Capítulo 2
Eu estava a caminho do Audi preto imaculado do meu
pai quando a primeira van chegou.
Homens e mulheres saíam enfileirados, as botas
esmagando a neve enquanto carregavam baldes, aspiradores de pó e caixas de
material de limpeza para dentro da casa. Felix, assistente do papai, já tinha
despachado o sofá.
Meus pais só voltariam de Roma para Estes Park uma
semana depois, o que dava tempo suficiente para a casa voltar ao normal. Não
era a primeira vez que Felix tinha de contratar equipes de limpeza depois de
uma festa, e ele era muito bom em garantir que nada ficasse fora do lugar.
Desde que eu tinha sete anos, Felix era o pacificador e o protetor da família,
e também trabalhava como guarda-costas do meu pai quando necessário. Às vezes,
ele tinha de proteger meu pai de mim.
— Srta. Edson — disse ele, fazendo um sinal com a
cabeça quando me aproximei da entrada de carros.
Ele se assomou sobre o Audi, com o paletó do terno
apertado nos braços grossos. Os óculos com armação de metal eram escuros,
protegendo os olhos do mesmo sol que se refletia na cabeça lisa. Segurava um
celular na mão direita e uma prancheta contra o peito na esquerda. Sem dúvida
havia uma lista com várias páginas de itens a serem verificados, reparos e
pedidos a fazer, tudo num esforço para oferecer ao meu pai a vida que ele
pagava a Felix para criar.
— Obrigada, Felix — falei.
Depois que passei, ele abriu a porta do motorista, me
deixando entrar. O carro estava quente, já ligado, fazendo meu casaco de pele e
minhas botas de cano alto parecerem mais um exagero
que uma roupa adequada ao inverno.
— Tudo certo, senhorita? — ele perguntou. Fiz que sim
com a cabeça, e ele fechou a porta.
Agarrei o volante e suspirei. Eu não dava partida num
carro havia sete anos — desde minha prova de direção. Eu estava sentada num
veículo que não era meu, diante de uma casa que não era minha... vestindo
roupas que meus pais tinham comprado. Eles eram meus donos, e eu permitia que
fosse assim porque era conveniente. Não que eu não tivesse tentado resistir ao sistema
no ensino médio, mas discutir significava que eu não era agradecida, quer eu
tivesse pedido ou não as coisas que tinha.
Rangi os dentes e engatei a marcha. Meu amargo
monólogo interior era constante, porque eu não podia pronunciar em voz alta o
que estava realmente pensando ou sentindo. Reclamar era ofensivo para o meu pai
e para todo mundo. Eu não tinha motivos para isso. Eu era a garota que tinha
tudo. Quanto mais dinheiro e coisas materiais meus pais me davam, maior esse
vazio se tornava. Mas eu não podia dizer isso a eles; não podia dizer isso a
ninguém. Ter tudo e não sentir nada era o pior tipo de egoísmo.
Conduzi o carro até o caminho principal, dirigindo
lentamente por um quilômetro e meio até chegar à entrada do castelo dos meus
pais. Pressionei um botão, e o portão de cobre obedeceu, abrindo devagar na
minha direção. Meu celular zumbiu, e uma foto de Finley apareceu na tela, os
lábios formando um bico de pato. Ela estava olhando para cima, para exibir os
olhos turquesa e os grossos cílios postiços de vison autêntico.
Pressionei o botão no volante e segui pelo portão
aberto.
— Oi, Fin.
A voz de Finley me cercou.
— Cansada, Elliebi?
— Um pouco.
— Ótimo. Espero que você esteja se sentindo uma
merda, sua vaca mimada. Por que você não me falou que ia dar uma festa ontem à
noite?
— Hum, porque você está no Rio?
— E daí?
— Não achei que você ia querer desperdiçar sua
depilação numa festa universitária nas montanhas com moradores daqui.
— Está frio?
— Definitivamente não está clima pra biquíni.
