Capítulo 62
Manon atingiu Keelie, e a besta gritou, mas se segurou quando a bruxa se atirou contra o vento para a sela da qual Petrah pendia. As mãos dela estavam rígidas, as luvas a deixaram ainda mais atrapalhada ao cortar com uma faca os couros, um após o outro. Abraxos rugiu em aviso. A abertura do cânion se aproximava. Que a Escuridão tivesse piedade dela.
Então Manon libertou a herdeira das Sangue Azul, que era um peso morto em seus braços, os cabelos de Petrah açoitavam o rosto de Manon como milhares de facas minúsculas. Ela amarrou uma extensão do couro ao redor de ambas. Uma vez. Duas vezes. A Bico Negro deu um nó, entrelaçando os braços nos de Petrah. Keelie se manteve equilibrada. As faces do cânion se fechavam ao redor, sombras por toda parte. Manon gritou devido ao peso quando puxou a bruxa para cima, tirando-a dos estribos e da sela.
Rochas passavam em disparada, mas uma sombra bloqueou o sol, e lá estava Abraxos, mergulhando para pegá-las, descendo, pequeno e brilhante. Era a única serpente alada que vira descer naquela velocidade no cânion.
— Obrigada — falou Manon para Keelie, ao se jogar com Petrah no ar.
As duas caíram por um segundo, girando e descendo rápido demais, mas então Abraxos estava ali, de garras estendidas. A criatura as agarrou, inclinando o corpo para a lateral do cânion e para cima das beiradas, subindo para a segurança do ar.
Keelie atingiu o chão do cânion com uma batida que pôde ser ouvida do outro lado das montanhas.
Ela não subiu de novo.
***
As Bico Negro venceram os Jogos de Guerra, e Manon foi coroada Líder Alada diante de todos aqueles homens pomposos e suados de Adarlan. Eles a chamaram de heroína e de verdadeira guerreira, e mais besteiras como essas. Contudo, ao apoiar Petrah na plataforma de observação, Manon vira o rosto da avó. Vira o desprezo.
A herdeira ignorou a Matriarca das Sangue Azul, que ficou de joelhos para agradecê-la. Nem mesmo viu Petrah quando foi carregada.
No dia seguinte, diziam os boatos que a líder das Sangue Azul não se levantaria da cama. Diziam que ficara com a alma partida quando Keelie morreu.
Um acidente infeliz provocado por serpentes aladas incontroláveis, clamara a Matriarca das Pernas Amarelas, e Iskra repetiu. Mas Manon ouvira o comando da bruxa inimiga para matar.
Poderia ter denunciado Iskra, poderia tê-la desafiado, se Petrah não tivesse ouvido o comando também. A vingança tinha que ser reivindicada pela Sangue Azul.
Manon deveria ter deixado a bruxa morrer, gritara a avó naquela noite ao golpear a neta diversas vezes pela falta de obediência. Falta de brutalidade. Falta de disciplina.
A herdeira não pediu desculpas. Não conseguia parar de ouvir o som feito por Keelie quando atingiu o chão. E parte dela, talvez uma parte fraca e indisciplinada, não se arrependia de ter garantido que o sacrifício do animal não fosse em vão.
De todos os outros, Manon aguentou os louvores direcionados a ela e aceitou as reverências de cada droga de aliança, independentemente da linhagem.
Líder Alada. Disse para si mesma, em silêncio, conforme ela e Asterin, com metade das Treze as seguindo, aproximavam-se do salão de refeições no qual a comemoração ocorreria.
A outra metade já estava ali, avaliando o local com antecedência, em busca de qualquer potencial ameaça ou armadilha. Agora que era Líder Alada, agora que tinha humilhado Iskra, as outras seriam ainda mais cruéis – para depreciar Manon e lhe reivindicar a posição.
A multidão estava alegre, os dentes de ferro reluzindo por todo canto, e cerveja – cerveja de verdade e fresca, levada por aqueles homens horríveis de Adarlan – se agitava nas canecas. Uma caneca foi empurrada para a mão de Manon, mas Asterin a puxou para si, tomou uma golada e esperou antes de devolver.
— Envenenar você não está fora dos planos delas — falou a imediata, piscando um olho conforme as duas seguiam para a frente do salão, onde as três Matriarcas esperavam.
Aqueles homens nos Jogos tinham feito uma pequena cerimônia, mas aquela era para as bruxas; aquela era para Manon.
Ela escondeu o sorriso quando a multidão se abriu, deixando que passasse.
As três Grã-Bruxas estavam sentadas em tronos improvisados, pouco mais que cadeiras ornamentadas que haviam encontrado. A Matriarca das Sangue Azul sorriu quando Manon levou dois dedos à testa. A Matriarca das Pernas Amarelas, por outro lado, não fez nada. Contudo, a avó de Manon, sentada no centro, deu um leve sorriso.
