Capítulo 1

Shepley

América parecia um anjo, pressionando o telefone no ouvido, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Mesmo não sendo lágrimas de felicidade, ela não era nada menos que linda.
Ela digitou na tela e segurou o celular no espaço entre as pernas cruzadas. A grossa capa pink estava apoiada na cama formada por seus dedos elegantes e na saia longa verde-oliva, me lembrando do nosso primeiro encontro — que por acaso foi no primeiro dia em que nos encontramos... assim como outros “primeiros”. Eu já a amara naquele dia, mas amava ainda mais agora, sete meses e um término depois, mesmo com o rosto manchado de rímel e os olhos injetados.
— Eles estão casados. — América soltou uma risada e secou o nariz.
— Eu ouvi. O Honda está no aeroporto, então? Posso te levar até lá e te seguir até o apartamento. Quando é que o voo deles chega?
Ela fungou, irritada consigo mesma.
— Por que estou chorando? O que há de errado comigo? Nem estou surpresa. Nada do que eles fazem me surpreende mais!
— Dois dias atrás, nós achamos que eles tinham morrido. Agora a Abby é esposa do Travis... e você acabou de conhecer os meus pais. Foi um fim de semana pesado, baby.
Não se cobre demais.
Peguei sua mão e ela pareceu relaxar, mas não demorou muito para se enfurecer novamente.
— Agora você é parente dela — falou. — Eu sou só a amiga. Todo mundo é parente, menos eu. Sou só uma estranha.
Envolvi o braço no pescoço dela e a puxei para o meu peito, beijando seu cabelo.
— Você vai ser parte da família em breve.
Ela me empurrou para longe, com mais um pensamento incômodo flutuando em sua cabecinha linda.
— Eles acabaram de se casar, Shep.
— E daí?
— Pensa bem. Eles não vão querer dividir o apartamento.
Minhas sobrancelhas se aproximaram. Que merda vou fazer agora?
Assim que a resposta pipocou em minha mente, sorri.
— Mare.
— Quê?
— A gente devia alugar um apartamento.
Ela balançou a cabeça.
— Já falamos sobre isso.
— Eu sei, mas quero falar de novo. O Travis e a Abby terem se casado é a desculpa perfeita.
— Sério?
Fiz que sim com a cabeça.
Observei, paciente, enquanto as possibilidades nadavam em seus olhos, os cantos da sua boca se curvando cada vez mais para cima a cada segundo.
— É tão empolgante pensar nisso, mas, na realidade...
— Vai ser perfeito — falei.
— A Deana vai me odiar ainda mais.
— A minha mãe não te odeia.
Ela me olhou, hesitante.
— Tem certeza?
— Eu conheço a minha mãe. Ela gosta de você. Muito.
— Então vamos nessa.
Fiquei parado por um instante, sem acreditar, depois estendi a mão para ela. Aquilo já era surreal — o fato de que ela estivera o fim de semana inteiro na casa onde cresci, e agora estava sentada na minha cama. Desde o dia em que nos conhecemos, senti como se a realidade tivesse sido alterada. Milagres como América simplesmente não aconteciam comigo. Não apenas meu passado e meu presente inacreditável tinham se entrelaçado, mas América Mason tinha acabado de concordar em dar o próximo passo comigo. Chamar de “um grande fim de semana” seria eufemismo.
— Vou ter que arrumar um emprego — falei, tentando recuperar o fôlego. — Tenho um pouco de dinheiro guardado das lutas, mas, por causa do incêndio, acho que nenhuma luta vai acontecer agora, se é que vão voltar a acontecer um dia.
América balançou a cabeça.
— De qualquer maneira, eu não ia querer que você fosse, depois do que aconteceu naquela noite. É perigoso demais, Shep. Vamos ter vários enterros pelas próximas semanas.
Como uma bomba, suas palavras roubaram toda a empolgação da conversa.
— Não quero pensar nisso.
— Você não tem reunião da fraternidade amanhã?
Fiz que sim com a cabeça.
— Vamos arrecadar dinheiro pras famílias e fazer alguma coisa na fraternidade em homenagem ao Derek, ao Spencer e ao Royce. Ainda não consigo acreditar que eles morreram. Acho que ainda não caiu a ficha.
América mordeu o lábio e colocou a mão sobre a minha.
— Fico tão feliz porque você não estava lá. — Ela balançou a cabeça. — Pode ser egoísta da minha parte, mas só consigo pensar nisso.
— Não é egoísta. Eu pensei a mesma coisa em relação a você. Se o meu pai não tivesse insistido pra eu te trazer aqui esta semana... a gente podia estar lá, Mare.
— Mas não estávamos. Estamos aqui. O Travis e a Abby se casaram, e nós dois vamos morar juntos. Quero pensar em coisas boas.
Comecei a fazer uma pergunta, mas hesitei.
— Que foi?
Balancei a cabeça.
— Fala.
— Você sabe como o Travis e a Abby são. E se eles se separarem? O que vai acontecer com nós dois?
— Provavelmente vamos deixar um deles dormir no nosso sofá e ouvir os dois discutindo na nossa sala até eles voltarem.