— Nossa banheira aquecida pode comprovar que isso é
mentira. Você pegou alguém? — Ela já se esquecera da leve ofensa e entrara no
modo irmã.
Finley Edson era a filha mais velha da Edson Tech e
se preparava para administrá-la com punhos de ferro, embora tivesse unhas
perfeitamente bem cuidadas. Éramos herdeiras, mas, diferentemente de mim,
Finley aceitava seu papel. Ela só tinha dois anos a mais do que eu, mas era
minha melhor amiga, a única que restou da nossa infância que eu ainda conseguia
aturar. As outras tinham se tornado clones sem graça das próprias mães.
— Não sou de fazer e falar — respondi, virando o
veículo em direção ao centro da cidade.
— É, sim. Foi a moradora daí de quem você me falou?
— A Paige? Não. Ela é um amor, mas é fodida demais
pra usar.
— Não sei se acredito que essa pessoa existe.
— Existe sim, e se chama Paige.
— Você está ficando emotiva depois de velha, Ellie.
Se ainda estivéssemos em Berkeley, você ia se esforçar só pra partir o coração
dela. Então, quem foi?
Eu me encolhi ao ouvir sua descrição, porque ela
estava certa. Fui a fonte de sofrimento para a maioria das pessoas com quem
mantive um relacionamento, principalmente porque eu não me importava, mas a
verdade é que uma pequena parte de mim curtia a distração temporária do meu
próprio desgosto.
— Você sempre tem que me lembrar do meu defeito?
— Sim. Não muda de assunto.
— É um cara da Equipe de Bombeiros de Elite.
— Bombeiro? Eca.
— Não tem nada de eca. Ele é da elite. Eles são como soldados
na linha de frente.
— Isso meio que dá tesão — ela concordou.
— Foi revigorante... me deixou usá-lo e dispensá-lo
num piscar de olhos. E ele era gostoso.
Muito, muito gostoso. Talvez uma nota dez.
— Dez? Tipo dez total ou quase dez?
— Quase dez. Ele errou a lata de lixo quando jogou
fora a camisinha, mas ele sabe lutar. Tipo lutar de verdade. Ele deu uma surra
num cara que tinha o dobro do tamanho dele no meio da galeria ontem. O corpo
parece o do David Beckham. Talvez um pouco mais largo. É coberto de tatuagens e
tem cheiro de Malboro Red e cobre.
— Cobre?
— O sangue do outro cara estava respingado nas roupas
dele.
— E você deixou que eles lutassem na galeria ontem à
noite? Quebraram alguma coisa?
— Seria melhor perguntar o que não quebraram.
— Ellie. — Seu tom ficou sério. — A mamãe vai surtar.
— Não vem bancar meus pais aí do Brasil. Já tenho
dois pais ausentes. Não preciso de você.
— Tudo bem, mas isso é pedir pra morrer. Ou, melhor
dizendo, é o fim da sua parte na herança. Estou intrigada com esse garoto. Sou
até capaz de entrar num avião agora e cobrir minha depilação e minha pedicure
com legging e botas. Ah. — Ela fez uma pausa. — Marco? Preciso de blusas de
flanela!
— Não traz o Marco — alertei.
— Ele vai comigo pra todos os lugares. Falando
português, ele fez a viagem pra cá parecer uma brisa.
— Ele não pode vir pra cá. Você fica diferente quando
ele está por perto.
— Como? Tipo indefesa? — Finley estava me provocando,
mas nós duas sabíamos que ela ficava mais chata e carente quando seu
acompanhante estava por perto. Marco fora contratado para ser mais do que um
assistente. Ele não só carregava malas e acompanhava a agenda dela, mas também
lhe comprava coisas, era seu estilista, barista, bartender, enfermeiro, garçom,
designer e companhia constante de viagens.
— Eu odeio a Finley e o Marco juntos. Só gosto da
Finley.
— Correção: você ama a Finley. Vou levar o Marco.
— Ele não pode ficar aqui.
Dava para ouvi-la fazendo biquinho pelos
alto-falantes.
