Capítulo 6

Dorian Havilliard estava diante da mesa de café da manhã do pai, as mãos entrelaçadas às costas. O rei chegara momentos antes, mas não mandara o filho se sentar. Antes, o príncipe poderia ter reclamado. Mas ter magia, ser arrastado para dentro das confusões de Celaena, ver aquele outro mundo nos túneis secretos... Essas coisas todas haviam mudado tudo. O melhor que podia fazer ultimamente era manter discrição – para evitar que o pai, ou qualquer outro, voltasse a atenção por tempo demais em sua direção. Então, Dorian ficou de pé diante da mesa e esperou.
O rei de Adarlan terminou o frango assado e tomou o que quer que estivesse na taça vermelho-sangue.
— Está calado esta manhã, príncipe. — O conquistador de Erilea estendeu a mão para uma bandeja de peixe defumado.
— Estava esperando que você falasse, pai.
Olhos pretos como a noite se voltaram para ele.
— Incomum, de fato.
Dorian ficou tenso. Apenas Celaena e Chaol sabiam a verdade sobre sua magia – e o capitão se fechara tão completamente que o príncipe não sentia vontade de tentar se explicar para o amigo. Mas aquele castelo estava cheio de espiões e bajuladores que não queriam outra coisa além de usar qualquer conhecimento adquirido para subir de posição. Inclusive delatar o príncipe herdeiro. Como saber quem o tinha visto nos corredores ou na biblioteca, ou havia descoberto aquela pilha de livros que Dorian escondera nos aposentos de Celaena? Desde então, ele movera os livros para a tumba, para a qual ia noite sim, noite não; não em busca de respostas às perguntas que o atormentavam, mas apenas por uma hora de puro silêncio.
Seu pai voltou a comer. O príncipe visitara os aposentos particulares do rei apenas algumas vezes na vida. Por si só, podiam ser uma mansão, com biblioteca e sala de jantar e câmara do conselho. Ocupavam uma ala inteira do castelo de vidro – uma ala oposta àquela da mãe de Dorian. Os pais jamais tinham compartilhado a cama, e o filho não queria exatamente saber mais que isso.
Ele percebeu que o pai o observava; o sol da manhã penetrava a parede curva de vidro e tornava cada cicatriz e marca no rosto do rei ainda mais horrível.
— Você deve entreter Aedion Ashryver hoje.
Dorian manteve a compostura o melhor que pôde.
— Posso perguntar por quê?
— Como o general Ashryver veio sem seus homens, parece que tem algum tempo livre enquanto espera a chegada da Devastação. Seria benéfico que os dois se conhecessem melhor, principalmente quando sua escolha de amigos ultimamente anda tão... comum.
O ódio frio da magia subiu pela espinha do príncipe.
— Com todo respeito, pai, tenho duas reuniões para as quais devo me preparar, e...
— Não está aberto a debate. — O rei continuou comendo. — O general Ashryver foi informado, e você o encontrará do lado de fora de seus aposentos ao meio-dia.
Dorian sabia que deveria ficar quieto, mas se viu perguntando:
— Por que tolera Aedion? Por que o mantém vivo, por que faz dele general? — Ele não conseguia parar de pensar nisso desde a chegada do homem.
O soberano deu um sorriso breve e sábio.
— Porque o ódio de Aedion é uma lâmina útil, e ele é capaz de manter o próprio povo sob controle. Não arriscará a aniquilação deles, não depois de perder tanto. Aedion subjugou muitas possíveis rebeliões no norte devido a esse medo, pois está ciente de que seu povo, os civis, seriam os primeiros a sofrer.
Ele tinha um laço de sangue com aquele homem tão cruel. Contudo, Dorian falou:
— Ainda é surpreendente que você mantenha um general praticamente como prisioneiro, como pouco mais que um escravo. Controlá-lo somente pelo medo parece potencialmente perigoso.
De fato, o príncipe se perguntava se o pai tinha contado a Aedion sobre a missão de Celaena a Wendlyn – terra natal da linhagem real do general, onde seus primos, os Ashryver, ainda governavam. Embora Aedion anunciasse as diversas vitórias sobre os rebeldes e agisse como se praticamente fosse dono, sozinho, de metade do império... Quanto ele se lembrava da própria linhagem do outro lado do mar?
O rei respondeu:
— Tenho minhas formas de conter Aedion, caso precise. Por enquanto, a irreverência cáustica do general me diverte. — O homem indicou a porta com o queixo. — Não acharei divertido, no entanto, se você perder o compromisso com ele hoje.
