Capítulo 54
Trombetas anunciaram sua chegada. Trombetas e silêncio conforme o povo de Orynth enchia as ruas íngremes, serpenteantes, até o palácio branco que observava todos. Era o primeiro dia de sol em semanas; a neve nas ruas de paralelepípedo derretia rapidamente, embora o vento ainda tivesse um toque final de inverno, o bastante para que o rei de Adarlan e toda a enorme comitiva estivessem enrolados em peles que cobriam a majestade.
As bandeiras dourado e carmesim, no entanto, oscilavam ao vento gelado, os mastros dourados brilhavam tanto quanto a armadura daqueles que os empunhavam, que cavalgavam à frente da comitiva. Ela os observou se aproximando de uma das varandas da sala do trono, com Aedion ao lado fazendo comentários constantes sobre o estado dos cavalos, das armaduras, das armas – sobre o próprio rei de Adarlan, que cavalgava próximo à frente, em um enorme cavalo negro. Havia um pônei ao lado dele, levando uma figura menor.
— O filho chorão — disse Aedion.
O castelo todo estava deprimentemente silencioso. Todos perambulavam, mas quietos, tensos. O pai dela estava nervoso no café da manhã, e a mãe, distraída; a corte inteira estava agressiva e usando muito mais armas que o comum. Apenas o tio parecia igual – apenas Orlon sorrira para ela naquele dia, dissera que estava muito bonita com o vestido azul e a coroa dourada, e puxara um dos cachos recém-feitos. Ninguém comentara nada sobre aquela visita, mas ela sabia que era importante, porque até mesmo seu primo vestia roupas limpas, uma coroa e uma adaga nova, que ele passara a atirar no ar.
— Aedion, Aelin — sussurrou alguém de dentro da sala do trono, Lady Marion, a amiga mais próxima e criada da mãe dela. — Na plataforma, agora.
Atrás da linda dama, uma cabeça de cabelos negros como a noite e olhos ônix espreitava. Era Elide, sua filha. A garota era quieta e sensível demais para que Aelin se importasse com ela. E Lady Marion, criada de Aelin, paparicava a própria filha interminavelmente.
— Porcaria — xingou Aedion, e Marion ficou vermelha de raiva, mas não o repreendeu. Prova o suficiente de que aquele dia era diferente, até perigoso.
O estômago dela se revirou, mas Aelin seguiu Lady Marion para dentro, com Aedion atrás, como sempre, e se sentou no pequeno trono ao lado do trono do pai. Aedion tomou a posição ao lado, os ombros para trás e a cabeça erguida, já seu protetor e guerreiro.
Orynth inteira estava em silêncio quando o rei de Adarlan entrou no lar deles na montanha.
***
Ela odiou o rei de Adarlan.
Ele não sorriu – não sorriu ao caminhar para o interior da sala do trono para cumprimentar o tio e os pais dela, nem ao apresentar o filho mais velho, príncipe herdeiro Dorian Havilliard, tampouco ao chegar ao salão para o maior banquete que Aelin já vira. O rei só olhara para a menina duas vezes até então: uma durante aquela reunião inicial, na qual a encarou por tanto tempo e tão concentrado que o pai dela exigiu saber o que o soberano achava tão interessante a respeito da filha dele, e a corte inteira ficou tensa. Mas Aelin não desviara os olhos daquele olhar sombrio. Ela odiou o rosto cheio de cicatrizes e bruto, assim como as peles que vestia. Odiou o modo como o rei ignorava o filho de cabelos pretos, que estava de pé como uma bonequinha ao lado, com modos tão elegantes e graciosos, as mãos pálidas como passarinhos ao se moverem.
A segunda vez que o monarca olhou para Aelin foi àquela mesa, onde agora estava sentada a alguns assentos de distância, acompanhada por Lady Marion, do lado mais próximo do rei, e por Aedion, do outro. Havia adagas nas pernas da criada sob o vestido; a menina sabia porque ficava esbarrando nelas. Lorde Cal, marido de Marion, estava sentado ao lado, a arma que carregava reluzindo.
Elide, com as outras crianças, tinha sido enviada para o andar de cima. Apenas Aelin e Aedion – e o príncipe Dorian – podiam ficar ali. Aedion estufou o peito de orgulho e mal conteve o temperamento quando o rei de Adarlan a olhou uma segunda vez, como se pudesse ver através de seus ossos. O soberano foi puxado para a conversa com os pais e o tio dela e todos os lordes e as damas da corte que haviam se colocado ao redor da família real.
Aelin sempre soubera que sua corte não arriscava, nem com ela nem com os pais ou o tio. Mesmo agora, a garota reparou que os olhos dos amigos mais próximos do pai desviavam para as janelas e para as portas conforme conversavam com aqueles ao redor.