— Vou reservar um quarto de hotel pra ele. Se eu
precisar de alguma coisa, posso chamá-lo.
— Finley, pelo amor de Deus. — Peguei um maço velho
de cigarros no porta-luvas do papai e procurei um isqueiro. Abri a tampa
prateada e pressionei, dando um trago de imediato.
— Aonde você está indo? — ela perguntou, frustrada.
— Só vou ficar fora do caminho enquanto a equipe de
limpeza dá um jeito no Marco Zero.
— Está tão ruim assim? E você está me dando um sermão
por causa do Marco? — perguntou ela.
— Espera. — Eu me concentrei para estacionar em
paralelo, depois desliguei o carro, terminando o cigarro.
— Você ainda está aí? — perguntou Finley.
— Ãhã — respondi, soprando a fumaça. A nuvem branca
deslizou pela parte de cima da janela que eu tinha aberto apenas o suficiente
para dizer ao meu pai que tinha tentado.
— Você precisa parar com essa merda, Ellie. Todo
mundo tem limite.
— É com isso que estou contando — falei, dando o
último trago antes de jogar a guimba pela janela. Saí e apaguei a ponta acesa
do cigarro com o salto da bota.
Eu me inclinei para pegá-lo e o joguei na lata de
lixo mais próxima.
— Você tem sorte — disse uma voz atrás de mim.
Virei e vi Tyler apoiado na parede de tijolos de uma
loja de peças automotivas, com os braços cruzados, e uma caminhonete do Serviço
Florestal Americano estacionada ali perto.
— Como é? — perguntei.
— Se você não tivesse pegado essa guimba, eu poderia
ter te prendido.
— Alguém devia te informar que você não é policial.
— Sou amigo de alguns.
— Bom pra você.
— Como está a casa?
— Destruída pra caralho. Bom te ver — falei, girando
nos calcanhares.
Ouvi seus passos me seguindo.
— Eu só estava... brincando — disse ele, finalmente
ao meu lado. E estendeu um maço preto de Marlboro.
— Que diabos é isso? — perguntei.
— Um pedido de paz?
— Um convite pra ter câncer?
Ele deu uma risadinha e guardou o maço no bolso
lateral do uniforme azul de trabalho.
— Pra onde você está indo?
Parei e virei para ele, suspirando.
— Você é um babaca.
Ele piscou uma vez, depois as lindas rugas na sua
testa se formaram, e um sorriso se espalhou pelo seu rosto, revelando dentes
perfeitamente brancos.
— O que isso quer dizer?
— Quer dizer que você devia me foder e me deixar em
paz.
— O quê?
Ele me observou por um tempo com uma expressão de
indignação. Suas botas eram surradas, mas brilhavam, a calça cargo azul estava
passada, mas exibia alguns vincos pelo uso àquela altura do dia, a camisa era
desbotada. Tyler era um trabalhador esforçado e se orgulhava do emprego.
Provavelmente não havia faltado ao trabalho um único dia sequer, mas sua capacidade
de compromisso terminava aí. Tyler Maddox sem dúvida tinha partido tantos
corações quanto eu. Ele era exatamente o que eu merecia, apesar de eu não ter
nenhuma intenção de me aproximar dele.
— Você está falando comigo. Você disse que não faria
isso.
Tyler enfiou as mãos nos bolsos da calça e deu de
ombros, sorrindo para mim como se nunca tivesse tido uma trepada de uma noite
só. Esse tipo de charme não era uma coisa que se aprendia.
— Eu falei que não ia ligar.
Cruzei os braços e estreitei os olhos, encarando-o.
Meu Deus, como ele era alto.
— Não estou interessada em você.
Sua covinha apareceu, fazendo minhas coxas ficarem
tensas.
— Não foi o que pareceu na noite passada.
— Isso foi na noite passada. Agora estou sóbria.
Ele fez uma careta.
— Ai.
— Sai correndo — falei.
Ele empertigou os ombros.
