Capítulo 35
As quatro palavras que saíram da boca de Celaena a seguir foram tão chulas que Luca engasgou. No entanto, ela não se moveu quando uma imensa linha branca pontiaguda brilhou perturbadoramente longe daquele olho vermelho.
— Saia do gelo agora — sussurrou Celaena para o menino.
Porque aquela linha branca pontiaguda... aquilo eram dentes. Dentes grandes, do tipo que arrancam um braço fora com uma mordida. E estavam subindo das profundezas, na direção do buraco que ela fizera. Era por isso que não havia esqueletos – apenas as armas que não ajudaram os tolos que entraram naquela caverna.
— Pelos deuses — falou Luca, olhando de trás de Celaena. — O que é isso?
— Cale a boca e vá — ciciou ela.
Na margem, os olhos de Rowan estavam arregalados, o rosto, contraído sob a tatuagem. O guerreiro não tinha percebido que o lago não estava vazio.
— Agora, Luca — grunhiu Rowan, com a espada em punho e a lâmina que tirara do chão ainda embainhada na outra mão.
A coisa nadava na direção deles, preguiçosamente. Curiosa. Conforme se aproximou, Celaena conseguiu discernir um corpo serpenteante, tão pálido quanto as pedras no fundo do lago. Ela jamais vira algo tão enorme, tão antigo e... e só havia uma fina camada de gelo separando-a daquilo.
Quando Luca começou a tremer, a pele bronzeada empalidecendo, a assassina ficou de pé e o gelo rangeu.
— Não olhe para baixo — disse ela, pegando o cotovelo do jovem. Uma trilha de gelo mais espesso endureceu sob os pés deles e se expandiu, formando um caminho até a margem. — Vá — ordenou Celaena, dando um leve empurrão no rapaz, que disparou em um deslize ágil, arrastando os pés. A jovem deixou que ele se adiantasse, dando tempo para que pudesse vigiá-lo pelas costas, e olhou para baixo de novo.
Ela engoliu o grito quando uma cabeça enorme, coberta de escamas, a encarou de volta. Não era um dragão ou uma serpente alada, não era cobra ou peixe, mas algo entre um e outro. Tinha um olho faltando, a pele com cicatrizes ao redor da órbita vazia. Qual criatura dos infernos teria feito aquilo? Havia algo pior lá embaixo, nadando no coração das montanhas? É claro, é claro que Celaena seria deixada desarmada no centro de um lago cheio de armas.
— Mais rápido — disparou Rowan.
Luca já estava a meio caminho da margem.
A assassina disparou no mesmo deslize com os pés arrastados de Luca, não confiando em si mesma para ficar de pé caso corresse. No momento em que deu o terceiro passo, um lampejo branco como osso disparou das profundezas, girando como uma serpente ao dar o bote.
A longa cauda chicoteou o gelo, e o mundo quicou.
Celaena foi jogada pelos ares, as pernas falhando quando o gelo se ergueu por baixo, fazendo seu corpo cair de quatro. Ela conteve a magia que subiu para proteger, queimar e ferir. A jovem escorregou e desviou para o lado conforme a cabeça coberta de escamas e chifres golpeou contra o gelo próximo aos pés dela.
A superfície deu um tranco. Mais longe, mas se aproximando, o gelo estava se partindo. Era como se toda a concentração de Rowan estivesse agora sendo usada para manter uma estreita ponte de gelo congelada entre Celaena e a margem.
— Arma — disse ela, sem fôlego, sem ousar tirar a atenção da criatura.
— Corra — disparou Rowan, e a assassina ergueu a cabeça por tempo o bastante para ver o guerreiro jogar a lâmina que tinha encontrado no gelo, um vento forte fazendo-a girar em sua direção.
Luca abandonou o cobertor, correndo com os pés patinando pelo chão, e Celaena pegou a espada de cabo dourado enquanto o seguia. Um rubi do tamanho de um ovo de galinha estava incrustado no cabo, e, apesar da idade da bainha, a lâmina reluziu quando ela desembainhou a arma, como se tivesse sido recém-polida. Alguma coisa caiu da bainha no gelo com um tilintar – um anel de ouro simples. Celaena o pegou, enfiando no bolso, e correu mais rápido enquanto...