O restante do salão estava cheio com a comitiva de Adarlan e com os círculos mais externos da corte de Orlon, além dos importantes mercadores da cidade, que queriam se aproximar de Adarlan. Ou algo assim. Mas a atenção de Aelin estava no príncipe diante dela, que parecia completamente ignorado pelo pai e pela própria corte, empurrado para o final com ela e com Aedion.
Ele comia de modo tão bonito, pensou Aelin, observando-o cortar o frango assado. Nenhuma gota saía do lugar, nenhuma migalha caía na mesa. A menina tinha modos decentes, enquanto Aedion era um caso perdido: o prato dele estava cheio de ossos, e migalhas se espalhavam por toda parte, algumas até no vestido de Aelin. Ela o chutou por causa disso, mas a atenção do garoto estava concentrada demais na realeza no fim da mesa.
Então tanto ela quanto o príncipe herdeiro deveriam ser ignorados. Aelin olhou para ele de novo e imaginou que deviam ter a mesma idade. Tinha a pele do inverno, os cabelos preto-azulados perfeitamente aparados; os olhos cor de safira se ergueram do prato e encontraram os dela.
— Você come como uma dama refinada — disse a menina.
Os lábios do príncipe se contraíram, e a vermelhidão manchou as bochechas marfim. Sentado em frente, Quinn, o capitão da Guarda do tio de Aelin, engasgou com a água.
O príncipe olhou para o pai – ainda ocupado com o tio de Aelin – antes de responder. Não buscando aprovação, mas com medo.
— Como do jeito de um príncipe — retrucou Dorian, baixinho.
— Não precisa cortar o pão com garfo e faca — comentou ela. Um leve latejar começou na cabeça, seguido por um calor tremulante, mas ela o ignorou.
O salão estava quente, pois tinham fechado todas as janelas por algum motivo.
— Aqui no norte — continuou a menina, quando a faca e o garfo do príncipe permaneceram onde estavam no pão — não precisa ser tão formal. Não fazemos pompa.
Hen, um dos homens de Quinn, tossiu de modo chamativo alguns assentos adiante. Aelin quase podia ouvi-lo falar: Diz a daminha com o cabelo com cachos cuidadosamente feitos e usando o vestido novo, pelo qual ameaçou nos esfolar vivos caso o sujássemos.
Ela deu a Hen um olhar igualmente chamativo, em seguida voltou a atenção para o príncipe estrangeiro, que já abaixara o rosto para a comida de novo, como se esperasse ser esquecido pelo resto da noite. Parecia tão solitário que a garota disse:
— Se quiser, pode ser meu amigo. — Nenhum dos homens ao redor disse qualquer coisa nem tossiu.
Dorian ergueu o queixo.
— Tenho um amigo. Ele vai ser o Lorde de Anielle algum dia e o guerreiro mais destemido do território.
Aelin duvidou que Aedion fosse gostar daquela alegação, mas o primo permanecia concentrado na mesa. Ela desejou ter ficado de boca fechada.
Mesmo aquele príncipe estrangeiro inútil tinha amigos. O latejar na cabeça aumentara, fazendo-a tomar um gole de água. Água – sempre água para acalmar o interior.
Ao estender a mão para o copo, no entanto, sentiu uma dor lancinante na cabeça, então se encolheu.
— Princesa? — falou Quinn, sempre o primeiro a notar.
Ela piscou, pontos pretos se formavam na visão, mas a dor parou.
Não, não parou, mas pausou. Uma pausa, depois...
Bem entre os olhos, a sensação pressionou a cabeça, tentando entrar. Ela esfregou a testa. A garganta se fechou, e Aelin estendeu a mão para a água, pensando em frescor, em calma e frio, exatamente como os tutores e a corte tinham ensinado. Contudo, a magia se revirava internamente; queimando. Cada pulso de dor na cabeça a fazia piorar.
— Princesa — disse Quinn de novo. Ela se levantou, as pernas fraquejando.
A escuridão na visão crescia a cada golpe da dor, deixando-a zonza. Distante, como se estivesse debaixo d’água, Aelin ouviu Lady Marion pronunciar seu nome, tentar alcançá-la, mas a menina queria o toque frio da mãe.
Evalin se virou no assento, o rosto sério, os brincos de ouro refletindo a luz, e estendeu um braço, chamando.
— O que foi, Coração de Fogo?
— Não me sinto bem — disse ela, mal conseguindo dizer as palavras.
Aelin segurou o braço envolto em veludo da mãe, em busca de conforto e para evitar que os joelhos fracos cedessem.