— Eu pareço do tipo que foge?
— Só quando se trata de mulheres, e foi por isso que
trepei com você.
Ele franziu a testa.
— Você, tipo... está sem seu remedinho ou alguma
coisa assim?
— Sim. Isso mesmo. Trauma emocional, bagagem do
passado, pode dar o nome que quiser. Continue falando comigo, e eu posso me
tornar sua próxima namorada grudenta. Parece um bom momento para você?
— Tudo bem, Ellie — disse ele, erguendo as mãos. — Já
entendi. Vou fingir que nunca aconteceu.
— Obrigada.
— Mas foi foda, e eu não me importaria de repetir.
— Podemos ter uma amizade colorida sem a parte da
amizade?
Ele remoeu minhas palavras.
— Você é meio que uma vaca malvada. Isso é
estranhamente atraente.
— Cai fora.
— Tô indo.
— Não volta.
— Nunca aconteceu — disse ele, abrindo a porta do
passageiro da caminhonete. Ele estava o contrário de ofendido, e isso me
ofendeu. A maioria das pessoas era mais sensível ao meu abuso.
Zeke saiu, se detendo quando me viu. Ele acenou,
depois deu uma corridinha pela parte da frente do veículo, até o lado do
motorista. Eles conversaram rapidamente, e Zeke deu partida no motor.
— Quem é?
Virei e vi Sterling parado atrás de mim. Ele parecia
um banqueiro, tentando ao máximo imitar o pai, diretor-executivo da Aerostraus
Corp. Ele usava um casaco comprido de lã escura, cachecol, relógio de três mil
dólares e, para destoar da aparência conservadora, uma camisa social azul sem
gravata — com o botão de cima aberto. Ele fora capaz de caminhar pela calçada coberta
de neve sem deixar uma gota de umidade nas botas italianas.
— Me beija — falei.
— Eca — ele disse, horrorizado. — Não.
— Me beija, seu babaca. Agora. E tem que ser um beijo
daqueles. Você me deve uma.
Sterling segurou os dois lados do meu rosto e grudou
a boca na minha, babando muito em mim, mas fazendo a cena que eu queria. A
caminhonete passou por nós, e, quando parecia ter se afastado o suficiente, lhe
dei um empurrão.
Ele limpou a boca, enojado.
— Por que eu tive que fazer isso?
— Pra me livrar de um cara.
— Um fã ou um vagabundo? — perguntou ele, alisando o
cabelo para o lado.
— Nenhum dos dois. Só pra garantir.
— Ainda vamos tomar um brunch? — Ele limpou a boca
outra vez e continuou parecendo meio enojado.
— Vamos — respondi, empurrando-o em direção ao Winona
Café.
Escolhemos uma mesa perto da porta, e Sterling
imediatamente verificou o cardápio. Ele passava os dedos sobre cada linha,
prestando atenção a cada ingrediente. Ele não era alérgico nem nada; era
esnobe.
Revirei os olhos.
— Por quê? A gente sempre come aqui.
— Não venho a este lugar há três meses. Eles podem
ter alguma coisa nova no cardápio.
— Você sabe que nunca tem.
— Cala a boca. Estou lendo.
Sorri, verificando o celular enquanto ele vasculhava
o cardápio de mais de uma década. A família de Sterling tinha uma casa perto da
nossa, uma das muitas pelo país, que ficava vazia a maior parte do ano. Eu
sabia que ele fazia parte do meu grupo quando o vi enchendo a cara, aos catorze
anos e sozinho, perto de uma árvore, nos limites da nossa propriedade. Ele era
apenas mais um filhinho de papai, lamentando como era difícil a vida com
milhões à disposição, mas sem uma família atenciosa para ancorá-lo ao mundo
real.
Sterling investira tudo na opinião do pai de que ele
teria sucesso a qualquer momento, e isso lhe deixou um tanto melancólico. Seu
pai, Jameson Wellington, mudava regularmente de ideia sobre a importância do
filho, dependendo das meias, da atitude do conselho administrativo e de a
esposa irritá-lo no dia.