O gelo se ergueu de novo, o bum daquela cauda poderosa foi tão assustador quanto a superfície que se movia sob Celaena. Ela ficou de pé dessa vez, flexionando os joelhos ao segurar a espada, uma parte de si maravilhada com o equilíbrio e a beleza da arma; mas Luca, escorregando e deslizando, caiu. A assassina chegou até o jovem em alguns segundos, levantando-o pela parte de trás do manto e segurando com força conforme o gelo subia de novo e de novo e de novo.
Eles passaram da inclinação do lago, e Celaena quase gemeu de alívio ao ver o leito de pedra pálida sob os pés. O gelo atrás explodiu, e a água congelada os encharcou, então...
Celaena não parou quando narinas bufaram. Não parou de puxar Luca até Rowan cuja testa brilhava com suor conforme garras imensas raspavam o gelo, sulcando quatro marcas profundas.
A assassina arrastou o rapaz pelos últimos 9 metros, então 5 metros, então eles estavam na margem e foram até o guerreiro, que soltou um suspiro, estremecendo. Celaena se virou a tempo de ver algo saído de um pesadelo tentando subir no gelo, com o único olho vermelho selvagem de fome, os dentes enormes prometendo uma morte cruel e fria. Quando o suspiro de Rowan terminou, o gelo derreteu e a criatura afundou.
De volta à terra firme, subitamente ciente de que o gelo era também um obstáculo, Celaena agarrou mais uma vez Luca, que parecia prestes a vomitar, e disparou da caverna. Nada impedia que a criatura voltasse a subir, e a espada era tão útil quanto um palito de dente contra ela. Quem sabia com que rapidez o animal podia se mover em terra?
Luca entoava uma corrente de orações a diversos deuses quando Celaena o puxou pela trilha rochosa em direção ao exterior, para o sol brilhante da tarde, tropeçando quase às cegas até que chegassem ao bosque úmido, desviando de árvores em grande parte devido à sorte, mais e mais rápidos colina abaixo, então...
Um rugido estremeceu as pedras, fazendo os pássaros levantarem voo e as folhas farfalharem. Contudo, era um rugido de ódio e fome; não de triunfo. Como se a criatura tivesse chegado à entrada da caverna e, depois de milênios no frio e no molhado, não suportasse o sol. Conforme continuavam correndo do barulho estrondoso, Celaena não quis pensar a respeito do que poderia ter acontecido caso fosse noite. O que ainda poderia acontecer quando anoitecesse.
Após um tempo, sentiu Rowan atrás deles. No entanto, a assassina só se importava com a carga mais jovem, que arfou e xingou durante o caminho todo de volta à fortaleza.
***
Quando Defesa Nebulosa estava à vista, Celaena disse apenas uma coisa a Luca antes de mandá-lo seguir em frente: que ficasse de boca calada a respeito do que tinha acontecido na caverna. Assim que os ruídos do rapaz tropeçando pelo bosque cessaram, ela se virou.
Rowan estava de pé ali, também ofegante, a espada agora embainhada.
Celaena cravou a espada nova na terra, o rubi no cabo brilhando sob um raio de sol.
— Vou matar você — grunhiu ela, disparando contra Rowan.
Mesmo com Celaena no corpo feérico, o guerreiro era mais rápido e mais forte, então desviou com facilidade fluida. Cair de rosto na árvore era melhor que colidir com as muralhas de pedra da fortaleza, embora não muito melhor. Os dentes tiniram, mas ela se virou e o atacou de novo, agora tão perto que os dentes dele se projetaram. Rowan não conseguiu se afastar quando Celaena o segurou pela frente do casaco, prendendo-se ali.
Ah, acertá-lo no rosto era bom, mesmo que os nós dos dedos tivessem se ferido e latejassem.
O guerreiro grunhiu e a atirou ao chão. Celaena ficou sem ar no peito, e o sangue que escorria pelo nariz voltou pela garganta. Antes que Rowan pudesse sentar sobre a assassina, ela prendeu as pernas em volta do corpo dele, empurrando com cada gota daquela força imortal. E, simples assim, Rowan ficou preso ao chão, os olhos se arregalaram com o que só poderia ser fúria e surpresa.
Celaena bateu nele mais uma vez, as juntas dos dedos urravam de dor.