— Você acha que eles vão ficar juntos?
— Acho que vai ser meio instável por um tempo. Eles são... imprevisíveis. Mas a Abby está diferente com o Travis, e ele definitivamente está diferente com ela. Acho que eles precisam um do outro, de um jeito bem verdadeiro. Entende o que eu quero dizer?
Sorri.
— Entendo.
Ela olhou ao redor do meu quarto, pousando os olhos nos meus troféus de beisebol e numa foto dos meus primos comigo quando eu tinha uns onze anos.
— Eles te davam muitas surras? — perguntou ela. — Você era o primo mais novo dos irmãos Maddox. Isso devia ser... maluco.
— Não — falei simplesmente. — Éramos mais como irmãos do que como primos. Eu era o mais novo, por isso eles me protegiam. O Thomas meio que tratava o Travis e eu como bebês. O Travis sempre nos metia em encrenca, e a culpa sempre caía nele. Eu era o pacifista, eu acho, sempre pedindo clemência. — Ri com as lembranças.
— Em algum momento, vou ter que perguntar sobre isso pra sua mãe.
— Isso o quê?
— Como foi que ela e a Diane acabaram com o Jack e o Jim.
— Meu pai diz que aconteceu com muita tática — falei, dando uma risadinha. — Minha mãe diz que foi um desastre.
— Parece com a gente... O Travis e a Abby, e você e eu. — Seus olhos brilharam.
Um ano depois de eu ter me mudado, meu quarto estava quase igual. Meu antigo computador ainda estava acumulando poeira na pequena mesa de madeira no canto, os mesmos livros estavam nas prateleiras, e duas fotos constrangedoras da formatura eram mantidas em porta-retratos baratos sobre a mesa de cabeceira. Os únicos objetos que faltavam eram as fotos e as notícias emolduradas da minha época de futebol Americano, que costumavam ficar penduradas nas paredes cinza. O ensino médio parecia que tinha sido um século atrás. Toda a vida sem América parecia um universo alternativo. Tanto o incêndio quanto o casamento de Travis tinham solidificado ainda mais meus sentimentos por ela.
Fui tomado por um calor que só aparecia quando ela estava por perto.
— Então, acho que isso significa que nós somos os próximos — falei sem pensar.
— Os próximos pra quê? — A súbita compreensão fez suas sobrancelhas se erguerem, e ela se levantou. — Shepley Walker Maddox, faça o favor de guardar a aliança pra você.
Não estou nem perto de me sentir preparada pra isso. Vamos só brincar de casinha e ser felizes, tudo bem?
— Tudo bem — concordei, levantando as mãos. — Eu não quis dizer em breve. Só disse os próximos.
Ela se sentou.
— Tudo bem. Só pra esclarecer, eu tenho o segundo casamento do Travis e da Abby pra planejar e não tenho tempo pra outro.
— Segundo casamento?
— Ela me deve uma. Muito tempo atrás, fizemos a promessa de que uma seria a madrinha da outra. Ela vai ter uma despedida de solteira de verdade, um casamento de verdade, e vai me deixar planejar tudo — disse ela, sem uma única insinuação de sorriso nos lábios.
— Entendi.
Ela jogou os braços ao redor do meu pescoço, seu cabelo me sufocando. Enterrei o rosto ainda mais em seus cachos loiros, aceitando a falta de ar, se fosse para ficar perto dela.
— Seu quarto é muito limpo. Tanto esse como o do apartamento — sussurrou ela. — Eu não sou maníaca por limpeza.
— Eu sei.
— Você pode enjoar de mim.
— Impossível.
— Você vai me amar pra sempre?
— Por mais tempo que isso.
Ela me abraçou com força, soltando um suspiro feliz, do tipo que eu batalhava muito para conseguir, porque me deixava radiante. Seus suspiros doces e felizes eram como o início do verão, como se qualquer coisa fosse possível, como se fosse meu superpoder.
— Shepley! — chamou minha mãe.
Recuei e peguei América pela mão, conduzindo-a para fora do quarto, pelo corredor e até a sala de estar do andar de baixo. Meus pais estavam sentados lá, juntos na namoradeira surrada, de mãos dadas. Aquele móvel tinha sido o primeiro que compraram juntos, e eles se recusavam a se livrar dele. O restante da casa era repleto de couro contemporâneo e design rústico moderno, mas eles passavam mais tempo no primeiro andar, no tecido floral azul da primeira namoradeira, que provocava coceiras.
— Vamos ter que dar uma saída rápida daqui a pouco, mãe. Voltamos pro jantar.
— Aonde vocês vão? — ela perguntou.
América e eu trocamos olhares.
— A Abby acabou de ligar. Ela quer que a gente passe no apartamento rapidinho — respondeu América.
Ela e Abby eram bem versadas na arte das meias-verdades improvisadas. Imaginei que Abby tinha ensinado para América depois que ela se mudou para Wichita. As duas precisaram dar muitas escapadas quando viajavam até Vegas sendo menores de idade, para Abby poder jogar e ajudar o pai fracassado a pagar as dívidas.