E com isso, o rei o jogou ao Lobo.

***

Apesar das ofertas de Dorian de mostrar a Aedion a coleção de animais selvagens, os canis, os estábulos – até a porcaria da biblioteca – o general só queria fazer uma coisa: caminhar pelos jardins. Ele alegava se sentir inquieto e preguiçoso, devido ao excesso de comida na noite anterior, mas o sorriso que deu ao príncipe sugeria outra coisa.
Aedion não se incomodou em conversar com Dorian, pois estava preocupado demais em murmurar canções obscenas e inspecionar as diversas mulheres pelas quais passavam. Ele perdeu os modos quase civilizados apenas uma vez, quando seguiam por um caminho estreito ladeado por altas roseiras – exuberantes no verão, mas mortais no inverno – e os guardas estavam uma esquina atrás, momentaneamente cegos. Foi tempo o suficiente para que Aedion sutilmente fizesse o príncipe tropeçar sobre uma das cercas espinhentas enquanto o general ainda murmurava as canções lascivas.
Uma rápida manobra evitara que caísse de cara nos espinhos, mas o manto rasgou e a mão foi perfurada. Em vez de dar ao homem a satisfação de vê-lo sibilar e verificar os cortes, Dorian enfiou os dedos latejando e congelados nos bolsos, no momento em que os guardas viravam a esquina.
Eles só falaram quando Aedion parou ao lado de uma fonte e levou as mãos cheias de cicatrizes até os quadris, avaliando o jardim além, como se fosse um campo de batalha. O general deu um risinho debochado para os seis guardas que espreitavam atrás, os olhos muito, muito brilhantes e tão estranhamente familiares, pensou Dorian ao ouvi-lo comentar:
— Um príncipe precisa de escolta na própria casa? Me sinto insultado por não terem enviado mais guardas para proteger você de mim.
— Acha que consegue derrotar seis homens?
O Lobo soltou uma gargalhada e deu de ombros, o cabo marcado da Espada de Orynth refletiu a luz do sol quase ofuscante.
— Não acho que deveria contar, caso seu pai algum dia decida que minha utilidade não vale meu temperamento.
Alguns dos guardas atrás murmuraram, mas Dorian respondeu:
— Provavelmente não.
E foi isso; tudo o que Aedion disse durante o resto da caminhada fria e insuportável. Até que o general lançou um sorriso torto a Dorian e falou:
— Melhor pedir para olharem isso. — Foi quando o rapaz percebeu que a mão direita ainda sangrava. Aedion simplesmente se virou. — Obrigado pela caminhada, príncipe — disse o general, por cima do ombro, e pareceu mais com uma ameaça que qualquer outra coisa.
Aedion não agia sem motivo. Talvez tivesse convencido o rei a ordenar aquela excursão. Mas, com qual propósito, Dorian não podia adivinhar. A não ser que o general simplesmente quisesse ter uma noção do tipo de homem que o príncipe tinha se tornado e de quão bem podia jogar. Ele não diria que estava além do guerreiro fazer aquilo apenas para avaliar um potencial aliado ou uma ameaça; Aedion, apesar de toda a arrogância, tinha a mente aguçada. Provavelmente enxergava a vida na corte como outro tipo de campo de batalha.
Dorian deixou que os guardas selecionados a dedo pelo capitão o levassem de volta ao castelo maravilhosamente aquecido, então os dispensou com um aceno de cabeça. Chaol não fora naquele dia, e o príncipe ficara grato – depois da conversa sobre sua magia, depois do amigo se recusar a falar sobre Celaena, Dorian não tinha certeza do que restava para os dois conversarem. Ele não acreditava por um segundo que Chaol, sem relutância, sancionaria as mortes de homens inocentes, não importava se fossem amigos ou inimigos. Então o capitão tinha que saber que Celaena não assassinaria a realeza Ashryver, por quaisquer que fossem os motivos. No entanto, não havia razão para se incomodar em conversar com Chaol, não quando o amigo também guardava segredos.
Dorian ruminou as palavras enigmáticas do capitão mais uma vez, conforme seguia para as catacumbas dos curandeiros, o cheiro de alecrim e hortelã pairando no ar. Era uma ala de suprimentos e exames, mantida longe dos olhos curiosos do castelo de vidro, que ficava bem acima. Havia outra ala no alto do castelo para aqueles que não ousavam fazer a caminhada até embaixo, mas era ali que os melhores curandeiros de Forte da Fenda – e de Adarlan – cultivavam e praticavam sua arte havia mil anos. As pedras pálidas pareciam respirar a essência de séculos de ervas secas, dando uma sensação agradável e aberta aos corredores subterrâneos.