— Se algum dia envolver mais alguém nisso — disse ela, ofegante, golpeando a tatuagem dele, aquela tatuagem dos infernos. — Se algum dia colocar mais alguém em perigo do modo como fez hoje... — O sangue de seu nariz pingava no rosto do guerreiro, misturando-se, percebeu ela com satisfação, ao sangue dos golpes que acertara nele. — Vou matar você. — Outro ataque, com o dorso da mão, então ocorreu vagamente a Celaena que Rowan tinha ficado imóvel, aceitando a surra. — Vou arrancar a porcaria de sua garganta. — A assassina exibiu os caninos. — Entendeu?
Ele se virou de lado para cuspir sangue.
O sangue de Celaena latejava, de forma tão selvagem que cada ínfima restrição trancada em si se partiu. Ela lutou contra aquilo, mas a distração lhe custou. Rowan se moveu, em seguida ela estava debaixo dele de novo. Celaena tinha mutilado o rosto dele, mas o guerreiro não pareceu se importar ao grunhir:
— Vou fazer o que eu quiser.
— Você vai manter outras pessoas fora disso! — gritou ela, tão alto que os pássaros pararam de piar. Celaena se debateu contra Rowan, segurando os pulsos dele. — Ninguém mais!
— Diga por quê, Aelin.
Aquele nome desgraçado... A jovem cravou as unhas nos pulsos dele.
— Porque estou cheia disso! — Ela estava engolindo ar, cada respiração a fazia estremecer conforme a percepção terrível que segurava desde a morte de Nehemia veio à tona. — Eu disse a ela que não iria ajudar, então ela orquestrou a própria morte. Porque achou... — Celaena riu, um som horrível e selvagem. — Achou que ao morrer me faria entrar em ação. Achou que eu, de alguma forma, poderia fazer mais que ela, que ela valia mais morta. E mentiu... sobre tudo. Mentiu para mim porque eu era uma covarde, e a odeio por isso. Eu a odeio por ter me deixado.
Rowan ainda a mantinha presa, o sangue quente pingando no rosto da jovem.
Ela havia falado. Falara as palavras com as quais estava engasgando havia semanas e semanas. O ódio saía como uma onda se afastando do litoral, e a jovem soltou os pulsos de Rowan.
— Por favor — pediu Celaena, sem fôlego, sem se importar por estar implorando — por favor, não envolva mais ninguém nisso. Farei qualquer coisa que me pedir. Mas esse é meu limite. Qualquer coisa menos isso.
Os olhos de Rowan estavam enigmáticos quando ele finalmente soltou os braços de Celaena, que ergueu o olhar para o dossel das árvores. Não choraria na frente dele, não de novo.
O guerreiro se afastou, o espaço entre os dois agora era tangível.
— Como ela morreu?
Celaena permitiu que a umidade nas costas passasse para dentro dela, que resfriasse os ossos.
— Ela manipulou um conhecido em comum para que pensasse que precisava matá-la para seguir com os próprios planos. Ele contratou um assassino, se certificou de que eu não estaria por perto, então a assassinou.
Ah, Nehemia. A princesa tinha feito tudo por uma esperança tola, não percebeu que desperdício foi. Poderia ter se aliado ao perfeito Galan Ashryver e salvado o mundo; ter encontrado um herdeiro realmente útil para o trono.
— O que aconteceu com os dois homens? — Uma pergunta fria.
— O assassino eu cacei e deixei em pedaços em um beco. E o homem que o contratou... — O sangue nas mãos, nas roupas, nos cabelos de Celaena, o olhar horrorizado de Chaol. — Eu o estripei e atirei o corpo em um esgoto.
Eram duas das piores coisas que tinha feito por puro ódio e vingança e revolta. Ela esperou pelo sermão, mas o guerreiro apenas disse:
— Que bom.
Celaena ficou tão surpresa que olhou para Rowan – então viu o que fizera. Não o rosto já ferido e ensanguentado, ou o casaco rasgado, agora cheio de lama. Mas bem ali onde havia segurado o antebraço dele, as roupas estavam queimadas, a pele por baixo estava coberta de machucados raivosos e vermelhos.
Impressões de sua mão. Celaena queimara a tatuagem do braço esquerdo do feérico. Ela levantou em um instante, perguntando a si mesma se deveria se ajoelhar e implorar por perdão em vez disso.