— Como foi a festa? — perguntou Sterling sem erguer o
olhar.
— Ah, eu queria ter te convidado. Foi meio que de
improviso.
— Ouvi dizer que tinha um monte de moradores da
região.
— Quem mais eu poderia convidar?
— Eu?
— A Finley não está em casa.
Sterling ergueu o olhar para mim durante apenas
alguns segundos, depois voltou a olhar para o cardápio. Ele não estava mais
lendo.
— Não conta pra ela sobre o beijo. Eu só fiz aquilo
porque te devia uma.
— Não vou contar. Ela me odiaria, porque, quer ela
admita ou não... ela te ama.
— Ama?
Eu me inclinei para a frente, irritada.
— Você sabe que sim.
Ele pareceu relaxar.
— Eu te convido para festas o tempo todo. Eu
precisava... precisava de algo...
— Descomplicado?
Apontei para ele.
— Exatamente.
— Ellison?
— Eu?
— Você beija muito mal. Provavelmente fez um favor
para o cara.
Olhei para ele com raiva.
— Pede sua porra de ovos Benedict e cala a boca. Meu
beijo é excelente. Foi exatamente por isso que eu tive que afastar aquele cara
com seu beijo babado.
— Quem você quer enganar? Não foi só um beijo que
você deu naquele cara.
A garçonete se aproximou, sorridente, usando um
avental de listras verde-oliva e bege.
— Oi, Ellie.
— Chelsea, se você tivesse que adivinhar o que o
Sterling ia pedir...
— Ovos Benedict — completou Chelsea, sem hesitar.
— Sério? — perguntou Sterling, genuinamente desolado.
— Sou tão previsível assim?
— Desculpa — disse Chelsea, sem graça.
Eu me recostei no assento, entregando o cardápio a
ela.
— Não estou te julgando. Esses ovos são bons pra
caramba.
— Você quer a mesma coisa? — perguntou ela.
— Não, quero uma omelete recheada e um suco de
laranja. Você tem vodca? Um drinque me parece uma ótima ideia.
Chelsea franziu o nariz.
— São dez e meia da manhã!
Eu a encarei, cheia de expectativa.
— Não — ela respondeu. — Não vendemos bebida
alcoólica.
Sterling levantou dois dedos, pedindo um suco de
laranja também.
Chelsea se afastou, e eu comprimi os lábios, tentando
não parecer muito preocupada.
— Você parece cansado, Sterling.
— Foi uma semana longa.
Sorri.
— Mas você está aqui agora.
— A Finley não.
— Sterling — alertei. — Ela não vai mudar de ideia.
Ela te ama mais do que a qualquer outra pessoa.
— Exceto você.
— Claro que exceto eu. Mas ela te ama. Ela só não
pode ficar com você antes de assumir a empresa.
Seu rosto desabou, e seus olhos perderam o foco.
— Sinto muito — falei, estendendo a mão por sobre a
mesa para tocar seu braço. — Devíamos ter escolhido um lugar que vendesse
vodca.
Minha boca ficou seca de repente. Desejar uma bebida
e perceber que ela não estava imediatamente disponível me gerou uma sutil
pontada de pânico.
Sterling se afastou.
— Cuidado, Ellie. Você está começando a ficar
parecida comigo.
A porta fez barulho, e uma família de quatro pessoas
entrou, já discutindo onde sentar. Era alta temporada, e, apesar de Sterling e
eu podermos ser considerados turistas, ambos tínhamos casa ali havia mais de
oito anos. Tempo suficiente para ficarmos irritados com os turistas propriamente.
Éramos o que os moradores chamavam de família temporária, e, a maior parte do tempo,
se disséssemos o nome do nosso bairro, eles nem precisavam perguntar. Apenas um
dos nossos vizinhos vivia ali em tempo integral, e isso porque eram do Arkansas
e mudar para Estes Park era um sonho, não férias.
