Capítulo 9
América
— Quanto falta? — perguntei.
— Três quilômetros a menos que da
última vez que você perguntou — Reyes resmungou.
Ele estava dirigindo rápido, mas
não o suficiente. Só de saber que Shepley estava no hospital, machucado, eu
tinha vontade de saltar do carro e sair correndo, mais rápido do que estávamos
indo. Tínhamos saído do pedágio para uma estrada com uma fileira estreita de
casas que, não sei como, não haviam sido atingidas pelo tornado.
Abri a janela e apoiei o queixo
na mão, deixando o ar soprar no meu rosto. Fechei os olhos, imaginando a reação
de Shepley quando eu entrasse pela porta.
— O Landers disse que ele está
bem machucado. É melhor você se preparar — Reyes comentou.
— Ele está bem. Isso é tudo que
importa.
— Só não quero que você fique
chateada.
— Por quê? — Virei para ele. —
Achei que você era o patrulheiro fodão sem emoções.
— Sou mesmo — disse ele, se remexendo
no banco. — Mas isso não significa que eu quero te ver chorando de novo.
— Sua mulher não chora?
— Não — ele respondeu sem
hesitar.
— Nunca?
— Não dou motivos pra isso.
Eu me recostei no assento.
— Aposto que ela chora. Só não
deve demonstrar. Todo mundo chora.
— Eu nunca a vi chorar. Ela riu
muito quando a Maya nasceu.
Sorri.
— Maya. Que nome fofo.
Gotas enormes de chuva começaram
a bater no para-brisa, fazendo Reyes ligar os limpadores. O vai e vem e o
arrastado no vidro deram início a uma cadência que ecoava cada batida do meu
coração.
Um canto de sua boca se curvou
para cima.
— Ela é fofa. Bem cabeluda, cheia
de cabelo preto. Nasceu parecendo que usava peruca. Ela era meio amarela na
primeira semana. Achei que simplesmente tinha um bronzeado natural
maravilhoso... como eu. — Ele deu um sorriso. — Mas era icterícia.
Levamos ela ao médico e depois
para fazer os exames. Eles furaram o pé dela com uma agulha e espremeram pra
tirar uma amostra de sangue. A Alexandra não deixou cair uma lágrima. Eu chorei
tanto quanto a Maya. Você acha que eu sou durão? É porque não conhece a minha
esposa.
— No dia do casamento?
— Não.
— Quando ela descobriu que estava
grávida?
— Não.
Pensei no assunto por um
instante.
— Nem lágrimas de felicidade?
Ele balançou a cabeça.
— E as mulheres que você para na
estrada? Você deixa ir embora se elas começarem a chorar?
— Me deixa desconfortável — ele
respondeu simplesmente. — Não gosto disso.
— Ainda bem que você se casou com
uma mulher que não chora.
— Sorte. Muita, muita sorte. Ela
não é muito emotiva.
— Parece que ela não é nem um
pouco emotiva — provoquei.
— Você não está muito errada. —
Ele riu. — Eu nem tinha certeza se ela gostava de mim, no início. Levei dois
anos e muitas horas na academia só para criar coragem de chamá-la pra sair. Até
poucas semanas atrás, achei que eu nunca conseguiria amar alguém mais do que
amo a Alexandra.
— Quando a Maya nasceu?
Ele fez que sim com a cabeça.
Sorri.
— Eu estava errada. Você não é um
babaca.
Um som estridente ecoou pelo
rádio, e a moça do outro lado começou a informar a previsão do tempo.
— Outro tornado? — perguntei.
Sirenes começaram a tocar.
— O Serviço Nacional de
Meteorologia está prevendo que um tornado vai atingir os arredores de Emporia —
ela disse numa voz monótona. — Todas as unidades estejam avisadas: um tornado
está se aproximando.
— Como é que ela consegue ficar
tão calma? — perguntei, olhando para o céu.
Nuvens pretas giravam sobre nós.
Reyes diminuiu a velocidade,
encarando as densas nuvens.
— É a Delores. É função dela
permanecer calma, e além disso nada abala essa mulher.
Ela já fazia isso antes de eu
nascer.