Meu pai se inclinou para a frente no assento.
— Você pode esperar um minuto? Precisamos fazer algumas perguntas.
— Só preciso pegar minha bolsa — disse América, saindo com delicadeza.
Minha mãe sorriu, mas eu franzi a testa.
— Qual é o problema?
— Senta, filho — disse meu pai, dando um tapinha na poltrona reclinável marrom, ao lado da namoradeira.
— Eu gosto dela — disse minha mãe. — Gosto muito mesmo. Ela é forte, decidida, e te ama do mesmo jeito.
— Espero que sim — falei.
— Ama, sim — disse minha mãe com um sorriso sagaz.
— Então... — comecei. — O que vocês querem me falar que não podia ser dito na frente dela?
Eles se entreolharam, e meu pai deu um tapinha no joelho da minha mãe.
— É ruim? — perguntei.
Eles se esforçaram para encontrar as palavras, respondendo sem falar.
— Tudo bem. É ruim em que nível?
— Tio Jim ligou — disse meu pai. — A polícia esteve na casa dele ontem à noite, fazendo perguntas sobre o Travis. Acham que ele é responsável pela luta no Keaton Hall.
Você sabe alguma coisa sobre isso?
— Pode nos contar — disse minha mãe.
— Eu sei da luta — respondi. — Não foi a primeira. Mas o Travis não estava lá. Vocês estavam aqui quando eu liguei pra ele. O Travis estava no apartamento.
Meu pai se mexeu no assento.
— Ele não está no apartamento agora. Você sabe onde ele está? A Abby também sumiu.
— Tudo bem — falei simplesmente, sem querer responder nada.
Meu pai percebeu.
— Onde eles estão, filho?
— O Travis ainda não falou com o tio Jim, pai. Você não acha que devíamos dar uma chance a ele primeiro?
Ele pensou no argumento.
— Shepley... você tinha alguma coisa a ver com essas lutas?
— Estive em algumas. A maioria este ano.
— Mas não nessa — esclareceu minha mãe.
— Não, mãe, eu estava aqui.
— Foi isso que dissemos ao Jim — explicou meu pai. — E é isso que vamos dizer à polícia, se eles perguntarem.
— Você não saiu? Em nenhum momento da noite? — minha mãe questionou.
— Não. Recebi uma mensagem sobre a luta, mas o fim de semana era importante pra América, e eu nem respondi.
Minha mãe relaxou.
— Quando foi que o Travis saiu? E por quê? — perguntou meu pai.
— Pai — respondi, tentando manter a paciência —, o tio Jim vai te contar depois que o Travis falar com ele.
América espiou pela porta do meu quarto, e fiz um sinal para ela se juntar a nós.
— A gente precisa ir — disse ela.
Fiz que sim com a cabeça.
— Vocês voltam pro jantar? — perguntou minha mãe.
— Sim, senhora — respondeu América.
Eu a arrastei escada acima atrás de mim até o andar principal e porta afora.
— Pesquisei o voo deles — disse ela enquanto nos acomodávamos no Charger. — Mais duas horas.
— Então vamos chegar a Chicago bem na hora.
América se inclinou para beijar meu rosto.
— O Travis pode estar bem encrencado, não é?
— Não se eu puder ajudar.
— Nós, baby. Não se nós pudermos ajudar.
Olhei nos olhos dela.
Travis já tinha custado meu relacionamento com América uma vez. Eu o amava como a um irmão, mas não arriscaria novamente. Eu não podia
 deixar América proteger Travis e se encrencar com as autoridades, mesmo que ela quisesse.
— Mare, eu te amo por dizer isso, mas preciso que você fique de fora dessa.
Ela franziu o nariz, irritada.
— Uau.
— O Travis vai levar muita gente junto se cair. Não quero que você seja uma dessas pessoas.
— E você? Vai ser uma delas?
— Vou — respondi sem hesitar. — Mas você estava na casa dos meus pais o fim de semana todo. Você não sabe de nada. Entendeu?
— Shep...
— É sério — falei. Minha voz estava séria como nunca, e ela se recostou um pouco. — Promete.
— Eu... não posso te prometer isso. A Abby é como se fosse minha família. Eu faria qualquer coisa para protegê-la. Por proximidade, isso inclui o Travis. Estamos todos juntos nessa, Shepley. O Travis faria o mesmo por mim ou por você, e você sabe disso.
— É diferente.
— Não é. Nem um pouco.
Eu me inclinei para beijar seus lábios teimosos, que eu tanto amava, e virei a chave na ignição, dando partida no Charger.
— Eles podem dirigir o seu carro até em casa.
— Ah, não — disse ela, olhando furiosa pela janela. — Na última vez que pegaram meu carro emprestado, eles se casaram sem mim.
Dei uma risadinha.
— Me deixa no Honda. Eu levo os dois pra casa, e eles vão ouvir muito no caminho. E o Travis não vai escapar indo com você, então, se ele perguntar...
Balancei a cabeça, me divertindo.

— Eu não ousaria.

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