Capítulo 56

Alguns dias depois do massacre imperdoável e cruel dos escravos, Sorscha terminava uma carta para um amigo quando ouviu uma batida à porta da sala de trabalho. A curandeira deu um salto, rabiscando uma linha de nanquim no meio da página.
Dorian colocou a cabeça para dentro, sorrindo, mas o sorriso hesitou ao ver a carta.
— Espero não estar interrompendo — falou o príncipe ao entrar e fechar a porta. Quando ele se virou, Sorscha amassou o papel arruinado e o jogou na lata de lixo.
— De jeito nenhum — respondeu ela, sentindo arrepios conforme Dorian roçou o nariz no pescoço dela e passou os braços em volta de sua cintura. — Alguém pode entrar — reclamou a curandeira, encolhendo-se para se desvencilhar do toque.
Ele a soltou, mas os olhos brilharam como se dissesse que, quando estivessem sozinhos de novo naquela noite, talvez não se convencesse com tanta facilidade. Sorscha sorriu.
— Faça isso de novo — sussurrou Dorian.
Então ela sorriu de novo e gargalhou. E o príncipe pareceu tão espantado que a curandeira perguntou:
— O quê?
— É a coisa mais linda que já vi — disse Dorian.
Sorscha precisou virar o rosto para encontrar o que fazer com as mãos. Eles trabalharam juntos em silêncio, como de costume, agora que o rapaz sabia o que fazer na sala de trabalho. Ele gostava de ajudar a curandeira com os tônicos para outros pacientes.
Alguém tossiu à porta, e eles empertigaram-se, o coração de Sorscha disparando para a garganta. A curandeira nem notara a porta se abrindo, ou o capitão da Guarda parado ali.
O capitão entrou, e Dorian enrijeceu o corpo ao lado da curandeira.
— Capitão — falou ela —, precisa de minha assistência?
O príncipe não disse nada, o rosto estava incomumente sombrio, aqueles lindos olhos assombrados e pesarosos. Dorian passou a mão quente pela cintura de Sorscha, apoiando-a às costas dela. Chaol fechou a porta em silêncio e pareceu prestar atenção ao corredor do lado de fora por um momento antes de falar.
Ele parecia ainda mais sério que o príncipe; os ombros largos vergados sob um fardo invisível. Mas os olhos marrom-dourados estavam lúcidos ao encararem Dorian.
— Você estava certo.

***

Chaol imaginou que fosse um milagre Dorian ter concordado em fazer aquilo. O luto no rosto do príncipe naquela manhã dissera ao capitão que ele poderia pedir.
E que o amigo aceitaria.
Dorian o fez explicar tudo – aos dois. Aquele era seu preço: a verdade devida a ele e à mulher que merecia saber pelo que estaria se arriscando.
Chaol explicou tudo rápida e silenciosamente: a magia, as chaves de Wyrd, as três torres... tudo. Para crédito dela, Sorscha não se desesperou ou duvidou do capitão. Ele se perguntou se ela estava desnorteada, se estava chateada com Dorian por não ter contado antes. A jovem não revelou nada, não com aquele treinamento e o autocontrole de curandeira, mas o príncipe a observou como se pudesse ler aquela máscara impenetrável e ver o que fervilhava por baixo.
O príncipe tinha que ir, então beijou Sorscha antes de partir, murmurando algo no ouvido da curandeira que a fez sorrir. Chaol não achou que encontraria Dorian tão... feliz com a moça. Sorscha. Era uma vergonha jamais ter sabido o nome dela até aquele dia. E pelo modo como o príncipe a olhava, e ela para ele... o capitão estava feliz porque o amigo a havia encontrado.
Quando Dorian se foi, Sorscha ainda estava sorrindo, apesar do que descobrira. Aquilo a deixava realmente linda; fazia com que o rosto inteiro se abrisse.
— Acho — falou Chaol, e Sorscha se virou, as sobrancelhas erguidas, pronta para trabalhar. — Acho — disse ele de novo, com um leve sorriso — que este reino se beneficiaria de uma curandeira como rainha.