Devia ter doído horrores. No entanto, o guerreiro aceitara tudo – a surra, a queimadura – enquanto ela soltava aquelas palavras que tinham embaçado sua razão durante tantas semanas.
— Eu... desculpe — começou Celaena, mas ele ergueu a mão.
— Não peça desculpas — disse Rowan — por defender pessoas com quem se importa.
Ela imaginou que fosse o máximo de desculpas que jamais receberia dele.
Celaena assentiu, e aquela resposta foi suficiente.
— Vou ficar com a espada — falou Celaena, arrancando-a da terra.
Seria difícil encontrar uma melhor em qualquer lugar do mundo.
— Você não conquistou o direito a ela. — Rowan ficou calado, então acrescentou: — Mas considere um favor. Deixe em seus aposentos enquanto estiver treinando.
Celaena teria replicado, mas ele também estava cedendo. Ela se perguntou se Rowan cedera alguma vez no último século.
— E se aquela coisa seguir nosso rastro até a fortaleza quando a escuridão chegar?
— Mesmo que siga, não pode passar pelas defesas. — Ao vê-la erguer as sobrancelhas, Rowan disse: — As pedras ao redor da fortaleza têm um feitiço entre elas para manter inimigos do lado de fora. Até a magia é repelida ali.
— Ah. — Bem, isso explicava por que chamavam de Defesa Nebulosa. Um silêncio tranquilo, até agradável, recaiu entre os dois conforme caminharam. — Sabe — falou Celaena, com malícia —, já é a segunda vez que você estraga meu treinamento com suas tarefas. Tenho quase certeza de que isso torna você o pior instrutor que já tive.
Rowan a olhou de esguelha.
— Fico surpreso por ter levado tanto tempo para reparar nisso.
Ela riu com deboche. Então, ao se aproximarem da fortaleza, as tochas e as velas se acenderam, como que para lhes dar boas-vindas ao lar.
***
— Nunca vi algo tão deprimente — sussurrou Emrys quando Rowan e Celaena entraram na cozinha. — Tem sangue e terra e folhas em cada centímetro de vocês dois.
De fato, eram algo notável, os rostos de ambos estavam inchados e cortados, cobertos com o sangue um do outro; os cabelos, uma bagunça; e Celaena mancava de leve. Os nós dos dedos estavam abertos, e o joelho latejava por um ferimento que ela não se lembrava de ter sofrido.
— Piores que gatos de beco, brigando o dia e a noite inteiros — comentou o velho, batendo com duas tigelas de ensopado na mesa de trabalho. — Comam, os dois. E então se limpem. Elentiya, está liberada da cozinha esta noite e amanhã. — Celaena abriu a boca para protestar, mas ele ergueu a mão. — Não quero que sangre em tudo. Vai dar mais trabalho do que vale.
Encolhendo o corpo, ela desabou ao lado de Rowan no banco e xingou cruelmente a dor na perna, no rosto, nos braços. Xingou o insuportável sentado ao seu lado.
— Aproveite para limpar a boca também — disparou Emrys.
Luca estava encolhido perto da lareira, de olhos arregalados e fazendo um gesto preciso de corte no pescoço, como se para avisar Celaena de alguma coisa.
Até mesmo Malakai, que estava sentado do outro lado da mesa com duas sentinelas cansadas, observava a jovem com as sobrancelhas erguidas.
Rowan já estava curvado sobre a mesa, devorando o ensopado. Celaena olhou de novo para Luca, que batia freneticamente nas orelhas.
Ela não tinha voltado à forma humana. E... bem, agora todos tinham reparado, mesmo com o sangue, a terra e as folhas. Malakai a encarou, e Celaena o desafiou – apenas desafiou o homem a dizer alguma coisa. Mas ele deu de ombros, voltando a comer. Então não foi mesmo uma surpresa. Ela comeu um pouco do ensopado e precisou conter um gemido. Eram os sentidos feéricos ou a comida estava ainda mais deliciosa naquela noite?
Emrys observava da lareira, e Celaena deu a ele aquele olhar desafiador também. Ela abriu novamente aquele véu interno, sentindo dor ao voltar à forma mortal. No entanto, o velho levou um pedaço de pão para Celaena e Rowan, então falou:
— Não faz diferença para mim se suas orelhas estão pontudas ou arredondadas, ou como são seus dentes. Mas — acrescentou ele, olhando para Rowan — não posso negar que fico feliz por ver que acertou alguns socos desta vez.