A voz de Delores soou de novo
pelo rádio.
— Todas as unidades estejam
avisadas: um tornado está se aproximando, indo para norte, nordeste. A
localização atual é Prairie Street com South Avenue.
Delores continuou repetindo a
previsão do tempo enquanto as sobrancelhas de Reyes se aproximavam, e ele
começou a olhar freneticamente para o céu.
— O que há de errado? —
perguntei.
— Estamos a um quarteirão desse
local.
Shepley
O vento soprava golpes de chuva,
ensopando o piso e derrubando cadeiras. Vários homens com crachá do hospital
passaram correndo com pedaços grandes de compensado, martelos e pregos, e
começaram a trabalhar para cobrir a área onde o vidro havia quebrado. Outros
varriam os cacos espalhados pelo chão.
O comandante se levantou e foi
até o local onde os homens da manutenção trabalhavam. Assim que começou a
conversar com um deles, olhou pela janela. Depois, girou nos calcanhares e gritou:
— Todo mundo, sai correndo!
Ele pegou uma mulher e saltou bem
na hora em que um carro atingiu o compensado e as janelas restantes, parando de
lado no meio da sala de espera.
Depois de alguns segundos de
silêncio atordoado, o choro e os gritos encheram o ambiente. Brandi me entregou
as crianças que estava segurando e correu até o carro para socorrer os
funcionários e alguns pacientes que haviam se machucado.
Levou a palma da mão até a testa
de um homem, que tinha o rosto todo ensanguentado.
— Preciso de uma maca!
O comandante se mexeu e olhou
para mim, atônito.
— Você está bem? — perguntei,
abraçando as crianças.
Ele assentiu e ajudou a mulher
que ele havia tirado da frente do carro.
— Obrigada — disse ela, mirando
ao redor, confusa.
O comandante olhou através do
buraco que o carro tinha feito na parede.
— Já passou.
Em seguida deu um passo em
direção ao carro, mas parou quando seu rádio ligou.
Uma voz profunda de homem ecoou:
— Dois-dezenove para Base G.
— Base G. Prossiga — respondeu a
atendente.
O comandante aumentou o volume do
rádio, percebendo o pânico disfarçado na voz do policial.
— Oficial ferido na Highway 50
com a Sherman. Minha viatura capotou. Vários mortos e feridos nessa área,
incluindo eu. Solicito dez-quarenta-e-nove para este local.
Câmbio — disse ele, rosnando a
última palavra.
— Qual o nível do seu ferimento,
Reyes? — a atendente perguntou.
O comandante olhou para mim.
— Tenho que ir.
— Não tenho certeza — respondeu o
policial. — Eu estava levando uma jovem para o hospital. Ela está inconsciente.
Acho que a perna dela está presa. Vamos precisar de ferramentas. Câmbio.
— Entendido, dois-dezenove.
— Delores? — disse Reyes. —
Parece que o namorado dela está no Newman Regional com o comandante do corpo de
bombeiros. Você pode passar um rádio para o hospital e avisar?
— Dez-quatro, Reyes. Fique firme
aí. Temos unidades a caminho.
Agarrei o braço do comandante.
— É ela. A América está com esse
policial.
— A Base G é a patrulha
rodoviária do pedágio. Ela está com um policial estadual.
— Não importa com quem ela está.
Ele está machucado, e ela está presa lá. Ele não pode ajudá-la.
O comandante virou de costas para
mim, mas apertei o braço dele com mais força.
— Por favor — falei. — Me leva
até lá.
Ele fez uma careta, já contrário
à ideia.
— Pelo jeito, eles vão ter que
cortar as ferragens para tirá-la da viatura. Pode levar horas. Ela está
inconsciente. Nem vai saber que você está lá, e você provavelmente só vai
atrapalhar.
Engoli em seco e olhei ao redor
enquanto pensava. O comandante pegou as chaves no bolso.
— Só... — Suspirei. — Não precisa
me levar. Só me diz onde é, e eu vou até lá.
— Você vai andando? — ele
indagou, sem acreditar. — Está escuro. Não ter eletricidade significa não ter
luz nos postes. E não tem luar também, por causa das nuvens.
