em pensões, mas ultimamente...
Não teriam acesso aos cofres dos Allsbrook, percebeu Chaol. Não se estavam se escondendo havia tantos anos. Mas sem-teto...
O rosto do general era uma máscara de desinteresse.
— E não tem um lugar em Forte da Fenda seguro o bastante para mantê-lo, para que se cure.
Não foi uma pergunta, mas Murtaugh assentiu mesmo assim. Aedion examinou o jovem, jogado no sofá escuro contra a parede mais afastada. A garganta se moveu uma vez, mas então o general disse:
— Conte ao capitão sua teoria sobre a magia.
Nas longas horas que se passaram enquanto Ren recuperava força o suficiente para ser movido, Murtaugh explicou tudo o que sabia. Contou sua história inteira, quase sussurrando às vezes – sobre os horrores dos quais tinham escapado e sobre como Ren ganhara cada uma das cicatrizes. Chaol entendeu por que o jovem ficara tão calado até então. A discrição o mantivera vivo. Murtaugh e Ren tinham descoberto que as diversas ondas do dia em que a magia sumiu formavam juntas um tipo de triângulo pelo continente. A primeira linha seguiu direto de Forte da Fenda para os desertos Congelados. A segunda desceu dos desertos Congelados até o limite da península Desértica. A terceira linha partiu de volta para Forte da Fenda. Um feitiço, acreditavam eles, fora a causa.
De pé em volta do mapa que tinha aberto, o general traçou com o dedo as linhas, diversas vezes, como se pensando em uma estratégia de batalha.
— Um feitiço enviado de pontos específicos, como um farol.
Chaol tamborilou as juntas dos dedos na mesa.
— Existe alguma forma de desfazê-lo?
Murtaugh suspirou.
— Nosso trabalho foi interrompido pela perturbação com Archer, e nossas fontes sumiram da cidade por temerem pelas próprias vidas. Mas tem que haver um jeito.
— Então, onde começamos a procurar? — perguntou Aedion. — De modo algum o rei deixaria pistas por aí.
O velho assentiu.
— Precisamos de testemunhas para confirmar o que suspeitamos, mas os lugares de onde achamos que se originou o feitiço estão ocupados pelas forças do rei. Estávamos esperando por um tipo de entrada.
Aedion deu um sorriso preguiçoso para Murtaugh.
— Não é à toa que ficava dizendo a Ren que fosse legal comigo.
Como se em resposta, o jovem lorde resmungou, lutando para recobrar a consciência. Será que tinha algum dia se sentido seguro ou em paz em qualquer momento dos últimos dez anos? Isso explicaria aquele ódio, aquele ódio inconsequente que corria nas veias de todos os corações jovens e partidos de Terrasen, inclusive em Celaena.
Chaol falou:
— Há um apartamento escondido em um armazém nos cortiços. É seguro e tem tudo de que precisa. São bem-vindos para ficar ali por quanto tempo for necessário.
O capitão sentiu que Aedion o observava com cautela. No entanto, Murtaugh franziu a testa.
— Por mais generoso que seja, não posso aceitar a oferta de ficar em sua casa.
— Não é minha casa — respondeu Chaol. — E acredite em mim, a dona não vai se importar nem um pouco.
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