A cabeça do guerreiro se ergueu da tigela, e o velho apontou uma colher para ele.
— Não acham que já basta de se surrarem? — Malakai enrijeceu o corpo, mas seu parceiro continuou: — Que bem faz, a não ser me dar uma criada emburrada cujo rosto assusta nossas sentinelas? Acham que algum de nós gosta de ouvir vocês dois xingando e gritando toda tarde? A linguagem que usam é suficiente para fazer todo o leite de Wendlyn azedar.
Rowan abaixou a cabeça, resmungando algo para o ensopado.
Pela primeira vez em muito, muito tempo, Celaena sentiu os cantos da boca se erguerem.
E foi então que ela caminhou até o velho... e se ajoelhou. Pediu desculpas profusamente. Para Emrys, para Luca, para Malakai. Pediu desculpas porque eles mereciam. Os três aceitaram, mas Emrys ainda parecia cauteloso. Até mesmo magoado. A vergonha do que dissera para aquele homem, para todos eles, permaneceria com Celaena por um tempo.
Embora tivesse feito seu estômago se revirar e as palmas das mãos suarem, embora não tivessem mencionado nomes, Celaena não ficou surpresa quando o velho contou que os feéricos mais velhos sabiam quem ela era e que a mãe dela trabalhara para ajudá-los. Contudo, a assassina ficou surpresa quando Rowan tomou um lugar à pia para ajudar na limpeza depois da refeição noturna.
Trabalharam em um silêncio tranquilo. Ainda havia verdades que Celaena não confessara, manchas na alma que ainda não conseguia explorar ou expressar. Mas talvez... talvez Rowan não desse as costas quando ela encontrasse coragem para contar.
À mesa, Luca sorria com satisfação. Apenas ver aquele sorriso – aquela pequena prova de que os eventos do dia não o tinham assustado completamente – fez com que Celaena olhasse para Emrys e dissesse:
— Tivemos uma aventura hoje.
Malakai apoiou a colher, falando:
— Me deixe adivinhar: teve algo a ver com aquele rugido que causou o pandemônio entre os animais de criação.
Embora não tivesse sorrido, os olhos da assassina se enrugaram.
— O que sabe sobre uma criatura que mora no lago sob... — Celaena olhou para Rowan para que ele terminasse.
— A montanha Careca. Ele não pode conhecer essa história — disse o guerreiro. — Ninguém conhece.
— Sou um Contador de Histórias — retrucou Emrys, encarando Rowan com toda a ira de uma das miniaturas de ferro sobre a lareira. — E isso quer dizer que os contos que coleciono podem não vir de bocas feéricas ou humanas, mas os ouço mesmo assim. — Ele se sentou à mesa, apoiando as mãos diante do corpo. — Ouvi uma história, há muitos anos, de um tolo que achou que poderia atravessar as montanhas Cambrian e entrar no reino de Maeve sem convite. Ele estava voltando, quase sem vida graças aos lobos selvagens da rainha nas passagens, então nós o trouxemos até aqui enquanto chamávamos os curandeiros.
Malakai murmurou:
— Então foi por isso que não deixou o homem em paz. — Um brilho naqueles olhos velhos, e Emrys deu ao parceiro um sorriso irônico.
— Ele estava com uma infecção violenta, então, na época, achei que poderia ter sido uma alucinação, mas o homem me contou que encontrou uma caverna na base da montanha Careca. Ele acampou ali porque estava chovendo e fazia frio, mas planejava sair com a primeira luz do dia. Mesmo assim, sentiu que algo o observava do lago. O sujeito cochilou, acordando apenas porque as ondas batiam contra a margem, ondas do centro do lago. E logo além da luz da fogueira, bem nas profundezas, viu algo nadando. Maior que uma árvore ou qualquer besta que já tivesse visto.
— Ah, era horrível — interrompeu Luca.
— Você disse que estava fora com Bas e os outros batedores, patrulhando a fronteira hoje! — grunhiu Emrys, então deu a Rowan um olhar que sugeria que seria bom que o guerreiro testasse a próxima refeição para ver se tinha veneno.