Ela não sorriu de volta, como ele gostaria. Em vez disso, pareceu profundamente infeliz quando voltou ao trabalho. Chaol saiu sem dizer mais nada a fim de se preparar para o experimento com Dorian; a única pessoa naquele castelo, talvez no mundo, que poderia ajudá-lo. Ajudar todos eles.
O príncipe tinha poder puro, dissera Celaena, poder para ser modelado como quisesse. Era a única coisa semelhante o suficiente ao poder das chaves de Wyrd, nem bom nem ruim. E cristais, Chaol tinha lido uma vez nos livros de magia da assassina, eram bons condutores de magia. Não fora difícil comprar vários no mercado – cada um tão longo quanto um dedo, brancos como a neve fresca.
Tudo estava quase pronto quando Dorian finalmente chegou em um dos túneis secretos e se sentou no chão. Velas queimavam ao redor, e Chaol explicou o plano quando terminou de despejar a última linha de areia vermelha – do deserto Vermelho, alegara o mercador – entre os três cristais. Equidistantes um do outro, eles formavam a figura que Murtaugh tinha desenhado no mapa do continente. No centro do triângulo, estava uma pequena vasilha de água.
O príncipe encarou o amigo atentamente.
— Não me culpe se eles se estilhaçarem.
— Tenho substitutos. — E o capitão tinha mesmo. Havia comprado uma dezena.
Dorian encarou o primeiro cristal.
— Você só quer que eu... concentre o poder nele?
— Então desenhe uma linha de poder para o cristal seguinte, depois o próximo, imaginando que seu objetivo é congelar a água na tigela. Só isso.
Uma sobrancelha erguida.
— Isso nem é um feitiço.
— Apenas tente — falou Chaol. — Eu não teria pedido se não fosse o único jeito.
O capitão mergulhou o dedo na tigela de água, provocando ondulações.
Ele tinha a impressão de que talvez o feitiço não exigisse mais do que poder e mera força de vontade.
O suspiro do príncipe preencheu o corredor, ecoando pelas pedras e pelo teto arqueado. Ele olhou para o primeiro cristal, representando, de forma improvisada, Forte da Fenda. Durante minutos, não houve nada. Mas, então, Dorian começou a suar, engolir em seco repetidas vezes.
— Você está...
— Estou bem — arquejou o príncipe, e o primeiro cristal começou a brilhar branco.
A luz ficou mais forte enquanto Dorian suava e resmungava como se estivesse com dor. Chaol estava prestes a pedir que parasse quando uma linha se projetou para o cristal seguinte, tão rápido que foi quase indetectável, exceto pelo leve oscilar da areia. O cristal brilhou forte, então outra linha foi disparada, seguindo para o sul. De novo, fazendo a areia mexer.
A água permanecia fluida. O terceiro cristal brilhou, e a linha final completou o triângulo, fazendo com que todos os três cristais acendessem por um momento. Então... devagar, estalando baixinho, a água congelou. Chaol conteve o horror, o horror e o espanto diante de quanto o controle de Dorian tinha aumentado.
A pele do príncipe estava pálida e brilhava com suor.
— Foi assim que ele fez, não foi?
O capitão assentiu.
— Dez anos atrás, com aquelas três torres. Todas foram construídas antes para que isso pudesse acontecer exatamente quando as forças invasoras estivessem prontas, assim ninguém poderia contra-atacar. O feitiço de seu pai deve ser bem mais complexo, por ter congelado a magia por inteiro, mas, em um nível mais básico, isto é provavelmente semelhante ao que ocorreu.
— Quero ver onde estão, as torres. — Chaol fez que não com a cabeça, mas o amigo falou: — Você já me contou todo o resto. Mostre a droga do mapa.
Com um gesto da mão, um deus destruindo um mundo, Dorian derrubou um cristal, liberando o poder. O gelo derreteu, a água ondulou e se agitou na tigela.