Um sorriso de víbora.
— Bem-vinda, Líder Alada — disse sua avó, e um grito irrompeu entre as bruxas, exceto pelas Treze, que ficaram calmas e quietas. Não precisavam torcer, pois eram imortais e infinitas, e gloriosa e maravilhosamente letais.
— Que presente podemos dar, que coroa podemos entregar, para honrar o que você fará por nós? — ponderou a avó de Manon. — Você tem uma bela espada, uma aliança destemida — todas as Treze se permitiram o indício de um sorriso — o que mais poderíamos dar que não possui?
A neta fez uma reverência com a cabeça.
— Não há nada que eu deseje, exceto pela honra que já me concedeu.
A Matriarca das Bico Negro riu.
— Que tal um novo manto?
Manon enrijeceu o corpo. Não podia recusar, mas... aquele era seu manto, sempre fora.
— Esse daí parece um pouco surrado — continuou a Grã-Bruxa, gesticulando com a mão para alguém na multidão. — Então, eis nosso presente para você, Líder Alada: um substituto.
Resmungos e xingamentos foram ouvidos, mas a multidão arquejou – faminta em antecipação – quando uma bruxa de cabelos castanhos, acorrentada, foi empurrada para a frente por um grupo de três Pernas Amarelas e forçada a ficar de joelhos diante de Manon.
Se o rosto destruído, os dedos quebrados, as lacerações e as queimaduras não denunciassem quem era a bruxa, então o manto vermelho-sangue o faria.
A bruxa Crochan, com os olhos da cor sólida de terra recém-arada, ergueu o rosto para Manon. Como aqueles olhos estavam tão brilhantes apesar dos horrores estampados em seu corpo, como a bruxa não desabou bem ali ou começou a implorar, a líder não sabia.
— Um presente — falou a avó, estendendo a mão com pontas de ferro para a Crochan. — Digno de minha neta. Acabe com a vida dela e pegue o novo manto.
Manon reconheceu o desafio. Mesmo assim, sacou a adaga, e Asterin se aproximou, observando a Crochan.
Por um momento, a herdeira Bico Negro encarou a bruxa com raiva, sua inimiga mortal. As Crochan as haviam amaldiçoado, as tornaram eternas exiladas. Mereciam morrer, cada uma delas.
No entanto, não foi a própria voz que disse essas coisas na cabeça dela. Não, por algum motivo, foi a voz de sua avó.
— Quando quiser, Manon — cantarolou a Matriarca.
Soluçando, com os lábios rachados e sangrando, a bruxa Crochan olhou para Manon e riu.
— Manon Bico Negro — sussurrou ela, no que poderia ser um sotaque cantarolado se os dentes não estivessem quebrados, a garganta coberta de arranhões. — Conheço você.
— Mate a vadia! — gritou uma bruxa nos fundos do salão.
A líder encarou o rosto da inimiga e ergueu as sobrancelhas.
— Sabe como chamamos você? — Sangue escorreu pelos lábios da Crochan, retraídos em um sorriso. Ela fechou os olhos, como se o saboreasse. — Nós a chamamos de Demônio Branco. Está em nossa lista, uma lista com todas vocês, monstros que devem ser mortos imediatamente se algum dia nos encontrarmos. E você... — A bruxa abriu os olhos e sorriu, desafiadora, furiosa. — Você está no topo da lista. Por tudo o que fez.
— É uma honra — retrucou Manon, sorrindo o suficiente para mostrar os dentes.
— Corte a língua dela! — gritou outra pessoa.
— Acabe com ela — chiou Asterin.
A Bico Negro virou a adaga, inclinando-a para enterrar a arma no coração da Crochan.
A bruxa gargalhou, mas o som se tornou uma tosse que a fez ofegar até que sangue azul se esparramasse no chão, até que lágrimas escorressem dos olhos e Manon tivesse um lampejo dos ferimentos profundos e infeccionados no peito dela. Quando ergueu a cabeça, o sangue manchando os cantos da boca, ela sorriu de novo.
— Olhe o quanto quiser. Olhe o que fizeram comigo, suas irmãs. Como deve ser doloroso para elas saberem que não puderam me fazer ceder no fim.
Manon encarou a bruxa, aquele corpo destruído.
— Sabe o que é isso, Manon Bico Negro? — indagou a Crochan. — Porque eu sei. Ouvi dizer o que você fez durante os Jogos.
Manon não tinha certeza de por que a deixava falar, mas não poderia ter se movido se quisesse.