O velho pigarreou e logo encarou a mesa de novo, perdido nos pensamentos.
— O que o tolo aprendeu naquela noite foi o seguinte: a criatura era quase tão velha quanto a própria montanha. Ela alegava ter nascido em outro mundo, mas tinha entrado neste de fininho quando os deuses não estavam olhando. Tinha caçado feéricos e humanos até que um poderoso guerreiro feérico a desafiou. E, antes de o guerreiro terminar, ele arrancou um dos olhos da criatura, por desprezo ou diversão, e a amaldiçoou, de modo que, enquanto a montanha estivesse erguida, a besta seria forçada a viver sob ela.
Um monstro de outro mundo. Será que tinha conseguido entrar durante as guerras dos valg, quando demônios abriam e fechavam portais para outros mundos à vontade? Quantas das criaturas terríveis que viviam nessa terra só estavam ali por causa daquelas batalhas antigas pelas chaves de Wyrd?
— Então, ele tem morado no labirinto de cavernas submersas sob a montanha. Não tem nome, pois esqueceu como se chamava havia muito tempo, e aqueles que o encontram não voltam para casa.
A assassina esfregou os braços, encolhendo o corpo quando a pele cortada dos nós dos dedos se esticou com o movimento. Rowan encarava Emrys diretamente, a cabeça inclinada muito de leve para o lado. O guerreiro olhou para Celaena, como se para se certificar de que ela ouvia, e perguntou:
— Quem foi o guerreiro que arrancou o olho dele?
— O tolo não sabia, e a besta também não. Mas a língua que falava era feérico, uma forma arcaica do velho idioma, quase indecifrável. A criatura se lembrava do anel de ouro que ele levava, mas não de sua aparência.
Celaena precisou de cada grama de controle para não pegar do bolso o anel que tinha colocado ali, ou para não examinar a espada que havia deixado à porta, assim como o rubi que talvez nem fosse um rubi. Mas era impossível... coincidência demais.
Ela poderia não ter resistido à vontade de olhar caso Rowan não tivesse estendido a mão para pegar o copo d’água. Ele escondeu bem, e Celaena não achou que mais alguém tivesse notado, mas ao roçar na manga do casaco, ele se encolheu, muito de leve. Pelas queimaduras que ela causara. Estavam com bolhas mais cedo, a dor devia ser lancinante agora.
Emrys encarou o príncipe.
— Chega de aventuras.
Rowan olhou para Luca, que parecia prestes a explodir com indignação.
— Concordo.
O velho não desistiu.
— E chega de brigas.
Rowan encarou Celaena sobre a mesa. A expressão não dizia nada.
— Tentaremos.
Até mesmo Emrys considerou aquilo uma resposta aceitável.
***
Apesar da exaustão que recaiu sobre ela como uma parede, Celaena não conseguiu dormir. Continuava pensando na criatura, na espada e no anel que tinha examinado por uma hora sem descobrir nada, e o controle, embora tênue, que conseguira ter no gelo. No entanto, volta e meia retornava ao que fizera a Rowan – à gravidade com que o tinha queimado.
Sua tolerância à dor deve ser imensa, pensou Celaena, quando se virou na cama, encolhida devido ao frio no quarto. Ela olhou para a lata de sálvia. Ele deveria ter ido a um curandeiro ver as queimaduras. Revirou-se por mais cinco minutos antes de colocar as botas, pegar a lata e sair. Provavelmente levaria uma bronca de novo, mas não conseguiria um minuto de sono se estivesse ocupada demais se sentindo culpada. Pelos deuses, como se sentia culpada.
Ela bateu de leve à porta, meio que esperando que Rowan não estivesse lá.
Contudo, o príncipe disse, irritado:
— O quê? — Então Celaena se encolheu e entrou.
O quarto de Rowan era aconchegante e quente, talvez um pouco velho e desgastado, principalmente os tapetes surrados jogados por cima da maior parte do piso de pedra cinza. Uma enorme cama com dossel ocupava muito do espaço, uma cama que ainda estava feita... e vazia. Rowan estava sentado à escrivaninha, diante da lareira entalhada, sem camisa e examinando o que parecia ser um mapa assinalado com os locais daqueles corpos.