Simples assim. Chaol piscou.
Se pudessem derrubar uma torre... Era um risco tão grande. Precisavam ter certeza antes de agir. O capitão pegou o mapa que Murtaugh tinha marcado, o mapa que não ousava deixar em lugar algum.
— Aqui, aqui e aqui — disse ele, apontando para Forte da Fenda, Amaroth e Noll. — É onde sabemos que torres foram construídas. Torres de vigilância, mas todas as três têm as mesmas características: pedra preta, gárgulas...
— Quer dizer que a torre do relógio no jardim é uma delas? — Chaol assentiu, ignorando a risada de incredulidade.
— É o que achamos.
O príncipe se debruçou sobre o mapa, apoiando a mão no chão e traçando uma linha de Forte da Fenda para Amaroth, então de Forte da Fenda para Noll.
— A linha norte corta o desfiladeiro Ferian; a sul corta Morath diretamente. Você disse a Aedion que achava que meu pai tinha mandado Roland e Kaltain para Morath, com qualquer outro nobre com magia no sangue. Quais são as chances de isso ser mera coincidência?
— E o desfiladeiro Ferian... — Chaol engoliu em seco. — Celaena disse que ouvira falar de asas no desfiladeiro. Nehemia disse que seus batedores não haviam voltado, que alguma coisa estava sendo criada ali.
— Dois locais para criar qualquer que seja o exército que está reunindo, talvez usando esse poder conforme estabelece uma corrente pelos locais.
— Três. — Chaol apontou para as ilhas Mortas. — Recebemos relatos de que algo estranho estava sendo criado ali... e que foi enviado para Wendlyn.
— Mas meu pai mandou Celaena para lá. — O príncipe xingou. — Não tem como avisá-los?
— Já tentamos.
Dorian limpou o suor da testa.
— Então está trabalhando com eles... está do lado deles.
— Não. Eu não sei. Nós só compartilhamos informações. Mas tudo isso é informação que nos ajuda. Ajuda você.
Os olhos do amigo ficaram mais severos, e Chaol encolheu o corpo quando uma brisa fria passou.
— Então, o que vai fazer? — perguntou Dorian. — Apenas... derrubar a torre do relógio?
Destruir a torre do relógio era um ato de guerra; um ato que poderia colocar em perigo as vidas de muitas pessoas. Não teria volta. Ele nem mesmo queria contar a Aedion ou Ren, por medo do que fariam. Não pensariam duas vezes antes de incinerá-la, talvez matando todos naquele castelo no processo.
— Não sei. Não sei o que fazer. Você estava certo quanto a isso.
Chaol queria ter mais alguma coisa a dizer, mas mesmo conversa fiada era um esforço agora. Ele estava reduzindo o número de candidatos que poderiam substituí-lo como capitão da Guarda, mandando mais baús para Anielle toda semana e mal conseguia encarar os próprios homens. Quanto a Dorian... havia tanto ainda entre os dois.
— Agora não é a hora — argumentou o príncipe, baixinho, como se pudesse ler a mente de Chaol.
O capitão engoliu em seco.
— Quero agradecer você. Sei que o que está arriscando é...
— Estamos todos arriscando alguma coisa. — Havia tão pouco do amigo com quem Chaol crescera. O príncipe olhou para o relógio de bolso. — Preciso ir. — Dorian caminhou até as escadas, e não havia medo no rosto dele, nenhuma dúvida, ao dizer: — Você me contou a verdade hoje, então vou compartilhar a minha: mesmo que nos fizesse ser amigos de novo, não acho que eu queira voltar ao modo como era antes, a quem eu era antes. E isto... — Dorian indicou com o queixo os cristais caídos e a tigela d’água. — Acho que é uma boa mudança também. Não tenha medo.
O rapaz foi embora; Chaol abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. Ele estava chocado demais. Quando Dorian falou, não fora um príncipe quem olhou para ele.
Fora um rei.

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