Dorian encontrou uma pequena sala de trabalho na qual uma jovem estava curvada sobre uma longa mesa de carvalho, uma variedade de frascos de vidro, balanças, almofarizes e pilões diante dela, além de frascos de líquido, ervas penduradas e panelas borbulhantes sobre pequenas chamas solitárias. A arte da cura era uma das poucas que o rei não tinha tornado completamente ilegal, dez anos antes – embora antigamente, Dorian ouvira falar, tivessem sido muito mais poderosas. Antigamente, curandeiros usavam magia para curar e salvar. Agora, restava a eles o que quer que a natureza fornecesse.
O príncipe entrou na sala, e a jovem ergueu o rosto do livro que verificava, um dedo parando em uma das páginas. Não era linda, mas era... bonita. Limpa, de feições elegantes, com cabelos castanhos presos em trança e a pele dourada, o que sugeria pelo menos um ascendente de Eyllwe.
— Posso... — Então ela deu uma boa olhada nele e caiu em reverência. — Vossa Alteza — disse a jovem, a vermelhidão subindo pela extensão macia do pescoço.
Dorian ergueu a mão ensanguentada.
— Arbusto espinhento. — Roseira fazia os cortes parecerem muito mais patéticos.
A moça manteve os olhos desviados, mordendo o carnudo lábio inferior.
— É claro. — Ela indicou com a mão esguia a cadeira de madeira diante da mesa. — Por favor. A não... a não ser que prefira ir para uma sala de exames mais adequada?
Dorian costumava odiar lidar com pessoas gaguejando e atrapalhadas, mas aquela jovem ainda estava tão corada e falava tão baixo que ele respondeu:
— Não tem problema. — Então sentou na cadeira.
O silêncio pesou sobre o príncipe enquanto a jovem percorria a sala, primeiro trocando o avental branco sujo, em seguida lavando as mãos por um longo minuto, depois reunindo todo tipo de ataduras e latas de sálvia, assim como uma vasilha com água quente e retalhos limpos, até que, enfim, ela levou uma cadeira até o outro lado da mesa, diante de Dorian.
Os dois tampouco se falaram enquanto a jovem cuidadosamente limpou e, então, lhe examinou a mão. Mas Dorian se viu observando os olhos de avelã, a determinação dos dedos da moça e a vermelhidão que permanecia no pescoço, assim como no rosto.
— A mão é... muito complexa — murmurou a jovem, por fim, avaliando os cortes. — Só queria me certificar de que nada estava danificado e verificar se ainda havia algum espinho. — A curandeira rapidamente acrescentou: — Vossa Alteza.
— Acho que parece pior do que está.
Com um toque leve como pena, a moça passou um unguento escuro na mão de Dorian, que se encolheu, como um tolo.
— Desculpe — murmurou a jovem. — É para esterilizar os cortes. Só por precaução.
Ela pareceu se encolher, como se o príncipe fosse ordenar que a enforcassem só por aquilo.
Ele teve dificuldades em encontrar as palavras, então disse:
— Já lidei com pior.
Pareceu idiota em voz alta, e a menina parou por um momento antes de pegar as ataduras.
— Eu sei — respondeu ela, fitando-o.
Ah, que droga. Não eram lindos aqueles olhos? A moça rapidamente abaixou o rosto, envolvendo a mão de Dorian com cuidado.
— Estou alocada na ala sul do castelo e costumo servir no turno da noite.
Isso explicava por que parecia tão familiar. Ela havia curado não apenas Dorian naquela noite um mês antes, mas também Celaena, Chaol, Ligeirinha... estivera ali para todos os ferimentos durante os últimos sete meses.
— Desculpe, não lembro seu nome...
— É Sorscha — respondeu a moça, embora não houvesse raiva na voz, como deveria haver.
O príncipe mimado e os amigos presunçosos, envolvidos demais com as próprias vidas para se incomodarem em aprender o nome da curandeira que os remendara diversas vezes.
Sorscha terminou de atar a mão de Dorian, e ele falou:
— Caso não tenhamos dito o suficiente, obrigado.
Aqueles olhos castanhos salpicados de verde se ergueram de novo. Um sorriso hesitante.
— É uma honra, príncipe. — A moça começou a reunir os suprimentos.
Tomando isso como a deixa para partir, ele ficou de pé e flexionou os dedos.
— Parece bom.
— São ferimentos leves, mas fique de olho. — Sorscha jogou a água ensanguentada na pia nos fundos da sala. — E não precisa vir até aqui da próxima vez. Apenas... apenas mande chamar, Vossa Alteza. Ficamos felizes em cuidar de você.