Os olhos dele exibiram irritação, mas Celaena o ignorou enquanto avaliava a enorme tatuagem que descia do rosto até o pescoço e os ombros, cobrindo todo o braço esquerdo, até as pontas dos dedos. Não olhara com atenção naquele dia no bosque, mas agora ficava maravilhada com as linhas lindas e contínuas – exceto pela queimadura em formato de algema no pulso dele. Nos dois pulsos.
— O que quer?
Celaena não tinha visto o corpo de Rowan de perto antes também. O peito – bronzeado o bastante para sugerir que passava bastante tempo sem camisa – era esculpido com músculos e coberto de cicatrizes espessas. De lutas ou batalhas ou sabiam os deuses o quê. O corpo de um guerreiro que Rowan tivera séculos para cultivar.
Celaena atirou a sálvia para ele.
— Achei que iria querer isto.
Rowan pegou a lata com uma das mãos, mas os olhos permaneceram nela.
— Eu mereci.
— Não quer dizer que eu não possa me sentir mal.
O guerreiro virou a lata diversas vezes entre os dedos. Havia uma cicatriz especialmente longa e feia do lado direito do peito – de onde seria?
— Isso é um suborno?
— Devolva, se vai me encher o saco. — Celaena estendeu a mão.
No entanto, Rowan fechou os dedos ao redor da lata, então a apoiou na escrivaninha, falando:
— Você sabe que pode se curar, não é? E me curar também. Nada é a coisa mais importante, mas tem esse dom.
Ela sabia... mais ou menos. A magia de Celaena tinha curado os próprios ferimentos às vezes, sem que tivesse ciência.
— É... é a afinidade com a gota d’água que herdei da linhagem de Mab. — O fogo fora o dom da linhagem de seu pai. — Minha mãe — as palavras a deixavam enjoada, mas Celaena as disse, por algum motivo — me contou que a gota d’água em minha magia era minha salvação, e o senso de autopreservação. — Um aceno de cabeça de Rowan, e ela admitiu: — Eu queria aprender a usar como os outros curandeiros... há muito tempo, quero dizer. Mas nunca me permitiram. Disseram... bem, não seria tão útil assim, pois eu não tinha muito, e rainhas não se tornam curandeiras. — Ela devia parar de falar.
Por algum motivo, o estômago de Celaena se apertou quando Rowan respondeu:
— Vá dormir. Como está banida da cozinha amanhã, vamos treinar ao alvorecer. — Bem, certamente merecia aquela dispensa depois de tê-lo queimado daquela forma. Então a jovem se virou, talvez parecendo tão patética quanto se sentia, porque subitamente Rowan disse: — Espere. Feche a porta.
Ela obedeceu. O guerreiro não deu a Celaena licença para se sentar, então ela se recostou à porta de madeira e esperou. Ele ficou de costas, e a assassina observou os músculos poderosos se expandirem e contraírem quando ele respirou fundo. Depois de novo. Então...
— Quando minha parceira morreu, levei muito, muito tempo para retornar.
Celaena demorou para pensar no que dizer.
— Há quanto tempo?
— Duzentos e três anos e 27 dias atrás. — Rowan indicou a tatuagem no rosto, no pescoço, nos braços. — Isto conta a história de como aconteceu. Da vergonha que vou carregar até meu último suspiro.
O guerreiro que aparecera no outro dia tinha olhos tão vazios...
— Outros vêm até você para que o próprio luto e a vergonha sejam tatuados neles.
— Gavriel perdeu três soldados em uma emboscada nas montanhas ao sul. Foram massacrados. Ele sobreviveu. Desde que virou guerreiro, Gavriel se tatua com os nomes daqueles que caíram sob seu comando. Mas onde está a culpa tem pouco a ver com o objetivo das tatuagens.
— Você foi culpado?
Devagar, Rowan se virou; não completamente, mas o bastante para olhar de esguelha para Celaena.
— Sim. Quando eu era jovem, eu era... feroz em meus esforços para conquistar bravura para mim e minha linhagem. Sempre que Maeve me mandava em campanhas, eu ia. Pelo caminho, encontrei minha parceira, uma fêmea de nossa raça. Lyria — disse Rowan, quase com reverência. — Ela vendia flores no mercado de Doranelle. Maeve reprovava, mas... quando conhecemos nosso parceiro, não é possível fazer nada para mudar isso. Ela era minha, e ninguém poderia me dizer o contrário. A parceria com ela me custou o favoritismo de Maeve, e eu ainda queria muito provar meu valor. Então, quando a guerra veio e Maeve me ofereceu a chance de me redimir, aceitei. Lyria me implorou para não ir. Mas eu era tão arrogante, estava tão desorientado, que a deixei em nossa casa na montanha e fui para a guerra. Eu a deixei sozinha — falou Rowan, olhando de novo para Celaena.