— Qual o problema? — perguntou a mãe, mesmo ao levar a mão à testa da filha. Um lampejo de preocupação, então um olhar para o marido, que observava ao lado do rei de Adarlan. — Ela está queimando — falou a mulher, baixinho. Lady Marion apareceu subitamente atrás, e Evalin ergueu o rosto para dizer: — Peça que o curandeiro vá ao quarto dela.
A criada se foi em um segundo, correndo para uma porta lateral.
Aelin não precisava de um curandeiro, e ela segurou o braço da mãe para dizer isso. Contudo, nenhuma palavra saía conforme a magia subiu, queimando. A mãe dela chiou, em seguida deu um salto para trás: fumaça saiu do vestido onde a filha a segurara.
— Aelin.
A cabeça da princesa latejou; um estouro de dor, então...
Algo se contorcia e girava dentro de sua cabeça.
Um verme de escuridão, abrindo caminho. A magia se agitou, debatendo-se, tentando tirar aquilo dali, queimar aquela coisa, salvar as duas, mas...
— Aelin.
— Tire isso daqui — gritou a menina, apertando as têmporas conforme recuava da mesa.
Dois dos lordes estrangeiros tiraram Dorian da mesa e o levaram para fora da sala.
A magia de Aelin dava pinotes como um cavalo garanhão conforme o verme se contorcia mais para dentro.
— Tire isso daqui.
— Aelin. — O pai se levantara, a mão na espada.
Metade dos demais também o fizera, mas ela estendeu a mão, para mantê-los afastados, para avisá-los. Chamas azuis foram disparadas. Duas pessoas se abaixaram a tempo de evitá-las, mas todos ficaram de pé quando os assentos livres pegaram fogo.
O verme se agarraria à mente dela e jamais a soltaria.
Aelin segurou a cabeça, a magia gritando, tão alto que poderia destruir o mundo. Então estava queimando, uma coluna viva de chama turquesa, chorando conforme o verme sombrio continuava seu trabalho e as paredes da mente começavam a ceder.
Acima da própria voz, acima dos gritos no corredor, Aelin ouviu o berro do pai – um comando para a esposa, que estava de joelhos, as mãos estendidas para a filha em súplica.
— Faça-o, Evalin!
A pilastra de chamas ficou mais quente, o bastante para que as pessoas saíssem correndo.
Os olhos da mãe encontraram os da filha, cheios de súplica e dor.
Então água; uma muralha de água descendo sobre ela, atirando-a contra as pedras, correndo pela garganta de Aelin, para os olhos, fazendo-a engasgar. Afogando-a. Até que não houvesse ar para as chamas, apenas água e seu abraço congelante.
O rei de Adarlan olhou para Aelin uma terceira vez... e sorriu.
***
Os príncipes valg gostaram daquela memória, do terror e da dor. E, quando pararam para saboreá-la, Celaena entendeu. O rei de Adarlan tinha usado o poder dele sobre ela naquela noite. Os pais não tinham como saber que a pessoa responsável por aquele verme sombrio, que tinha sumido assim que a menina perdeu a consciência, era o homem sentado ao lado deles.
Havia outro homem agora; um quarto príncipe, morando dentro de Narrok, que falou:
— Os soldados quase tomaram o túnel. Estejam prontos para se mover em breve. — Celaena podia senti-lo pairando sobre ela, observando. — Vocês encontraram um prêmio que vai interessar nosso soberano. Não a desperdicem. Tomem apenas goles.
A assassina tentou conjurar o terror – tentou sentir qualquer coisa ao pensar no lugar para onde a levariam, o que fariam com ela. Contudo, não podia sentir nada enquanto os príncipes murmuravam em compreensão, e a memória seguia em frente.
***
A mãe dela achou que fosse um ataque de Maeve, um lembrete cruel da dívida que tinha, para fazer com que parecessem vulneráveis. Nas horas seguintes, enquanto estava deitada na banheira gelada ao lado do quarto, Aelin usou os ouvidos feéricos para escutar os pais e a corte debatendo o evento na sala de estar da suíte.
Só podia ser Maeve. Ninguém mais poderia fazer algo como aquilo, ou saber que tal demonstração – diante do rei de Adarlan, que já odiava magia – seria maléfica.
Ela não queria falar, mesmo voltando a ser capaz de andar e falar e agir como uma princesa. Insistindo que a normalidade poderia ajudar, sua mãe a fez tomar um chá na tarde seguinte com o príncipe Dorian, cautelosamente vigiada e monitorada, com Aedion sentado entre os dois. E, quando os modos impecáveis de Dorian falharam, levando-o a derrubar a chaleira e molhar o vestido novo de Aelin, ela fez questão de fazer com que o primo ameaçasse socá-lo.
No entanto, a menina não se importava com o príncipe, ou com o chá, ou com o vestido. Mal conseguiu andar de volta para o quarto, e, naquela noite, sonhou com o verme que invadia sua mente, acordando com gritos e chamas na boca.