As duas garçonetes se apressavam por entre as mesas,
que eram rapidamente ocupadas. Os tênis de Chelsea às vezes gemiam no piso frio
laranja e branco enquanto ela anotava pedidos e corria até os fundos, passando
pelas portas duplas da cozinha. Em seguida reaparecia com um sorriso, parando no
caminho de volta para encher grandes copos de plástico no balcão de bebidas,
enfileirado com bancos altos para os praticantes de snowboard que frequentavam
o café.
O calor humano enchia o ambiente, e eu percebi que
todos tiravam camadas de roupa.
Chelsea trabalhava sem parar enquanto turistas
andavam do outro lado das janelas, enrolados em casacos, cachecóis, gorros de
tricô e luvas. De tempos em tempos, a porta se abria, trazendo um sopro de ar
frio, e Chelsea soltava um doce suspiro quando passava por uma brisa fresca.
A neve começara a cair em flocos delicados pelo
quarto dia seguido. A região turística estava animada, os negócios estavam
prosperando, mas havia uma tempestade se aproximando, e minha preocupação se
voltou para Finley, prestes a chegar.
— Como está a Fin? — perguntou Sterling, parecendo
ler a minha mente.
— Ela está no Rio. Acho que vem pra cá.
— Ah, é? — Sterling secou o nariz com o nó dos dedos
e fungou, um sinal revelador de que estava tentando parecer indiferente.
— Você está muito focado na zona de amizade,
Sterling. Hora de desistir.
Ele pareceu abalado.
— Não tento voltar com ela há muito tempo.
— Se é que um mês pode ser considerado muito tempo.
Ele franziu a testa.
— Estou cansado demais para Ellie, a vaca. Você pode
simplesmente tentar ser legal hoje?
Fiz biquinho.
— Ah, Sterling, você está menstruado?
Ele não gostou.
— Vou te deixar aqui sozinha nesta mesa.
— Não me ameaça com uma boa ideia — falei.
— E deixar espaço suficiente para o bombeiro se
juntar a você.
— O quê? — perguntei, virando e vendo Tyler Maddox
entrar com Zeke e mais alguns membros da equipe de bombeiros de elite. Eu me
escondi na cadeira. — Merda — sibilei. E afundei ainda mais. Na minha família,
situações desconfortáveis exigiam algo muito mais forte que suco de laranja, e
a vontade de ir para casa e atacar o armário de bebidas se tornou irresistível.
Um lábio quente encostou na minha bochecha, e Tyler
puxou uma cadeira para a mesa.
— Oi, baby. Sentiu saudade?
— Você é louco? Você ouve vozes? — perguntei,
enfurecida.
— Só vim almoçar antes de voltar para o trabalho —
disse Tyler, orientando a equipe a sentar.
Zeke sentou à minha frente, parecendo desconfortável.
— Podemos encontrar outra mesa.
— Não — disse Tyler. — Não podemos. Quem é seu amigo?
— perguntou ele, apontando para Sterling.
— Porra — murmurei. Eu queria afastar Tyler. Em vez
disso, ele ficou com ciúme e viu Sterling como um concorrente que poderia
derrotar com facilidade.
Sterling estendeu a mão, mas eu dei um tapa nela.
— Que belo beijo vocês deram— comentou Tyler. — Me
fez lembrar de quando ela me beijou daquele jeito. A noite passada parece ter
sido há tanto tempo.
Meu rosto se contorceu em repulsa.
— Sério? Você vai falar nisso?
— É, já falei — retrucou Tyler, convencido.
— O Sterling não se importa de eu ter me aproveitado
de você na cama dos meus pais na noite passada.
— Aquela era a cama dos seus pais? — perguntou Tyler.
— Você já tinha usado a sua?
— Na verdade... — comecei.
Zeke se encolheu.
— Tyler, por favor, cara. Vamos encontrar outra mesa.
Determinado, Tyler olhou com raiva para Sterling.
— Eu gostei.
Sterling pigarreou, sem saber como processar a
situação.