— Eu preciso fazer alguma coisa!
— gritei.
— Eu sou comandante do corpo de
bombeiros. Tem um oficial machucado. Vou supervisionar a remoção e...
— Eu imploro — falei, cansado
demais para lutar. — Não posso ficar aqui. Ela está inconsciente, pode estar
machucada e vai estar com medo quando acordar. Eu tenho que estar lá.
Ele pensou por um instante e
suspirou.
— Tudo bem. Mas vê se fica longe
e não atrapalha.
Fiz que sim com a cabeça e o
segui quando ele virou em direção ao estacionamento.
Ainda estava chovendo, o que me
deixava ainda mais preocupado com ela. E se o carro tivesse caído num fosso, como
o Charger? E se ela estivesse embaixo d’água?
O comandante acendeu as luzes e
ligou as sirenes enquanto tirava o SUV do estacionamento do hospital. Havia
cabos de eletricidade e galhos caídos para todo lado, assim como veículos de
todos os formatos e tamanhos. Havia até um barco caído de lado no meio da rua.
Famílias seguiam para o hospital a pé, e funcionários da prefeitura estavam em
marcha acelerada, tentando remover os escombros da entrada do hospital.
— Meu Deus — o comandante
sussurrou, encarando os arredores, apavorado. — Dois tornados no mesmo dia.
Quem poderia imaginar?
— Eu nunca imaginaria — falei. —
Mesmo olhando para tudo isso, não dá pra acreditar.
Ele virou para o sul, indo em
direção a Reyes e América.
— Qual é a distância... até onde
o Reyes disse que eles estavam?
— Seis quarteirões, talvez. Não
sei se seremos os primeiros a chegar ao local, mas...
— Não somos — falei, já vendo as
luzes piscantes.
O comandante dirigiu mais alguns
quarteirões e parou no acostamento. Os primeiros a chegar já bloqueavam a
estrada, e os bombeiros estavam ao redor da viatura capotada.
Corri até o veículo, mas fui
impedido de me aproximar, até o comandante liberar meu acesso. Caí de joelhos
perto de um paramédico, ao lado da viatura. Cercado de escombros, o veículo
estava amassado em vários pontos, e todas as janelas estavam quebradas.
— Mare? — gritei, encostando o
rosto na sujeira molhada.
Metade do carro ainda estava na
rua, e a outra metade — o lado de América — tinha parado na grama.
Cachos loiros escapavam pela
pequena abertura que antes era a janela do passageiro.
As mechas compridas estavam
ensopadas da chuva, rosadas em uma parte pequena.
Minha respiração ficou presa na
garganta, e eu olhei para o paramédico por sobre o ombro.
— Ela está sangrando!
— Estamos cuidando disso. Você
vai ter que sair daqui para eu poder cuidar dela.
Assenti.
— Mare? — repeti, estendendo a
mão lá para dentro.
Eu não sabia onde estava
encostando, mas senti sua pele macia. Ela ainda estava morna.
— Cuidado! — disse o médico.
— América? Está me ouvindo? É o
Shep. Eu estou aqui.
— Shepley? — uma voz baixa chamou
de dentro do carro.
O paramédico me empurrou para
longe.
— Ela está consciente! — ele
gritou para o colega.
A atividade do pessoal de
emergência ao redor do carro aumentou.
— Shepley? — chamou América,
dessa vez mais alto.
Um oficial me tirou do chão e me
afastou.
— Estou aqui! — gritei.
Uma mão pequena se esticou para a
chuva e eu caí de joelhos, engatinhando em direção a ela.
Peguei sua mão antes que alguém
pudesse me impedir.
— Estou aqui, baby. Estou bem
aqui. — Beijei sua mão, sentindo algo afiado nos lábios.
Em seu dedo anelar, estava o anel
de diamantes com o qual eu tinha planejado pedi-la em casamento — de novo —
nesse fim de semana, na casa dos pais dela.
Fiquei deitado no chão, segurando
sua mão por alguns minutos, até um bombeiro trazer uma ferramenta hidráulica
para abrir a porta à força. O oficial me tirou do caminho, e América esticou os
dedos para mim outra vez.