Ao amanhecer, seus pais a tiraram do castelo e seguiram para a mansão a dois dias de distância. Os visitantes estrangeiros poderiam ter causado muito estresse, disse o curandeiro. A criança sugeriu que Lady Marion a levasse, mas os pais insistiram em ir. O tio aprovou, pois parecia que o rei de Adarlan também não ficaria no castelo com a magia da princesa descontrolada.
Aedion permaneceu em Orynth, os pais de Aelin prometeram que o buscariam quando ela se acalmasse de novo. Contudo, a garota sabia que era pela segurança do primo. Lady Marion foi com eles, deixando o marido e Elide no palácio... pela segurança da família também.
Um monstro, era o que Aelin era. Um monstro que precisava ser contido e monitorado.
Os pais dela discutiram nas duas primeiras noites na mansão, e Lady Marion fez companhia à princesa, lendo, escovando seus cabelos, contando histórias do próprio lar, em Perranth. A moça era lavadeira no palácio desde a infância. Mas, quando Evalin chegou, as duas se tornaram amigas – em grande parte porque a princesa manchou a camisa preferida do novo marido com tinta e queria limpar antes que ele reparasse.
Evalin logo tornou Marion sua dama de companhia, então Lorde Lochan voltou de um turno na fronteira sul. O lindo Cal Lochan, que de alguma forma se tornou o homem mais sujo do castelo e precisava do conselho de Marion sobre como remover diversas manchas. Que um dia pediu que uma criada bastarda fosse sua esposa – e não apenas esposa, mas Lady de Perranth, o segundo maior território de Terrasen. Dois anos depois, Marion dera a ele Elide, a herdeira de Perranth.
Aelin amava as histórias da criada e agarrou-se nelas durante o silêncio e a tensão dos dias seguintes, quando o inverno ainda tomava o mundo e fazia a mansão gemer.
A casa rangia devido aos ventos fortes na noite em que Evalin entrou no quarto da filha – muito menor que o do palácio, mas ainda lindo. Só passavam o verão ali, pois a casa tinha correntes de vento demais no inverno, e as estradas eram muito perigosas. O fato de que tinham ido...
— Ainda não está dormindo? — perguntou a mãe.
Lady Marion se levantou da lateral da cama. Depois de algumas palavras calorosas, ela saiu, sorrindo para as duas.
Evalin se aconchegou no colchão, puxando a filha para perto.
— Desculpe — sussurrou ela. Porque também tivera pesadelos com afogamentos, com água gelada sobre sua cabeça. — Sinto muito mesmo, Coração de Fogo.
A menina enterrou a cabeça no peito da mãe, aproveitando o calor.
— Ainda está com medo de dormir?
Aelin assentiu, abraçando com mais força.
— Então, tenho um presente. — Quando a criança não se moveu, Evalin disse: — Não quer vê-lo?
Aelin fez que não com a cabeça. Não queria um presente.
— Mas isto a protegerá do perigo, isto a manterá segura sempre.
Aelin ergueu a cabeça e viu a mãe sorrindo ao remover a corrente de ouro e o pesado medalhão que estavam sob a camisola, então os estendeu para a filha.
A garota fitou o amuleto, em seguida a mãe, de olhos arregalados.
O Amuleto de Orynth. A herança honrada acima de todas as outras na casa.
O disco redondo era do tamanho da palma da mão de Aelin, e na frente cerúlea, um cervo branco fora entalhado em marfim – marfim presenteado pelo Senhor da Floresta. No meio da galhada retorcida, havia uma coroa incandescente de ouro, a estrela imortal que cuidava deles e apontava o caminho para casa, para Terrasen. Ela conhecia cada centímetro do amuleto, percorrera os dedos por ele inúmeras vezes e memorizara o formato dos símbolos gravados no verso; palavras em uma língua estranha da qual ninguém se lembrava.
— Papai te deu isso quando você estava em Wendlyn. Para protegê-la.
O sorriso permanecia.
— E antes disso, o tio dele deu a seu pai quando atingiu a maioridade. É um presente que deve ser dado às pessoas de nossa família, para aqueles que precisam de orientação.
Aelin estava chocada demais para recusar o objeto conforme a mãe passou a corrente sobre sua cabeça, ajustando-o na frente do corpo da filha. O amuleto pendia quase até o umbigo, um peso caloroso.
— Nunca o tire. Nunca o perca. — A mãe a beijou na testa. — Use-o e saiba que é amada, Coração de Fogo, que está segura, e é a força aqui — ela levou a mão ao coração da princesa — que importa. Aonde quer que vá, Aelin — sussurrou Evalin — não importa a distância, isto a levará para casa.