— Do que você gostou... exatamente?
Tyler não tirou os olhos dos meus.
— Da sua amiga.
Eu me aproximei.
— Se você não achar outro lugar para alimentar esse
buraco que você tem na cara, vou levantar e gritar pra todo mundo que você tem
um pinto minúsculo.
Ele não se abalou.
— Posso te mostrar e provar que você está errada.
— Vou começar a gritar com você por ter me passado
clamídia. Você trabalha aqui. A cidade é pequena. Coisas como essa se espalham.
Ele deu de ombros.
— Você também mora aqui.
— Temporariamente. E não dou a mínima para o que as
pessoas daqui pensam de mim.
Chelsea trouxe o prato de Sterling e o pousou diante
dele, depois o meu, junto com as bebidas.
— Já podemos pedir — disse Tyler.
Coloquei a mão no rosto dele, minha expressão
entristecendo e lágrimas enchendo meus olhos.
— Vai ficar tudo bem, Tyler. O corrimento vai parar
depois de algumas rodadas de antibiótico, e a coceira vai desaparecer.
Chelsea fez uma careta, olhou para Tyler com nojo e
gaguejou:
— Eu, humm... já... Eu já volto.
Tyler me encarou boquiaberto.
Zeke deu uma risadinha.
— Ela te avisou.
Sterling mexeu no prato, se desligando de nós.
Tyler olhou para Chelsea, que estava sussurrando com
a outra garçonete e o cozinheiro. Eles estavam olhando para a nossa mesa,
enojados.
— Uau. Você acabou de afundar o meu navio de batalha,
Ellie.
Usei o garfo para cortar a omelete e comi um pedaço,
bem satisfeita comigo mesma.
— Talvez eu só queira ser seu amigo — disse ele.
— Caras como você não conseguem ser só amigos de
alguém que tenha vagina — falei.
Zeke assentiu com a cabeça.
— Ela tem razão.
Tyler se levantou, fazendo um sinal para a equipe
fazer o mesmo. Eles obedeceram, e as cadeiras gemeram no piso.
— Nós te livramos de todos aqueles idiotas que
estavam destruindo a sua casa ontem à noite, e é assim que você agradece?
Sorri para ele.
— Atrás dessa fachada de babaca, você é um cara
legal. Eu estava bêbada ontem à noite, e meu radar não estava funcionando
direito, mas consigo te analisar a um quilômetro de distância.
Não quero ser sua amiga. Não quero relembrar nossa trepada
de uma noite só. Não tenho tempo para caras legais, Tyler, e não consigo
imaginar um inferno mais terrível do que ser obrigada a passar um tempo com
você sóbria.
Ele fez um sinal com a cabeça para Sterling.
— Ele parece um cara legal.
O pelo na minha nuca se arrepiou. Eu estava sendo o
mais malvada de que era capaz, e Tyler agia como se estivéssemos trocando
elogios.
— O Sterling é um merda.
— Ela está certa — disse Sterling de um jeito casual.
— Sou mesmo.
A equipe de Tyler trocou olhares, e ele me observou
por um tempo.
— Saboreie seus ovos.
— Vou fazer isso — falei, me assegurando de não olhar
enquanto ele se afastava.
Sterling esperou um segundo ou dois antes de se
aproximar.
— Você deve gostar dele. Nunca te vi tão agressiva.
Acenei para dispensá-lo.
— Ele pode ser um idiota autoconfiante, mas não é
mau. Ele não devia se misturar com a gente.
— Verdade — comentou meu amigo, enfiando mais um
pedaço na boca. Ele limpou os lábios com o guardanapo, depois olhou para mim,
as sobrancelhas aparadas. — Desde quando você é responsável?
— Ah, querido... espero que seu dia seja tão
agradável quanto você.
Ele deu uma risadinha e deu outra garfada na refeição.
Esse povo que tem dinheiro,tem umas atitudes malucas né?Tipo meu pai não me dá atenção então eu vou destruir a casa
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