— Shepley? — ela chorou.
— Ele vai recuar um pouco
enquanto tiramos você daí, está bem? Aguente firme, moça.
O mesmo oficial de antes deu um
tapinha no meu ombro. Foi aí que eu percebi que ele estava com curativos na
cabeça.
— Você é o Reyes? — perguntei.
— Sinto muito. Eu tentei tirar o
carro do caminho, mas não deu tempo.
Assenti uma vez.
O comandante se aproximou.
— Você devia me deixar te levar
para o hospital, Reyes.
— Só quando ela tiver saído dali
— disse ele, encarando os bombeiros que usavam a ferramenta.
Com uma única alavanca, o
bombeiro posicionou duas pinças de metal perto da porta. O gemido agudo das
ferramentas hidráulicas se misturou ao zumbido alto dos carros de bombeiro.
América gritou e eu me joguei na
direção da viatura.
Reyes me segurou.
— Para trás, Shepley — disse ele.
— Eles vão tirá-la mais rápido se você ficar fora do caminho.
Meu maxilar ficou muito tenso.
— Estou bem aqui! — gritei.
O sol tinha se posto, e holofotes
haviam sido posicionados ao redor de toda a viatura.
Corpos cobertos estavam
enfileirados ao longo da calçada, a menos de cem metros de distância. Era quase
impossível ficar parado ali e esperar enquanto outra pessoa ajudava América,
mas não havia nada que eu pudesse fazer, além de deixá-la saber que eu estava
por perto. Esperar que eles a liberassem era a única opção.
Cobri a boca com a mão, sentindo
lágrimas arderem nos olhos.
— Quanto tempo? — perguntei.
— Só alguns minutos — respondeu o
comandante. — Talvez menos.
Observei enquanto eles cortavam e
arrancavam a porta da viatura, depois trabalhavam para soltar a perna de
América. Ela gritou de novo. Reyes apertou meu braço com mais força.
— Essa garota é fogo — disse ele.
— Não aceita “não” como resposta. Insistiu em vir comigo, na esperança de te
encontrar.
O comandante deu risada.
— Eu conheço uma pessoa assim.
O paramédico se aproximou com um
colar cervical e, depois que estabilizou o pescoço dela, a puxou bem devagar.
Quando vi seu rosto, seus
lindos olhos grandes procurando
ao redor, em choque e medo, minhas lágrimas escorreram.
Fiquei a poucos passos enquanto
eles a estabilizavam na maca, e finalmente tive permissão para segurar a mão
dela de novo.
— Ela vai ficar bem — disse o
paramédico. — Está com um pequeno corte no alto da cabeça e o tornozelo esquerdo
provavelmente está quebrado. Mas é só isso.
Olhei para América e beijei seu
rosto, sentindo o alívio me invadir.
— Você encontrou o anel.
Ela sorriu, e uma lágrima
escorreu do canto do olho e desceu pela têmpora.
— Encontrei.
Engoli em seco.
— Eu sei que é uma situação
traumática. E sei que você odiou quando a Abby pediu o Travis em casamento
depois do incêndio, mas...
— Sim — América disse sem
hesitar. — Se você está me pedindo em casamento, a resposta é sim. — Ela
inspirou, e as lágrimas transbordaram de seus olhos.
— Eu estou te pedindo em
casamento — engasguei, antes de beijar o anel em seu dedo.
Depois que os paramédicos
colocaram a maca na ambulância, segui Reyes até os fundos com ela. América se
encolhia quando passávamos por buracos, mas não soltava minha mão.
— Não acredito que você está aqui
— disse ela, baixinho. — Não acredito que você está bem.
— Eu nunca fico longe por muito
tempo. Sempre encontro o caminho de volta até você.
América soltou uma risadinha e
fechou os olhos, permitindo-se relaxar.
Chorando muito aqui...quando vc acha que está tudo bem,vem um segundo tornado,aff,quase infartei!
ResponderExcluirO mais triste é que situações assim realmente acontecem :(
Sei nem oq falar, muitas lágrimas aqui, chorando muito
ResponderExcluir😭😭😭
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