***
Aelin perdera o Amuleto de Ory nth. Perdera naquela mesma noite.
Ela não podia suportar. Tentou implorar aos príncipes valg que acabassem com o sofrimento e que a drenassem até que virasse nada, mas não tinha voz ali.
Horas depois de a mãe a presentear com o Amuleto de Orynth, uma tempestade caiu.
Era uma tempestade de escuridão sobrenatural, e, com a chuva, a princesa sentiu aquela coisa terrível se contorcendo, forçando contra sua mente de novo. Os pais permaneciam inconscientes, como todos na mansão, embora um cheiro estranho cobrisse o ar.
Aelin segurou o amuleto no peito quando acordou na escuridão total e ao som de trovões – segurou o objeto e rezou para todos os deuses que conhecia.
Contudo, o amuleto não lhe dera força ou coragem, então ela foi até o quarto dos pais, tão escuro quanto o dela, exceto pela janela batendo ao vento forte e à chuva.
O temporal tinha ensopado tudo, mas... mas eles deviam estar exaustos de lidar com a filha e com a ansiedade que tentavam esconder. Assim, Aelin fechou a janela para os pais, entrando cuidadosamente na cama ensopada, para não os acordar. Eles não a tocaram, não perguntaram qual era o problema, e a cama estava tão fria – mais fria que a dela, e fedia a cobre e ferro e àquele cheiro que não caía bem a Aelin.
Foi com esse cheiro que acordou quando a criada gritou.
Lady Marion entrou às pressas, os olhos arregalados, mas atentos. Ela não olhou para os amigos mortos, mas foi direto para a cama e se inclinou sobre o cadáver de Evalin. A dama de companhia era pequena e tinha ossos delicados, mas, de alguma forma, tirou Aelin dos pais, segurando-a com força conforme saiu apressada do cômodo. Os poucos criados na mansão estavam em pânico, alguns corriam para buscar ajuda, que estava no mínimo a um dia de distância; alguns fugiam.
Lady Marion ficou.
Marion ficou e preparou um banho, ajudando a menina a tirar a camisola fria e ensanguentada. Elas não falaram, não tentaram. A criada a banhou, e, quando a princesa estava limpa e seca, carregou-a para a cozinha fria. Marion sentou a menina à longa mesa, enrolada em um cobertor, e começou a acender a lareira.
Ela não falara naquele dia. Não restavam sons ou palavras, de toda forma.
Um dos poucos criados restantes irrompeu na mansão, gritando para a casa vazia que o rei Orlon também estava morto. Assassinado na cama, exatamente como...
Lady Marion saiu da cozinha com os dentes expostos antes que o homem pudesse entrar. Aelin não ouviu a bondosa Marion bater no homem, ordenando que ele saísse e buscasse ajuda – buscasse ajuda de verdade, e não notícias inúteis.
Assassinada. A família dela estava... morta. Não havia retorno da morte, e os pais de Aelin... O que os criados tinham feito com os... os...
Os tremores a atingiram com tanta força que o cobertor caiu. Aelin não conseguia impedir que os dentes batessem. Foi um milagre permanecer na cadeira.
Não podia ser verdade. Aquilo era outro pesadelo, e ela acordaria com o pai acariciando seu cabelo, a mãe sorrindo, despertaria em Orynth, e...
O peso quente do cobertor a envolveu de novo, e Lady Marion a colocou no colo, balançando-se.
— Eu sei. Não vou embora... vou ficar com você até a ajuda chegar. Estarão aqui amanhã. Lorde Lochan, o capitão Quinn, seu Aedion, todos estarão aqui amanhã. Talvez até ao amanhecer. — Mas a mulher também tremia. — Eu sei — repetia ela, chorando baixinho. — Eu sei.
O fogo se apagou, junto ao choro de Marion. Elas se abraçaram, presas àquela cadeira da cozinha. Esperaram o amanhecer e os outros que ajudariam, de alguma forma.
Um galopar ecoou do lado de fora – leve, mas o mundo estava tão silencioso que elas ouviram o cavalo solitário. Ainda estava escuro. Lady Marion olhou para a janela da cozinha, ouvindo o cavalo diminuir a velocidade, circulando, até que...
As duas estavam debaixo da mesa em um segundo, a criada segurando Aelin contra o chão gelado, cobrindo-a com o corpo delicado. O cavalo seguiu para a frente escura da casa.
A frente, porque... porque a luz na cozinha podia sugerir a quem quer que fosse que havia alguém lá dentro. A frente seria melhor para entrar às escondidas... para terminar o que havia começado na noite anterior.
