Capítulo 51

— Pegue sua espada e suas armas e se apresse — disse Rowan para Celaena, quando ela se levantou imediatamente, levando a mão para a adaga ao lado da cama.
Ele já estava no meio do quarto, vestindo as roupas e as armas com eficiência letal. Celaena não se incomodou com perguntas; o guerreiro contaria o que fosse necessário. Ela vestiu a calça e calçou as botas.
— Acho que fomos traídos — revelou Rowan, e os dedos da assassina ficaram presos em uma das presilhas do cinto da espada conforme se virava para a janela aberta. Silêncio. Silêncio absoluto na floresta.
E no horizonte, um borrão crescente de escuridão.
— Eles vêm esta noite — sussurrou ela.
— Verifiquei o perímetro. — Rowan enfiou uma faca na bota. — É como se alguém tivesse contado a eles onde cada armadilha, cada sino de aviso está localizado. Estarão aqui em uma hora.
— As pedras de proteção ainda estão funcionando? — Celaena terminou de trançar o cabelo e prendeu a espada nas costas.
— Sim... estão intactas. Soei o alarme, e Malakai e os demais estão preparando nossas defesas nas muralhas. — Uma pequena parte da jovem sorriu ao pensar em como devia ter sido para o velho encontrar um Rowan seminu dando ordens no quarto.
Ela perguntou:
— Quem nos teria traído?
— Não sei e, quando a encontrar, vou esmagar a pessoa nas paredes. Mas, por enquanto, temos problemas maiores com que nos preocupar.
A escuridão no horizonte tinha se espalhado, devorando as estrelas, as árvores, a luz.
— O que é aquilo?
A boca de Rowan se contraiu em uma linha fina.
— Problemas maiores.