Ela fez uma curta reverência, com a graça esguia de uma dançarina.
— Você foi responsável pela ala de pedra sul esse tempo todo? — A pergunta dentro da pergunta era bem clara: Viu tudo? Cada ferimento inexplicável?
— Mantemos registros de nossos pacientes — explicou Sorscha baixinho, para que ninguém passando pela porta aberta pudesse ouvir. — Mas, às vezes, esquecemos de escrever tudo.
Ela não havia contado a ninguém o que vira, as coisas que não faziam sentido. Dorian fez uma ágil reverência em agradecimento e saiu da sala.
Quantos mais, imaginou ele, teriam visto mais do que deixavam transparecer? O rapaz não queria saber.

***

Ainda bem que os dedos de Sorscha tinham parado de tremer quando o príncipe herdeiro saiu das catacumbas. Por alguma graça de Silba, deusa dos curandeiros e mensageira da paz – e das mortes tranquilas – a jovem conseguira evitar que tremessem enquanto remendava a mão dele também. Sorscha se recostou no balcão e soltou um longo suspiro.
Os cortes não precisavam de ataduras, mas fora egoísta e tola, e quisera manter o lindo príncipe naquela cadeira por quanto tempo pudesse.
Dorian nem mesmo sabia quem ela era.
Tinha sido designada curandeira havia um ano, e fora chamada para cuidar do príncipe, do capitão e da amiga deles inúmeras vezes. E o príncipe herdeiro ainda não fazia ideia de quem ela era.
A jovem não mentira para Dorian – sobre deixar de manter registros a respeito de tudo. Mas se lembrava de tudo. Principalmente daquela noite, há um mês, quando os três estavam ensanguentados e imundos, e o cão da menina estava ferido também, sem qualquer explicação e sem que ninguém fizesse qualquer escândalo. E a garota, a amiga deles...
A campeã do rei. Era isso o que ela era.
Amante, parecia, tanto do príncipe quanto do capitão, em um ou outro momento. Sorscha tinha ajudado Amithy a cuidar da jovem depois do duelo violento para vencer o título. De vez em quando, ia verificar a paciente e encontrava o príncipe abraçado com ela na cama.
A curandeira fingia que não importava, porque o príncipe herdeiro era famoso no que dizia respeito às mulheres, mas... aquilo não impedira a dor lancinante em seu peito. Então as coisas mudaram: quando a garota acabou envenenada com gloriella, foi o capitão quem ficou com ela. O capitão quem agiu como uma besta enjaulada, montando guarda no quarto até que os nervos da própria Sorscha estivessem abalados. Não era de surpreender que diversas semanas depois, a criada da menina, Philippa, tivesse ido até a curandeira em busca de um tônico contraceptivo. Philippa não dissera para quem era, mas Sorscha não era idiota.
Uma semana depois, ao cuidar do capitão – quatro arranhões violentos no rosto e um olhar vazio – a jovem entendera. E entendera de novo da última vez, ao ver o príncipe, o capitão e a garota todos ensanguentados, junto ao cão: o que quer que tivesse existido entre os três tinha se partido.
A garota principalmente. Celaena, Sorscha ouvira os dois dizerem acidentalmente quando achavam que já estava fora do quarto. Celaena Sardothien. A maior assassina do mundo e agora campeã do rei. Outro segredo que a curandeira guardaria sem que jamais soubessem.
Ela era invisível. E ficava feliz por isso na maioria das vezes.
Sorscha franziu a testa para a mesa de suprimentos. Tinha meia dúzia de tônicos e cataplasmas para fazer antes do jantar, todos complexos, todos impostos a ela por Amithy, que usava a posição superior sempre que podia. Acima de tudo, ainda tinha a carta semanal para escrever ao amigo, que queria cada detalhe sobre o palácio. Só em pensar nas tarefas sentia dor de cabeça.
Se fosse qualquer outra pessoa que não o príncipe, Sorscha teria dito para encontrar outro curandeiro.
A moça voltou a trabalhar. Tinha certeza de que Dorian esquecera seu nome assim que saiu. Era o herdeiro do império mais poderoso do mundo, e ela era a filha de dois imigrantes, já mortos, de uma aldeia em Charco Lavrado que tinha sido totalmente queimada; uma aldeia da qual ninguém sequer se lembraria.
Mas isso não a impedia de amá-lo, como ainda fazia, invisível e secretamente, desde que colocara os olhos em Dorian seis anos antes.

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