— Aelin — sussurrou Marion, conforme mãos pequenas e fortes encontravam o rosto dela, obrigando a princesa a olhar para as feições brancas como neve, os lábios vermelhos como sangue. — Aelin, ouça. — Embora Marion estivesse respirando rapidamente, a voz se mantinha calma. — Você vai correr para o rio. Lembra-se do caminho para a ponte?
A estreita ponte de corda e madeira do outro lado da ravina, o forte rio Florine abaixo. A menina assentiu.
— Boa garota. Siga para a ponte e atravesse-a. Lembra-se da fazenda vazia no fim da estrada? Encontre um lugar para se esconder ali, e não saia, não se deixe ser vista por ninguém, exceto alguém que você reconheça. Nem mesmo se a pessoa disser que é amiga. Espere pela corte, ela encontrará você.
A princesa tremia de novo, mas Marion a segurou pelos ombros.
— Vou ganhar o tempo que conseguir para você, Aelin. Não importa o que ouça, não importa o que veja, não olhe para trás, e não pare até encontrar um lugar para se esconder.
Ela sacudiu a cabeça, lágrimas silenciosas caíram, por fim. A porta da frente rangeu – um movimento rápido.
Lady Marion pegou a adaga na bota, que reluziu à luz fraca.
— Quando eu disser corra, você corre, Aelin. Entendeu?
A menina não queria entender, não mesmo, mas assentiu.
Lady Marion deu um beijo na testa dela.
— Diga a minha Elide... — A voz da criada falhou. — Diga a minha Elide que eu a amo muito.
Passos silenciosos se aproximando vieram da frente da casa. Lady Marion puxou a menina de baixo da mesa e abriu a porta da cozinha com cuidado, apenas o bastante para que ela se espremesse para fora.
— Corra agora — ordenou Lady Marion, empurrando-a para a noite.
A porta se fechou atrás de Aelin, e restou somente o ar frio e escuro e as árvores que davam para a trilha até a ponte. Aelin correu aos tropeços. As pernas eram como chumbo, os pés descalços se arranhando no chão. A menina chegou às árvores; no mesmo momento, um estrondo ecoou da casa.
Aelin se agarrou a um tronco, os joelhos fraquejando. Pela janela aberta, pôde ver Lady Marion de pé diante de um homem encapuzado e alto, as adagas dela para fora, trêmulas.
— Você não a encontrará.
O homem disse algo que fez com que a mulher recuasse até a porta, não para correr, mas para bloqueá-la.
Ela era tão pequena, a criada. Tão pequena contra o sujeito.
— Ela é uma criança — gritou Marion.
Aelin jamais a ouvira gritar daquela forma, com ódio e nojo e desespero. A moça ergueu as adagas, exatamente como o marido mostrara diversas vezes.
Aelin deveria ajudar, não se acovardar atrás das árvores. Ela aprendera a segurar uma faca e uma espada pequena. Deveria ajudar.
O homem disparou contra Marion, que desviou, depois saltou sobre ele, cortando, rasgando e mordendo.
Então algo se partiu – algo se partiu tão profundamente que Aelin soube que não havia retorno, para ela ou para Lady Marion – quando o homem pegou a mulher e a jogou contra a beirada da mesa. Um estalar de osso, em seguida o arco da lâmina desceu para o corpo inerte... para a cabeça da criada. Um espirrar vermelho.
Aelin sabia o suficiente sobre a morte para entender que uma vez que a cabeça fosse cortada era o fim. Sabia que Lady Marion, que amara tanto o marido e a filha, se fora. Sabia que aquilo... aquilo se chamava sacrifício.
A menina correu. Correu pelas árvores sem folhas, a vegetação rasgava suas roupas, os cabelos, despedaçando e ferindo. O homem não se incomodou em fazer silêncio ao escancarar a porta da cozinha, montar o cavalo e galopar atrás dela. Os cascos do animal eram tão poderosos que pareciam ecoar pela floresta – o cavalo deveria ser um monstro.
Aelin tropeçou em uma raiz e caiu na terra. Ao longe, o rio, derretendo, rugia. Tão próximo, mas... o tornozelo irradiou um lampejo de dor. Presa, estava presa na lama e nas raízes. Aelin puxou as raízes que a seguravam, madeira quebrando suas unhas, e, quando isso não adiantou, a menina raspou o chão enlameado. Os dedos queimavam.
Uma espada tiniu ao ser desembainhada, e o chão reverberou com as batidas dos cascos do cavalo. Mais e mais perto.
Um sacrifício... tinha sido um sacrifício e, agora, seria em vão.
Mais que a morte, aquilo era o que mais odiava – o sacrifício desperdiçado de Lady Marion. Aelin raspou o chão e puxou as raízes, então...