— Isso — disse a inimiga para que todos ouvissem — é um lembrete. Minha morte, meu assassinato pelas suas mãos, é um lembrete. Não para elas — a bruxa respirou, encarando Manon com aquele olhar marrom-terra. — Mas para você. Um lembrete do que fizeram você se tornar. Elas a fizeram dessa forma. Quer saber qual é o grande segredo das Crochan? — continuou a bruxa. — Nossa grande verdade que escondemos de vocês, que guardamos com nossa vida? Não é onde nos escondemos ou como quebrar sua maldição. Vocês sabiam esse tempo todo como quebrá-la, sabem há quinhentos anos que a salvação está em suas mãos, apenas. Não, nosso grande segredo é que sentimos pena de vocês.
Ninguém falava agora.
Mas a Crochan não deixou de encarar Manon, que não abaixou a adaga.
— Sentimos pena de vocês, cada uma de vocês. Pelo que fazem com suas crianças. Elas não nascem más, mas vocês as obrigam a matar e ferir e odiar até que não reste mais nada dentro delas, de vocês. É por isso que está aqui esta noite, Manon. Por causa da ameaça que representa ao monstro que você chama de avó. A ameaça que representou quando escolheu ter piedade e salvar a vida de sua rival. — A bruxa tomou fôlego, lágrimas fluíam livremente ao exibir os dentes. — Elas transformaram vocês em monstros. Transformaram, Manon. E nós sentimos pena de vocês.
— Basta — disse a Matriarca atrás dela. Mas o salão inteiro estava silencioso, e a jovem ergueu os olhos devagar para a avó.
Neles, viu a promessa de violência e dor que viria se desobedecesse. Fora isso, não havia nada além de satisfação ali. Como se a Crochan tivesse dito a verdade, mas apenas a Matriarca das Bico Negro soubesse disso.
Os olhos da prisioneira ainda brilhavam com uma coragem que Manon não compreendia.
— Faça — sussurrou a Crochan.
A herdeira das Bico Negro se perguntou se mais alguém entendia que aquilo não era um desafio, mas uma súplica.
A líder inclinou a adaga de novo, girando-a na palma da mão. Não olhou para a Crochan, ou para a avó, ou para mais ninguém quando segurou os cabelos da bruxa, puxando a cabeça para trás.
Então abriu sua garganta no chão.
***
Com as pernas pendendo na beira do abismo, Manon estava sentada em um planalto sobre um pico nas montanhas Ruhnn, Abraxos esparramado ao lado, sentindo o cheiro das flores que se abriam à noite no campo de primavera.
Manon não teve escolha a não ser tomar o manto da Crochan e jogar o velho sobre o corpo que caiu, assim que as bruxas se reuniram para despedaçar a prisioneira.
Elas transformaram vocês em monstros.
Manon olhou para a serpente alada, a ponta da cauda se agitava como a de um gato. Ninguém tinha reparado quando a bruxa deixou a comemoração. Até Asterin estava bêbada com o sangue da Crochan e a tinha perdido de vista conforme a líder deslizou entre a multidão. A líder avisou a Sorrel, no entanto, que iria ver Abraxos, e a terceira na hierarquia, por algum motivo, deixou que fosse sozinha.
Os dois voaram até que a lua estivesse alta e Manon não pudesse mais ouvir os gritos e as gargalhadas das bruxas na Ômega. Juntos, sentaram-se no último pico das Ruhnn, e a bruxa olhou pela extensão plana infinita entre os picos e o mar ao oeste. Em algum lugar lá fora, além do horizonte, havia um lar que ela jamais conhecera.
As Crochan eram mentirosas e insuportavelmente tagarelas. A bruxa provavelmente gostara de dar o pequeno discurso – fazendo alguma última resistência grandiosa. Nós sentimos pena de vocês.
Manon esfregou os olhos e apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando para a queda abaixo.
Teria ignorado a inimiga, não teria pensado duas vezes sobre aquilo, não fosse o olhar de Keelie ao cair, lutando com cada última gota de força para salvar sua Petrah. Ou pela asa de Abraxos, protegendo Manon contra a chuva gelada.
As serpentes aladas foram feitas para matar e ferir e causar terror nos corações dos inimigos. No entanto...
No entanto. A bruxa olhou para o horizonte salpicado de estrelas, inclinando o rosto para uma brisa quente de primavera, feliz pelo companheiro constante, sólido que estava deitado atrás dela. Uma sensação estranha, aquela gratidão por aquela existência.
Então havia uma outra sensação estranha que a puxava e empurrava, fazendo com que ela revivesse a cena no salão de refeições diversas e diversas vezes.
Jamais conhecera arrependimento; não o arrependimento verdadeiro, de toda forma.
Contudo, arrependia-se de não saber o nome da Crochan. Manon se arrependia de não saber a quem pertencera o novo manto nos ombros, de onde viera a bruxa, como vivera.
De alguma forma, embora a longa vida de Manon tivesse se perdido há dez anos...
De alguma forma, aquele arrependimento a fez se sentir incrível e pesadamente mortal.
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