***

As pedras de proteção eram a última linha de defesa antes da própria fortaleza. Se Narrok planejava montar um cerco ao redor de Defesa Nebulosa, não poderiam contê-lo para sempre, mas esperavam que a barreira cansasse as criaturas e seu poder um pouco. Os semifeéricos estavam na muralha, no pátio e no alto das torres. Arqueiros matariam o máximo de homens possível depois que a barreira caísse, e usariam as portas de carvalho da fortaleza como gargalo para o pátio.
Mas ainda havia as criaturas e Narrok, junto à escuridão que carregavam.
Pássaros e animais sobrevoavam a floresta em ondas ao fugirem; um êxodo de asas batendo, patas galopando, garras arranhando pedras. Liderando os animais para a segurança estava o Povo Pequenino, pouco mais que um brilho de olhos noturnos. Qualquer que fosse a escuridão que Narrok e as criaturas levavam... uma vez que entravam, não havia saída.
Celaena estava parada com Rowan logo além dos portões do grande pátio, na extensão gramada de terra entre a fortaleza e as pedras de proteção, sentindo-se pequena demais. Os animais e o Povo Pequenino tinham parado de surgir momentos antes, e até mesmo o vento morrera.
— Assim que a barreira cair, quero que enterre flechas entre os olhos deles — disse o guerreiro, o arco frouxo na mão. — Não dê a eles a chance de hipnotizarem você, ou qualquer um. Deixe os soldados com os outros.
Eles não tinham ouvido ou visto os duzentos homens, mas Celaena assentiu, segurando o próprio arco.
— E quanto à magia?
— Use aos poucos, mas, se achar que pode destruí-los com ela, não hesite. E não elabore demais. Acabe com elas por quaisquer meios possíveis. — Cálculos tão frios. Um guerreiro puro, autêntico. Celaena quase sentia a agressão transbordar de Rowan.
Um fedor subia além da barreira, e algumas das sentinelas no pátio começaram a murmurar. Um cheiro de outro mundo, de qualquer que fosse a criatura infernal que caminhava sob pele mortal. Alguns animais desgarrados dispararam para fora do bosque, com a boca espumando, a escuridão atrás se tornava mais espessa.
— Rowan — disse Celaena, sentindo, e não realmente os vendo. — Estão aqui.
No limite das árvores, a menos de 5 metros das pedras de proteção, as criaturas emergiram.
A assassina se sobressaltou. Três.
Três, não duas.
— Mas os skinwalkers... — Ela não conseguiu terminar as palavras conforme os três homens avaliavam a fortaleza. Estavam vestindo roupas de um negro intenso, os mantos abertos, revelando os colares de pedras de Wyrd nos pescoços. Os skinwalkers não o mataram, não, porque ali estava aquele mesmo macho perfeito, olhando diretamente para Celaena. Sorrindo para ela. Como se já conseguisse sentir seu gosto.
Um coelho disparou para fora dos arbustos, correndo para as pedras de proteção. Como a pata de uma besta imensa, a escuridão atrás das criaturas atacou, varrendo o animal em fuga.
O coelho caiu no meio de um salto, o pelo se tornou minguado e opaco, os ossos se destacaram enquanto a vida era sugada de dentro. As sentinelas nas muralhas e nas torres se agitaram, algumas xingaram. Celaena teve a chance de escapar das garras de apenas uma daquelas criaturas. Contudo, as três juntas se tornavam outra coisa, algo infinitamente poderoso.
— Não podemos permitir que a barreira caia — disse Rowan. — Aquela escuridão vai matar qualquer coisa que tocar. — Enquanto falava, a escuridão já começava a se estender ao redor da fortaleza. Cercando-os. A barreira murmurou, e as reverberações zuniram contra as solas das botas de Celaena.
Ela mudou para a forma feérica, encolhendo o corpo para afastar a dor. Precisava da audição mais aguçada, da força e da cura. Mesmo assim, as três criaturas permaneciam no limite da floresta, a escuridão se espalhando. Nenhum sinal dos duzentos soldados.
Como uma, as três deram meia-volta para as sombras atrás e abriram o caminho, fazendo uma reverência com a cabeça. Então, caminhando para fora das árvores, Narrok surgiu.
Diferente das outras criaturas, ele não era belo. Era coberto de cicatrizes, tinha a compleição poderosa e estava armado até os dentes. No entanto, também trazia a pele entalhada com aquelas veias pretas reluzentes, assim como usava o colar de obsidiana. Mesmo de longe, Celaena podia ver o vazio faminto nos olhos, que vazava na direção deles como sangue em um rio.
Ela esperou que Narrok dissesse alguma coisa, que negociasse e oferecesse uma escolha entre cederem ao poder do rei ou a morte, que desse algum discurso para acabar com a moral deles. Mas o homem olhou para Defesa Nebulosa com um movimento lento e quase prazeroso da cabeça, sacou a espada de ferro e apontou para os portões curvos das pedras de proteção.
Não havia nada que Celaena ou Rowan pudessem ter feito quando um chicote de escuridão estalou e atingiu a barreira invisível. O ar estremeceu; as pedras gemeram.
Rowan já se movia para as portas de carvalho, gritando ordens para os arqueiros a fim de que se preparassem e usassem qualquer magia que tivessem para se proteger contra a escuridão que se aproximava. Celaena permaneceu onde estava. Outro golpe, e a barreira ondulou.
— Aelin — disparou o guerreiro, e ela olhou por cima do ombro em sua direção. — Vá para dentro dos portões.
Mas Celaena puxou o arco pelas costas, e ao erguer a mão, estava coberta de fogo.
— No bosque, naquela noite, ele recuou da chama.
— Para usá-lo, precisará ir para fora da barreira, ou ele vai simplesmente ricochetear contra a muralha.
— Eu sei — respondeu ela, baixinho.
— Da última vez, bastou uma espiada e você caiu no feitiço dela.
A escuridão disparou de novo.
— Não vai ser como da última vez — respondeu Celaena, os olhos em Narrok, nas três criaturas. Não quando tinha uma dívida a acertar. O sangue esquentou, mas ela disse: — Não sei mais o que fazer.
Porque, se aquela escuridão chegasse até lá, então todas as lâminas e as flechas seriam inúteis. Não teriam chance de atacar.
Um grito soou, seguido por outros, então o som de metal contra metal.
Alguém gritou:
— O túnel! Deram passagem a eles pelo túnel!
Por um momento, a assassina apenas ficou parada ali, piscando. O túnel de fuga. Eles tinham sido traídos. E agora sabiam onde estavam os soldados: entrando de fininho pela rede subterrânea, talvez a entrada tivesse sido permitida porque as pedras de proteção, com aquela estranha sensibilidade, estavam concentradas demais na ameaça acima para poder conter a de baixo.
Os sons de gritos e luta ficaram mais altos. Rowan tinha posicionado os lutadores mais fracos do lado de dentro para que ficassem em segurança, bem no caminho da entrada do túnel. Seria um massacre.
— Rowan...
Outro golpe na barreira dado pela escuridão, então outro. Celaena começou a caminhar para as pedras, e o guerreiro grunhiu.
— Não dê mais um passo...
Ela continuou. Dentro da fortaleza, os gritos tinham começado, dor e morte e terror. Cada passo para longe a dilacerava, mas Celaena seguiu para as pedras, na direção dos portões imensos. Rowan a segurou pelo cotovelo.
— Isso foi uma ordem.
A assassina afastou a mão dele.
— Precisam de você do lado de dentro. Deixe a barreira comigo.
— Você não sabe se vai funcionar...
— Vai funcionar — disparou Celaena. — Sou dispensável, Rowan.
— Você é a herdeira do trono de...
— Agora, sou uma mulher que tem um poder que pode salvar vidas. Me deixe fazer isso. Ajude os outros.
Ele olhou para as pedras de defesa, para a fortaleza e para as sentinelas que corriam para ajudar abaixo. Sopesando, calculando. Por fim, disse:
— Não lute com eles. Concentre-se naquela escuridão e em mantê-la longe, e só. Preserve a barreira, Aelin.
Mas ela não queria preservar a barreira, não quando o inimigo estava tão perto. Não quando o peso das almas de Calaculla e de Endovier a pressionava, gritando tão alto quanto os soldados do lado de dentro da fortaleza. Celaena falhara com eles. Chegara tarde demais. E bastava. Contudo, ela assentiu, como o bom soldado que Rowan acreditava que era, e respondeu:
— Entendido.
— Vão atacá-la assim que colocar os pés fora da barreira — avisou ele, soltando o braço de Celaena. A magia dela começou a ferver nas veias. — Mantenha um escudo preparado.
— Eu sei. — Foi sua única resposta ao se aproximar da barreira e da escuridão rodopiante além dela.
As sombras das pedras curvas do portão pairavam, e Celaena sacou a espada das costas com a mão direita, a esquerda envolta em chamas.
O povo de Nehemia massacrado. O povo dela massacrado. O povo dela.
A assassina se colocou sob o arco das pedras, a magia zuniu e beijou sua pele. Apenas alguns passos a levariam para fora da barreira. Celaena podia sentir Rowan se demorando, esperando para ver se ela sobreviveria os primeiros segundos. Mas ela sobreviveria; queimaria aquelas coisas até virarem cinza e poeira.
Aquilo era o mínimo que devia àqueles assassinados em Endovier e em Calaculla; o mínimo que poderia fazer, depois de tanto tempo. Um monstro para destruir monstros.
As chamas na mão esquerda queimaram mais forte quando ela deu um passo para além do arco, em direção ao abismo que a chamava.

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