Minúsculos olhos na escuridão, pequenos dedos nas raízes, puxando-as mais e mais para cima. O pé de Aelin deslizou, ficando livre, e ela levantou-se de novo, incapaz de agradecer ao Povo Pequenino que já havia sumido, incapaz de fazer qualquer coisa, a não ser correr, mancando agora. O homem estava tão próximo, a vegetação estalando atrás, mas a menina conhecia o caminho. Passara por ali tantas vezes que a escuridão não era um obstáculo.
Aelin só precisava atravessar a ponte. O cavalo não poderia passar, e ela era rápida o bastante para correr mais que ele. O Povo Pequenino poderia ajudá-la de novo. A princesa só precisava chegar à ponte.
Um estalo nas árvores, e o rugido do rio se tornou sobrepujante. Aelin estava tão perto agora. Sentiu e ouviu, mais que viu, o cavalo do sujeito irrompendo pelo limite das árvores, o zunido da espada sendo erguida, preparando-se para partir a cabeça de Aelin bem ali.
Lá estavam os mastros gêmeos, pouco visíveis à noite sem lua. A ponte. A menina tinha conseguido, e agora só metros, então alguns centímetros...
A respiração do cavalo do homem pareceu quente no pescoço de Aelin conforme ela se atirou para o meio dos dois mastros da ponte, saltando para as tábuas de madeira.
Saltando para o ar.
Aelin não tinha errado – não, aqueles eram os mastros e...
Ele havia cortado a ponte.
Foi a única coisa que pensou ao cair, tão rápido que não teve tempo de gritar antes de atingir a água gelada e ser puxada para baixo.
***
Ali.
Naquele momento, Lady Marion tinha escolhido uma esperança desesperada por seu reino em vez de escolher a si mesma, ao marido e à filha, que esperariam e esperariam por um retorno que jamais viria.
Aquele fora o momento que partira tudo o que Aelin Galathynius era e prometera ser.
Celaena estava caída no chão, no fundo do mundo, no fundo do inferno.
Aquele era o momento que ela não conseguia encarar, não encarara.
Pois, mesmo então, reconhecera a grandeza daquele sacrifício.
Havia mais, depois do momento em que atingira a água. Mas aquelas memórias eram embaçadas, uma mistura de gelo e água negra e uma luz estranha, então não sabia de mais nada até encontrar Arobynn, agachado sobre ela na margem gramada do rio, em algum lugar bem longe. A menina acordou em uma cama estranha, em uma fortaleza fria, o Amuleto de Orynth fora perdido para o rio. Qualquer magia que tivesse, qualquer proteção, tinha sido esgotada naquela noite.
Então o processo de pegar o medo, a culpa, o desespero e transformá-los em algo novo. Depois o ódio – o ódio que a havia reconstruído, o ódio que a alimentara, sufocando as memórias que Celaena enterrara em um túmulo, junto ao coração, e jamais deixava saírem.
Ela aceitara o sacrifício de Lady Marion e se tornara um monstro, quase tão ruim quanto aquele que assassinara a mulher e sua própria família.
Era por isso que não podia, que não ia, para casa.
Celaena jamais procurara o número de mortes, não naquelas semanas iniciais de massacre nem nos anos seguintes. Mas sabia que Lorde Lochan tinha sido executado. Quinn e os homens dele. E tantas daquelas crianças... tantas luzes brilhantes, todas dela para que protegesse. E havia fracassado.
Ela se agarrou ao chão.
Era o que não conseguira dizer a Chaol, ou a Dorian, ou a Elena: que quando Nehemia planejou a própria morte para que a colocasse em ação, aquele sacrifício... aquele sacrifício inútil...
Celaena não conseguia soltar o chão. Não havia nada sob ele, lugar nenhum para ir, lugar nenhum para fugir daquela verdade.
Ela não sabia por quanto tempo tinha ficado deitada no fundo do que quer que fosse aquilo, mas, por fim, os príncipes valg começaram de novo, pouco mais que sombras de pensamentos e malícia conforme seguiam de memória em memória, como se provando pratos em um banquete. Pequenas porções – goles. Nem olharam para onde Celaena estava, pois tinham vencido. E ela estava feliz por isso. Que fizessem o que queriam, que Narrok a carregasse de volta a Adarlan e a atirasse aos pés do rei.
Um arranhar e esmagar de sapatos soou, então a mão pequena e macia de alguém deslizou para ela. Mas não era Chaol ou Sam ou Nehemia diante da assassina, observando-a com aqueles olhos turquesa.
Com a bochecha contra o musgo, a jovem princesa que Celaena fora – Aelin Galathynius – estendeu a mão para ela.
— Levante — disse a menina, baixinho.
Celaena sacudiu a cabeça.
Aelin a puxou, uma ponte naquele vale nas profundezas do mundo.