Você me deixou, dissera ela para o guerreiro. Foi quando Rowan surtou – os ferimentos de séculos se erguendo para engoli-lo tão cruelmente quanto o próprio passado de Celaena a consumia.
— Fiquei fora por meses, conquistando toda aquela glória que eu tão tolamente buscava. Então soubemos que nossos inimigos estavam secretamente tentando entrar em Doranelle pelas passagens das montanhas. — O estômago da assassina afundou até o chão. Rowan passou a mão pelo cabelo, coçou o rosto. — Voei para casa. O mais rápido que já voei. Ao chegar, descobri que... descobri que ela estava esperando um filho. E que a mataram mesmo assim, queimando nossa casa até que virasse cinzas. Quando você perde um parceiro, não... — Um balançar de cabeça. — Perdi todo o senso de quem era, de tempo e de espaço. Eu os cacei, todos os machos que a feriram. Me demorei bastante para matá-los. Ela estava grávida, estivera grávida desde que eu a tinha deixado. Mas eu estivera tão apaixonado por meus objetivos tolos que não tinha sentido o cheiro nela. Deixei minha parceira grávida sozinha.
Com a voz falhando, Celaena conseguiu perguntar:
— O que fez depois que os matou?
O rosto de Rowan estava determinado, e os olhos se concentravam em alguma visão longínqua.
— Durante dez anos, não fiz nada. Sumi. Fiquei louco. Mais que louco. Não senti nada. Apenas... parti. Perambulei pelo mundo, mudando de forma, mal me dava conta das estações, só comia quando meu falcão me dizia que eu precisava comer ou morreria. Eu teria me deixado morrer... mas... não consegui... — Ele parou de falar e pigarreou. — Poderia ter ficado daquele jeito para sempre, mas Maeve me encontrou. Disse que já havia passado tempo demais de luto e que eu a serviria como príncipe e comandante, trabalharia com vários outros guerreiros para proteger o reino. Foi a primeira vez que falei com alguém desde o dia em que encontrei Lyria. A primeira vez que ouvi meu nome... ou me lembrei dele.
— Então foi com ela?
— Eu não tinha nada. Ninguém. Àquela altura, esperava que servir Maeve pudesse fazer com que eu fosse morto, então poderia ver Lyria de novo. Assim, quando voltei para Doranelle, escrevi a história de minha vergonha na pele. E me comprometi com Maeve pelo juramento de sangue, servindo-a desde então.
— Como... como se recuperou desse tipo de perda?
— Não me recuperei. Por muito tempo, não consegui. Acho que ainda... não me recuperei. Talvez jamais consiga.
Ela assentiu, os lábios contraídos com força, e olhou pela janela.
— Mas talvez — continuou Rowan, baixo o bastante para que Celaena olhasse para ele de novo. O guerreiro não sorria, mas os olhos pareciam indagadores. — Talvez possamos encontrar um modo juntos.
Rowan não pediria desculpas por aquele dia, ou pelo dia anterior, ou por nada. E ela não pediria isso dele, não agora que entendia que durante as semanas em que estivera olhando para o guerreiro era como olhar para um reflexo. Não era à toa que Celaena o odiava.
— Acho — respondeu ela, pouco mais que um sussurro — que eu gostaria muito disso.
Rowan estendeu a mão.
— Juntos, então.
A assassina avaliou a palma da mão coberta de cicatrizes e calos, depois o rosto tatuado, cheio de um tipo sombrio de esperança. Alguém que poderia... que entendia como era estar destruído bem no fundo, alguém que ainda estava escalando, centímetro a centímetro, para sair daquele abismo.
Talvez jamais saíssem de dentro dele, talvez jamais estivessem inteiros de novo, mas...
— Juntos — repetiu Celaena, pegando a mão estendida de Rowan.
E em algum lugar bem no fundo dela, uma brasa começou a brilhar.
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