— Levante. — Uma promessa, a promessa de uma vida melhor, um mundo melhor.
Os príncipes valg pararam.
Havia desperdiçado a vida, desperdiçado o sacrifício de Marion. Aqueles escravos tinham sido massacrados porque ela fracassara; porque não chegara a tempo.
— Levante — disse alguém além da jovem princesa.
Sam. Sam, de pé logo além de onde Celaena enxergava, com um leve sorriso.
— Levante — disse outra voz, de mulher. Nehemia.
— Levante. — Duas vozes juntas, a mãe e o pai dela, os rostos severos, mas os olhos brilhando.
O tio estava ao lado, a coroa de Terrasen nos cabelos prateados.
— Levante — disse o tio, com carinho.
Um a um, como sombras emergindo da névoa, eles surgiram. Os rostos das pessoas que ela amara com o coração de fogo.
E então ali estava Lady Marion, sorrindo ao lado do marido.
— Levante — sussurrou ela, a voz cheia daquela esperança pelo mundo e pela filha que jamais veria de novo.
Um tremor na escuridão.
Aelin ainda estava deitada diante de Celaena, a mão ainda esticada. Os príncipes valg se viraram.
Quando os príncipes demônios se moveram, a mãe dela se aproximou, o rosto e os cabelos e o corpo tão parecidos.
— Você é uma decepção — sibilou Evalin.
O pai cruzou os braços musculosos.
— Você é tudo o que eu odiava no mundo.
O tio dela, ainda vestindo a coroa com a galhada há muito queimada até virar cinzas, falou:
— Seria melhor que tivesse morrido conosco a nos envergonhar, degradar nossa memória, trair nosso povo.
As vozes se uniam em uma espiral.
— Traidora. Assassina. Mentirosa. Ladra. Covarde. — De novo e de novo, arrastando-se para dentro, como o poder do rei de Adarlan tinha se contorcido para o interior da mente dela como um verme.
O rei não tinha feito aquilo apenas para causar confusão e feri-la. Também o fizera para separar a família de Celaena, para tirá-los do castelo; para afastar a culpa de Adarlan e fazer parecer um ataque externo.
A jovem se culpara por tê-los arrastado até a mansão para serem assassinados. No entanto, o rei planejara tudo, cada mínimo detalhe. Exceto pelo erro de deixá-la viva, talvez porque o poder do amuleto tivesse mesmo a salvado.
— Venha conosco — sussurrou a família dela. — Venha conosco para a escuridão eterna.
Eles estenderam o braço para Celaena, os rostos sombrios e distorcidos.
Mas... mas mesmo aqueles rostos, tão deturpados pelo ódio... ela ainda os amava, mesmo que a odiassem, mesmo que doesse; ela os amou até que os sussurros sumissem, até que eles sumissem como fumaça, deixando apenas Aelin ao lado de Celaena, como sempre estivera.
A assassina olhou para o rosto de Aelin – o rosto que um dia tivera – e para a mão ainda estendida, tão pequena e sem cicatrizes. A escuridão dos príncipes valg vacilou.
Havia chão firme sob ela. Musgo e grama. Não o inferno... a terra. A terra onde o reino dela estava, verde e montanhosa, e tão destemida quanto o povo que a habitava. O povo de Celaena.
Seu povo, esperando por dez anos, mas não mais.
Ela conseguia ver as montanhas Galhada do Cervo cobertas de neve, o emaranhado selvagem da floresta de Carvalhal aos pés delas e... e Orynth, aquela cidade de luz e aprendizado, um dia um pilar de força... e o lar de Celaena.
A cidade seria as duas coisas de novo.
A assassina não deixaria que aquela luz se apagasse.
Encheria o mundo com aquela luz, com a luz dela – o dom dela. A jovem acenderia a escuridão com tanta força que todos aqueles que estavam perdidos ou feridos ou partidos encontrariam o caminho até lá, um farol para aqueles que ainda viviam no abismo. Não seria preciso um monstro para destruir outro monstro, mas luz, luz para guiá-la e afastar a escuridão.
Celaena não tinha medo.
Refaria o mundo; refaria para eles, aqueles que amara com o magnífico coração incandescente; um mundo tão brilhante e próspero que, quando os visse de novo no Além-mundo, não teria vergonha. Ela o construiria para seu povo, que tinha sobrevivido tanto tempo, e que Celaena não abandonaria. Construiria para eles um reino como jamais existira, mesmo que aquilo tomasse até seu último suspiro.
Ela era sua rainha e não poderia oferecer menos que aquilo.
Aelin Galathynius sorriu com a mão ainda estendida.
— Levante — falou a princesa.
Celaena estendeu a mão pela terra entre as duas e tocou os dedos de Aelin.
Então se ergueu.
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